O estranho mundo dos Direitos de Autor

Há várias coisas estranhas nos debates que têm vindo a lume acerca dos recentes esforços legislativos para proteger os Direitos de Autor. Há pessoas que são anti-taxas, mas a favor de compensações; ou que são anti-compensação mas a favor de direitos de autor; ou ainda anti-pirataria mas contra leis que protejam direitos de autor.

O artigo 82º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos que estabelece compensação devida pela reprodução ou gravação de obras serviu de base ao Projecto de Lei 118 que prevê que equipamentos de armazenamento de dados sejam taxados pelo seu potencial uso para cópia privada. O argumento de que o PL118 extrai um poder de taxar que não se pode deduzir do conceito de compensação é no mínimo bizarro na medida em que pressupõe outra asserção: que o Direito de Autor não é em si uma taxa.

No site da Sociedade Portuguesa de Autores, pode-se ler nas perguntas frequentes:

O direito de autor é um imposto, taxa?

Uma taxa ou imposto corresponde a uma exigência financeira, pela prestação de um serviço público cobrado pelo estado. Os valores cobrados a título de Direitos de Autor corresponde à remuneração devida ao autor, pela utilização das suas obras.

Um Direito de Autor é então uma remuneração segundo a SPA. Um tipo de remuneração especial que precisa do poder coercivo e sistemático do Estado para ser atribuída. O raciocínio da SPA é que na compra de um CD, uma percentagem do preço vai para os autores, assim pagos pela utilização da sua obra, e que por cada obra vendida os autores têm direito a receber parte da venda feita pelos editores. Neste raciocínio temos três intervenientes: o artista que produz a obra, a editora que a comercializa, e o Estado que protege o artista de uma eventual ganância das editoras, que poderiam explorar o artista ao lucrar enormemente com a comercialização do trabalho. O artista assim protegido recebe uma remuneração devida ou justa pelo seu trabalho e o trabalho de comercialização e marketing das editoras é encarado como meramente vampiresco e não como um acrescento no valor do produto.

Percebe-se porque é que a maioria dos autores sejam a favor de Direitos de Autor, o conceito de “remuneração justa” é sempre mais atraente do que o conceito de que o lucro que o autor consegue extrair da obra depende da capacidade do autor de negociar directamente com as editoras ou ainda de ter ele próprio a capacidade de rentabilizar o seu produto. Claro que esse trágico conceito de artista-vítima da sociedade que dele se alimenta ingratamente se tornou rapidamente útil às próprias editoras que podiam assim comprar o monopólio dos direitos de utilização da obra. Os raros autores que são contra Direitos de Autor são invariavelmente munidos de um certo modo empresarial de pensar, compreendem que estar protegido por uma bolha jurídica é também estar fechado a todas as potencialidades do mercado, que flui tanto melhor quanto mais aberto for: desproteger o seu trabalho, tornando-o acessível gratuitamente na internet por exemplo, é a maneira mais eficaz de fazer publicidade ao seu trabalho e garantir vendas físicas, compras de bilhetes de concerto, compra de merchandising, etc. Para além de perceber como o mercado funciona, estes artistas percebem ainda outra coisa: a sua pessoa e a sua obra não são separáveis. Num mercado livre, uma obra não pode dar lucro em prejuízo do seu autor ou viver independentemente dele: o sucesso da obra implica invariavelmente o sucesso do autor em si enquanto produtor.

Ser anti-pirataria comporta então já em si o admitir que o artista deve ser remunerado pela utilização que é feita da sua obra, desligando-se a obra do artista, como se este pudesse ser prejudicado pela utilização da primeira ou como se se pudesse sequer quantificar quanto ganharia o autor se a obra gravada ilegalmente tivesse sido comprada. Porque não perguntar em quanto cresceu o valor de mercado do artista em si pela sua obra ter sido amplamente reproduzida? Teria Homero sido o poeta que se tornou se não constituísse prática na Grécia Antiga gravar mentalmente e reproduzir a sua obra na praça pública?

7 pensamentos sobre “O estranho mundo dos Direitos de Autor

  1. Joaquim Amado Lopes

    Mesmo dando de barato que os “raros autores que são contra Direitos de Autor” são uns visionários e todos os outros uns ignorantes incapazes de se adaptarem à actualidade, o seu raciocínio pró-pirataria falha num ponto essencial: quem deve decidir sobre o modelo de comercialização de uma obra só pode ser o autor (ou a quem ele venda os respectivos direitos), não o consumidor. Independentemente do que a Elisabete Joaquim pense sobre o que é “melhor” para o autor ou mais “eficaz” em termos de publicidade.

    Quanto a saber “quanto cresceu o valor de mercado do artista em si pela sua obra ter sido amplamente reproduzida”, tenho duas questões:
    (1) Como é que a Elisabete Joaquim distingue “por causa de” de “apesar de”, se não é possível isolar o factor “pirataria” para medir o impacto desta no valor de mercado de uma obra?
    (2) Se os consumidores puderem aceder gratuitamente à obra de um autor e, por isso, a esmagadora maioria dos consumidores deixar de estar disponível para pagar por essa obra, qual é o seu valor?

  2. bst

    Esperemos que a inconstitucionalidade seja decretada rapidamente.
    Inacreditável estas aprovações por unanimidade! É a Coreia do Norte, ou velhos vícios:
    «De resto (declarara o Cavaleiro, rindo) aquele Circulo de Vila-
    Clara constituía uma propriedade sua – tão sua como Corinde. Livremente,
    poderia eleger o servente da Repartição que era gago e bêbedo. Prestava
    pois um serviço esplêndido ao Governo. à Nação, apresentando um moço
    de tão alta origem e de tão tina inteligência…»

    Eça de Queiróz, A ilustre Casa de Ramires

  3. elisabetejoaquim

    Joaquim Amado Lopes, «quem deve decidir sobre o modelo de comercialização de uma obra só pode ser o autor (ou a quem ele venda os respectivos direitos)»: onde é que digo algo que vai contra isso?

    «(1) Como é que a Elisabete Joaquim distingue “por causa de” de “apesar de”, se não é possível isolar o factor “pirataria” para medir o impacto desta no valor de mercado de uma obra?»: o valor de mercado do artista é o valor que as pessoas estão dispostas a pagar para consumir as suas obras, vê-lo a vivo, etc: quanto mais a sua obra for difundida, mais o artista seduz potencialmente clientes, é para isso que serve a publicidade.

    «(2) Se os consumidores puderem aceder gratuitamente à obra de um autor e, por isso, a esmagadora maioria dos consumidores deixar de estar disponível para pagar por essa obra, qual é o seu valor?». Primeiro tem deprovar que se essa pessoa não tivesse acesso gratuitamente à obra ela pagaria por ela. A resposta à sua pergunta já está no texto: há de facto autores que acreditam na qualidade do seu trabalho e que disponibilizam-no gratuitamente na internet. Acha que se estão a prejudicar se o fizerem? Claro que não, é simplesmente uma maneira mais holística de olhar para o problema: vão acabar por colher os frutos dessa publicidade, basta deixar o mercado funiconar. Prince, por exemplo, é um autor conhecido por levantar processos contra quem reproduz trabalho seu na internet (não consegue encontrar vídeos dele no youtube). Ele consegue fazer isso porque já tem um mercado que sedimentou no tempo em que apenas a MTV reproduzia vídeos, mas assim não consegue chegar a um novo segmento de mercado – os jovens – que através do youtube (sim, o youtube é pirataria) conhecem a sua obra e ficam com vontade de comprar os seus CDs ou ir aos seus concertos. Quanto é que o Prince perdeu hipoteticamente com essa atitude? Não se consegue medir. Mas deve ser muito mais do que aquilo que ele hipoteticamente ganhou com a venda de CDs a pessoas que os compraram por não poder ouvir o seu trabalho gratuitamente.

  4. elisabetejoaquim

    bst,

    A lei não foi aprovada, a iniciativa é que foi aprovada pela Comissão própria para o efeito, estando assim apta a ser discutida e depois votada. A discussão já começou na quarta-feira e vai prolongar-se para a semana.

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