Os amores abstractos do benfeitor moderno

A época em que vivemos está muito marcada por um disfuncional amor às causas distantes (diferente de causas grandiosas), aos compromissos globais, aos objectivos inalcançáveis, às promessas utópicas e, consequentemente, está muito exposta a repressões também globais impostas por lideranças distantes que nada significam para cada um de nós. Esta viciosa tendência para o global é usada sobretudo por dois motivos: porque quem detém o poder realiza alterações jurídico-legais, propositadamente para incutir mudanças estruturais e mudanças simbólicas e para dirigir a opinião pública; e porque, entre o comum dos mortais, essa tendência para o global serve para colmatar a falta de acção, de vocação, ou de coragem face às necessidades e responsabilidades nas instâncias mais baixas de actuação cívica e política.

Na primeira situação, há inclinação para o global porque se tem poder para isso e não há oposição que faça frente, já que a maior parte da sociedade é naturalmente anestesiada e conivente, – e sem meios de reacção, mesmo que exista vontade de empreender alguma reacção entre aqueles que têm capacidade crítica perante o caos. Quanto ao segundo caso, a preferência por preocupações globais explica-se, em parte, porque as qualidades e as competências práticas que são imprescindíveis na sustentação de pequenas comunidades, passam a ser supérfluas no contexto da superorganização atomizante. Assim, aquelas inclinações e aptidões naturais muito úteis na resolução de problemas correntes do dia-a-dia, são destreinadas e alienadas para o nível das meras qualidades abstractas quando deixam de ser necessárias.

A concentração das atenções naquilo que é genérico e distante alastra um pouco por todos as áreas, mas eu apresento quatro exemplos elucidativos que, de alguma forma, se relacionam: 1) a multiplicação legislativa decorrente da “acção afirmativa” incentivada a grande escala no combate às desigualdades, e de que é mais recente exemplo a decisão do Supremo Tribunal dos EUA que impõe a todos os Estados a legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo; 2) a utilização da censura uniforme a nível internacional; 3) o acolhimento acrítico de vagas incessantes de imigração chegada à Europa; 4) e as preocupações ambientais, que voltam a ganhar mediatismo devido à recente encíclica do Papa Francisco.

1) Relativamente à permanente acção política de combate às desigualdades, é óbvio que esta transformação de caprichos de uma ínfima parte da população em temas de centralidade no debate público só é possível quando há um grande desfasamento entre os decisores políticos e as preocupações da generalidade dos governados. Em primeiro lugar, é graças a esse desfasamento que as lideranças políticas são facilmente captadas por grupos minoritários empenhados em fazer avançar as suas agendas políticas, mesmo que isso implique prejuízo da estrutura cultural em que estão inseridos. Em segundo lugar, a permeabilidade da sociedade é maior quando estas mudanças legais, de impacto prático e simbólico, se mantêm na esfera da bondade abstracta e quando poucos estão interessados em ir verificar as verdadeiras intenções de quem moveu as referidas decisões – por exemplo, raramente alguém se irá interessar em verificar, depois de o trabalho estar feito, a relevância dessas “conquistas” legais no dia-a-dia de quem tanto as defendeu. A novidade norte-americana gerou um rápido efeito de contágio acéfalo nas redes sociais e, mais uma vez, a exteriorização de apoio público ao activismo LGBT proporcionou uma sensação de conforto colectivo e de missão caritativa socialmente louvável e exibível.

2) Mas não é somente a acção política que beneficia deste distanciamento entre quem manda e quem obedece. As transformações legais que têm sido promovidas não estariam garantidamente protegidas de ameaças se não se fizesse uso de uma das ferramentas mais velhinhas e importantes para o fenómeno do poder: a censura. A inevitável presença da censura na sociedade faz-se sentir na política, na academia, no entretenimento, na religião e em todos os espaços que se revelem importantes para a legitimação da ordem social dominante. Por muito que custe admitir aos crentes no debate puramente racional e equilibrado – em que, supostamente, os intervenientes começam a debater de pontos de partida neutros e com total receptividade a argumentos racionais, rumo à descoberta da verdade – a realidade não corrobora esta visão optimista porque não é dessa forma que a larga percentagem da população funciona e pensa (e todos observamos isso). A opinião pública é sempre dirigida, por pouco simpático que seja admiti-lo. Quanto mais numerosa for a turba numa democracia em que todas as opiniões são valorizadas por igual, mais estúpida (e menos consciente dessa estupidez) ela se torna.

Posto isto, o recurso à censura não é motivo de espanto ou de reprovação – ainda que seja divertido confrontar os donos da falsa tolerância cosmopolita com esta ironia incontornável. O problema é que a censura com que nos deparamos agora é sobretudo uma censura internacional ao serviço de indivíduos que não têm apenas o interesse legítimo de proteger os organismos colectivos que integram, mas que têm, para além disso, interesse em domar a acção e prejudicar os interesses internos de outras nações. E, claro, como em tudo o que se decide a nível global, as pessoas estão muito mais indefesas diante deste tipo de censura que em nada as beneficia, mas a que não conseguem fazer frente. Veja-se a indiferença generalizada em relação à reivindicação sionista que exige uma censura (ainda mais?) internacional a todo e qualquer discurso anti-semita manifesto na internet.  O problema, mais uma vez, prende-se com este substituição da importância da censura de proximidade por uma indiferença perante censura que é estranha às nossas particularidades. Nos países ocidentais, qualquer censura assumida está fora de questão se partir de lideranças políticas nacionais (e a mesma resistência é cada vez mais sentida até no domínio religioso que persegue os mesmos anseios de democratização e de resistência às hierarquias), mas as mesmas pessoas aceitam doutrinamento e punição quando desrespeitam a dogmática das democracias liberais. Ou seja, a censura é bem tolerada enquanto instrumento de legitimação da presente ordem progressista a grande escala (combate aos denominados “discursos de ódio” sexistas, racistas, homofóbicos, xenófobos, etc), mas já não é compreendida como meio de defesa de um corpo contra as inclinações que são prejudiciais para o todo e em favor da vitalidade a longo prazo. Pior ainda, a censura é cada vez menos uma ferramenta de utilidade para a saúde da “pólis”, que vise evitar o alastramento de “cancros”, e cada vez mais uma ferramenta que invade e aniquila completamente as acções e pensamentos privados.

3) Outra área em que se perde a vitalidade e sabedoria local por excesso de benevolência e tolerância é a da política de imigração. É por nos conhecermos cada vez menos que ficamos susceptíveis a qualquer imposição que leve o carimbo de consentimento das lideranças políticas europeias, muitas vezes sem pressentirmos o real impacto que determinadas decisões vão provocar no amanhã. Das lideranças políticas europeias ao Papa, quase todos parecem ignorar que os homens não estão vocacionados para um altruísmo indiscriminado, à prova de bala e, tantas vezes, suicidário. As sociedades ocidentais são agora caracterizadas pela falta de empatia nas interacções sociais, desconfiança, hedonismo, objectivos de curto prazo, elogio à mediocridade, pouca predisposição para a cooperação, fraca estima pelos recursos e pelo próximo, e fraude endémica. É caricato que, em vez de se procurar curar estas degenerações, se incentive a maior fragmentação social, a violência e o maior peso na balança de dependentes da providência estatal, promovendo uma caridade inesgotável e jogando com argumentos que vão completamente ao arrepio do que seria aceitável no seio de um pequeno grupo com uma palavra a dizer e que não estivesse sujeito a simples caprichos universalistas inconsequentes, falsas remendos para a necessidade de rejuvenescimento na Europa ou a irresponsáveis incentivos à recepção de mão-de-obra barata.

Com recurso a exageros, por vezes, é mais fácil perceber o que está em jogo. Citando Konrad Lorenz (em O Homem Ameaçado): “Um homem normal segue estes Mandamentos por inclinação natural, sempre que se trate de uma relação com os seus amigos pessoais. Ninguém rouba ou mente a um amigo, muito menos alguém desejará a sua mulher e menos ainda ousará matá-lo. Os Dez Mandamentos só começam a perder a sua eficácia fundamental através do crescente anonimato da sociedade humana. (…) Num grupo de pessoas amigas, cada um seguirá com relativa fidelidade os Dez Mandamentos. Será até capaz de se expor a grandes perigos para salvar um amigo de uma má situação, a custo da própria vida. Um sociólogo americano calculou que o número ideal para um grupo, unido por laços de profunda amizade, é o onze. (…) O homem, mais do que perverso desde a sua juventude, é sim suficientemente bom para uma sociedade de onze pessoas, mas não “bastante bom” para se inserir numa sociedade de massas, como membro anónimo e pessoalmente desconhecido, do mesmo modo que se integraria no pequeno grupo como indivíduo que todos conhecem e estimam.”

Não se trata aqui, obviamente, de colaborarmos apenas dentro de grupos com pouco mais de onze elementos, embora isso seja adequado no desporto ou em pequenas conspirações e tertúlias. Trata-se antes de perceber a tendência e os limites da empatia e da confiança entre indivíduos e de não os forçar em demasia. Esquecemos os compromissos e sacrifícios que seria conveniente encetarmos a nível de proximidade porque não nos conhecemos, não precisamos de nos conhecer e não saberíamos muito bem o que fazer se nos viéssemos a conhecer. Contudo, a maior agravante neste estado de coisas é a atitude humanitarista que nega a própria identidade e que se predispõe a receber todos os que lhe batem à porta, ostentando uma reacção débil e efeminizada, e acumulando um potencial de conflitos na própria “casa”. Dentro de casa é que é tudo mais rotineiro, mais repetitivo, e é dentro de casa que os indivíduos são mais espontâneos e autênticos. É lá que os limites da paciência, a generosidade, o sentido de humor, as aptidões e as fraquezas se dão a conhecer totalmente. A casa é sagrada e não há espaço para constantes incursões de estranhos que quebrem hábitos e laços.

4) Por último, e porque já referi a “higiene” no campo das ideias, aplicada por via da censura, falta referir as preocupações ambientais propriamente ditas. Uma defesa da fraternidade ecológica universal, é uma possível síntese da encíclica “Laudato Si”. Neste último exemplo, não ponho em caso a legitimidade das preocupações ambientais, nem a importância de cada um se sentir responsável por estimar o meio envolvente, e nem desvalorizo a sabedoria de muitos dos pontos levantados ao longo do documento. Chamo a atenção apenas os alvos que procura criticar, a pertinência do tema, o âmbito da preocupação e o que propõe como salvação. Não falta por aí quem, sob pretexto de querer salvar o planeta, queira forçar novos modelos de desenvolvimento como forma de autoflagelação por pertencer a um espaço civilizacional excessivamente avançado e produtivo. Este encorajamento papal vem reforçar essas posições e está sempre subjacente a necessidade de distribuição, como no caso em que se refere a uma “dívida ecológica” do Norte em relação ao Sul.

Depois, é verdade que o Papa Francisco salienta que os centros de poder não têm contacto directo com os problemas mas, por outro lado, apela a uma consciencialização demasiado global sem horizonte de exequibilidade e que peca por atribuir demasiada bondade ao ser humano, vendo-o quase como bom selvagem em que a perversidade só irrompe quando é exposto à tecnologia e à finança. Em resumo, ficamos com simples tentativas de persuasão genérica que não logram qualquer resultado entre aqueles que nunca nutriram o mínimo de apego e respeito pelo meio em que vivem e que transformam. O âmbito da preocupação é outro ponto crítico; “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral”; e “a interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projecto comum.” Mais uma vez, note-se o preocupante nível de abstracção e de ambição a que chegamos, quando se pretende sensibilizar milhões de pessoas para um tema relativamente superficial e acessório, que consegue ser, contudo, um bom escape de conversa para aqueles que não queiram ferir susceptibilidade, abordando temas actuais como os três que exemplifiquei anteriormente.

É no conforto das causas globais e na bondade desligada da utilidade social e da consciência de uma moralidade colectiva, validada pelo tempo e pela resistência face às ameaças externas e internas, que se refugia todo o cobarde que ama o mundo sem amar, preferencialmente, aqueles que lhe são mais próximos. É nesta ambiente de cobardia social que as grandes decisões políticas são perpetradas, sem que haja energia para contraditório.

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166º Podcast Mises Brasil – Daniela Sofia Silva

Foi com muito gosto que aceitei o convite do Bruno Garschagen para participar no podcast desta semana, alusivo ao tema “secessão e federalismo”.

Aqui fica o link.

Alguns dos principais nomes da Escola Austríaca abordaram teoricamente o tema da secessão, de Ludwig von Mises passando por Murray Rothbard até chegar a Hans-Hermann Hoppe.

Para tratar desse assunto de uma perspectiva Austríaca e acadêmica, o Podcast do Instituto Mises foi conversar com a portuguesa Daniela Sofia Silva, mestre em Governação, Competitividade e Políticas Públicas, que escreveu em coautoria com o professor André Azevedo Alves o artigo “Secessão e federalismo na perspectiva da Escola Austríaca”, publicado no segundo número da revista MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia. Ela também é autora de uma dissertação de mestrado sobre o assunto elaborada sob orientação dos professores André Azevedo Alves, membro do conselho editorial, e José Manuel Moreira, editor-adjunto da revista MISES.

Neste podcast, Daniela explica as concepções de secessão e de federalismo segundo a Escola Austríaca e aponta as características teóricas de cada um. Também analisa os pontos positivos da secessão, de acordo com os seus defensores, e as eventuais consequências práticas.

Daniela também apontou o problema gerado quando se tenta impor condições à secessão que acabam por descaracterizá-la e comentou se é possível ou não a separação resultar numa maior concentração em esferas menores de poder em vez de intensificar a liberdade que teoricamente a secessão promoveria.

Votar de joelhos em situações extremas

O último Domingo, dia 22 de Março, trouxe-nos mais dois bons pretextos – a 1ª volta das eleições locais em França e as eleições autonómicas na Andaluzia – para reflectirmos sobre um facto incontornável para o futuro da política, nacional e supranacional, no espaço europeu. Sejamos ou não parte interessada na manutenção do actual sistema ou na sua eventual derrocada, encontremos ou não representantividade em algum partido, do sistema ou anti-sistema, é impossível ignorar ou negar que o centrão político está a esvaziar-se e a despertar indignação nas urnas, em diferentes graus e por meio de diferentes forças políticas (e sublinho “diferentes”). O maior drama dos partidos de centro é a sua incapacidade de renovação e de apresentação de temas mobilizadores; e é logo aqui que encontramos a primeira diferença entre partidos de extrema-direita e partidos de extrema-esquerda, e sobre a qual me alongarei mais à frente: os partidos de esquerda esgotaram as bandeiras que podem usar, quando comparando com o espaço de manobra gozado pela direita.

GetimageasJpegPoderemos reconhecer que, frequentemente, as campanhas políticas anti-sistema enveredam pela vitimização fácil e pela sobrevalorização exclusivista da missão mítica da sua nação, em aberta hostilidade em relação ao exterior. É uma estratégia, admito eu, pouco sensanta e que revela sofreguidão pela ambição de explorar ao máximo as frustrações prolongadas do eleitorado, especialmente em contexto de crise económica. Parte-se de verdadeiros problemas, até com justificada indignação, mas pode ocorrer que “pior seja a emenda do que o soneto”, neste caso por se incorrer no risco de alienação de amizades com nações vizinhas, minando a cooperação económica e o trilho cultural comum. Não precisamos de reduzir a escolha a duas opções: o projecto imperfeito ou a sua total aniquilação. Reconhecida esta insensatez visível em alguns partidos dos “extremos” (designação que serve os propósitos do discurso oficial de quem se quer perpetuar no poder, como já referi noutra ocasião), repare-se agora, sem surpresa, como a mesma estratégia de vitimização fácil contra um inimigo externo é igualmente usada pelos próprios partidos do mainstream e seus lacaios que vão instruindo a opinião pública. Mesmo que o desgaste destes partidos seja óbvio aos olhos de todos – a começar pelos próprios –, a existência de partidos com um discurso de ruptura acaba por ser um oportuno autogolo oferecido de bandeja aos que não se dispõem a admitir incompetência própria nas fragilidades institucionais, promiscuidade inerente ao crony-capitalism, e degenerações burocráticas que têm afectado directamente a vida dos cidadãos que só são solicitados para verem acrescida a carga fiscal.

Usar o medo contra estes extremos pode ter sido uma ajuda decisiva para que o esvaziamento do centro não tenha sido assim tão expressivo como seria de esperar. Por enquanto, não houve sismo mas parece que entrou um fantasma na sala e que deitou algumas molduras abaixo. A democracia é um jogo em que, geralmente, ganha quem estiver disposto a rebolar na lama. E é com esse entendimento que temos de partir para qualquer análise de um processo eleitoral, para que não haja tanta espanto quando nos deparamos com as mais inverossímeis coligações e as mais desenvergonhadas contradições programáticas.

Dizia eu que existe uma primeira diferença fundamental que separa partidos de extrema-esquerda e partidos de extrema-direita: a maior variedade de temas mobilizadores que dá vantagem à direita, uma vez que já se constatou a rapidez com que caem por terra os encantos messiânicos de um Syriza. É bastante óbvio que as diferenças existem e não são diferenças acessórias. Sou levada a abordar o assunto a partir daí porque me parece importante contrariar a tendência de simplificar novos fenómenos complexos, afirmando que os novos partidos “são farinha do mesmo saco”, indistintos de todo. Não falta por aí quem queira refugiar-se constantemente na “teoria da ferradura” como explicação para tudo o que se passa nas democracias ocidentais nos nossos dias.

Cada um de nós preocupa-se mais com umas questões do que com outras e as preocupações pessoais acabam por ficar espelhadas na forma como todos, mesmo involuntariamente, nos inclinamos a construir uma visão totalizante da realidade. Assim sendo, não podemos esperar que todo o eleitorado encare os partidos da mesma forma. Se determinado observador se posiciona num ponto de regular defesa do liberalismo económico acima de tudo, é natural que uma FN e um Syriza sejam olhados como iguais e mereçam igual repúdio. Para um observador que privilegie a defesa de valores morais tradicionais, o caso muda de figura porque poderá ver-se a votar num partido que revele preocupação pelas políticas da família e que se oponha à agenda progressista, independentemente da política económica preconizada pelo mesmo partido. Depois existirão aqueles cujo eurocepticismo é de tal forma impetuoso, urgente e inegociável que tanto poderiam votar num PCP, numa FN, num UKIP, num Syriza ou num PNR, desde que houvesse alguma forma de mostrar cartão vermelho às políticas europeias. Num último exemplo, imaginemos a diferença decisiva que existe entre estarmos a julgar programas políticos sujeitos a sufrágio num país que não é o nosso ou estar a votar numas eleições departamentais que poderão fazer toda a diferença no ambiente à porta de casa.

Aplicando ao que acredito ter-se verificado nesta 1ª volta em França, recupero o que já escrevi há umas semanas:

As omissões podem ter consequências mais determinantes em política do que aquilo que efectivamente é feito ou dito. É também aqui que o radicalismo vai absorver parte da sua força: no silêncio dos partidos de centro a respeito de problemas que os cidadãos, no terreno, já detectaram há muito tempo – refira-se que os cidadãos, regra geral, não estarão igualmente sensíveis em todos os domínios, pelo que é natural manifestarem rápida e fiel compreensão em assuntos que lhes são caros no dia-a-dia, como por exemplo em matéria de segurança, enquanto, por outro lado, aceitam passivamente o acesso a crédito fácil ou promessas de regalias suportadas à custa dos seus concidadãos.

Ou seja, quando o que está em causa é a questão da insegurança e o sentimento de negligência ou mesmo de “traição” (como Marine Le Pen lhe chama objectivamente quando atribui culpas aos partidos que se têm alternado no poder, a começar por Sarkozy que fez da imigração uma bandeira nas eleições presidenciais de 2007) a respeito dos conflitos étnicos e religiosos que perturbam a ordem pública, é de esperar que as pessoas dêem mais atenção a estes tópicos do programa em detrimento das propostas de política económica ou de política externa. Da mesma forma que o nosso voto pode variar muito consoante estejamos a votar em eleições autárquicas, presidenciais, legislativas ou europeias.

Nicolas-Sarkozy-and-Fran--004Sem estender a análise a outros partidos que vão ganhando protagonismo, vejamos por que razão a Frente Nacional e o Podemos não podem ser alinhados levianamente. O Podemos teve um resultado medíocre se pensarmos que o contexto económico e o mediatismo lhe eram muito favoráveis e que não seria difícil absorver eleitorado tipicamente de esquerda. Ou seja, se os partidos do sistema sofreram alguns arranhões neste Domingo, não parece que tenha sido por força de propostas de política económica de extrema-esquerda e muito menos por alastramento do fenómeno Syriza – é manifestamente exagerado detectar qualquer sinal de vitória e de revolução em curso, a menos que se passe muito tempo em frente ao ecrã.

Posto isto, e admitindo que existem semelhanças formais, a nível de comunicação política, e semelhanças de conteúdo que passam pela oposição à globalização, pelo eurocepticismo e pelo reforçado intervencionismo na economia em áreas consideradas vitais para o bem-estar dos cidadãos (saúde, educação, transportes, serviços bancários e energia), devemos perguntar se é razoável acreditar que um eleitor mediano, um eleitor desiludido com Hollande ou até um eleitor de extrema-esquerda teria inclinação para votar em Le Pen como alternativa socialista e se é mesmo o domínio económico que está a determinar mudanças nos resultados eleitorais. Os eleitores que possam ter fugido da UMP para votar em Le Pen, decerto não o fizeram tendo em vista nacionalizações parciais e proteccionismo, mas sim temas polémicos que já não confiam a Sarkozy. E os eleitores que possam ter deixado de votar em Hollande para votar em Le Pen, não o terão feito com esperança de que esta tenha maior habilidade para dar um novo fulgor às políticas socialistas, porque tal deslocamento do voto seria o mesmo que escolher ir comer sopa ao McDonald’s. Se estivermos lá e quisermos mesmo uma sopa, ela está disponível, mas não é sopa que nos incentiva a ir ao McDonald’s. A mobilização que possa vir de antigos eleitores do PS é feita, provavelmente, na base do eurocepticismo e de questões culturais prementes. E se alguém acredita que o centrão político está a sofrer ameaças pela suposta vontade geral em favor da radicalização de esquerda e de exigências distributivas, como se explica que o Podemos tenha sido tão insignificante e que o PSOE tenha saído ileso?

A FN não é o Podemos e, ainda que possamos identificar um apelo similar a um colectivismo fraterno anti-austeritário e a um patriotismo que poderá, ou não, descambar em reforço do Estado burocrático centralizado e racionalizado na base da aversão ao exterior, é preciso notar que o eixo emblemático da FN não é a política económica e a mistura de economia socialista com posições tradicionalmente de direita, acaba por servir de bengala num partido que reúne sensibilidades diversas e a que já basta ter de arriscar-se muito mais quando dá a cara por temas polémicos como o combate à islamização e a deportação de imigrantes ilegais.

No meio de todos estes desenvolvimentos, uma coisa fica em evidência. Existe um clara incoerência entre aquilo que se entende por democracia, na teoria e na prática, e aquilo que as elites regularmente vencedoras estão dispostas a reconhecer como legitimado pelas mesmas regras que lhes garantiram os cargos, tantas e tantas vezes. Tendo em conta que uma parte da indignação do eleitorado deve-se à percepção do défice democrático de que a UE não se livra tão depressa, era aconselhável tomar mais atenção a esse vício tão feio que consiste em estigmatizar uma parte do eleitorado, caricaturá-lo, analisá-lo com condescendência arrogante e ignorar as suas motivações, enjeitando o montinho de boletins de voto que não agrada tanto.

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Feminism as Group Strategy

Feminism as group strategy, Charles Jansen.

So far feminism can be defined by two essential aspects: a philosophy, mostly rooted in Marxism and postmodernism; and a group strategy. Both aspects are intertwined, which makes feminism difficult to explain in a plain, analytic, non-manipulative way. The sentence “feminism is the radical idea that women are human beings” doesn’t explain anything but mostly shocks the hearer and compels him to believe in key assumptions that remain implicit. Feminist philosophy is never explained in a systematic way. When one of its parts is explained, the explanation usually takes for granted the other key assumptions, which means that feminism ultimately rests on a logical circle. However, this logical defect doesn’t prevent it from being extremely efficient at stirring up resentment against men, especially Whites. A regular girl who starts absorbing feminist philosophy starts to perceive many masculine acts as morally wrong, going so far as equating unwanted male attention to rape and battery. By creating perceptions of “oppression” or undeserved “male privilege” or “White privilege,” feminist philosophy creates resentment; by upholding so-called “equality” and “progress”, it gives an aim, a telos, as well as a strong motivation to act against the perceived injustices.

While the feminist worldview may appear silly and forced, particularly since it uses sophistry and groundless accusations to discard evidence-based science, it has grown up with incredible success, to the point of determining–along with other anti-White stuff–what deserves respect or scorn. Asking for “tolerance,” then pretending to care about “justice” and finally shutting up any different voice by calling to “consensus”–i.e. think and talk within our framework or go die while we make history–such is the infamous pattern that leads to our present-day situation.

On one hand, feminism is serious because of its domination in the academics and the mainstream media. It is serious because mastering public respectability implies influence over a huge crowd. As Gamergate has shown, serious feminists organize to steer the media and organize fluxes of money even in fields like gaming that were previously safe. In academia, it will become harder and harder to simply be a White guy. “Affirmative action” policies will get you more and more excluded from public events while your decent teachers will have to kneel to feminist networks. One can recognize a mortal enemy in the person or group who says “change” or “progress” to mean our dispossession. The harder to swallow part is when you evolve within an academic environment: money here is limited, you are depending on the system, and while the cake is shrinking, the larger parts go to influence networks.

Manifesto dos 74 Redux – não generalizem porque Ninguém tem culpa

Todas as cartas de amor são ridículas, já dizia Fernando Pessoa. Não sabemos se a aproximação ao dia de S. Valentim terá tido alguma influência mas o que é certo é que houve quem se sentisse motivado a subscrever uma carta muito ridícula que, ao contrário das cartas de amor, conta com a agravante de não ser destinada à leitura privada.

Manifestando sempre grande temor e estima pelos ilustres/personalidades/vedetas/celebridades dos consensos de sempre, os meios de comunicação despacharam-se a noticiar que Passos Coelho não iria responder à “carta dos 32”. Lamentável, que arrogância, tão snob! E, de facto, não é suposto responder a uma coisa dessas por vários motivos. O motivo mais básico é o de tal elemento não ter qualquer relevância institucional. Assim sendo, dar alguma atenção mediática à carta contribuiria para conferir-lhe importância que ela não tem, criando maior confusão relativamente às impressões que os cidadãos criam quando procuram entender o regime com que lida e o peso de influência dos vários instrumentos que existem à sua disposição. Mas esta pretensão de confundir a opinião pública não é nova e sempre foi apanágio de quem procura sobrevalorizar o poder das manifestações em detrimento do resultado das urnas (não obstante todos os defeitos que possamos apontar ao processo), chantagear a acção governativa por meio de manifestos de elites, ou atribuir legitimidade a um governo estrangeiro como verdadeiro representante dos portugueses ao mesmo tempo que dá desprezo ao governo nacional – essa espinha atravessada na garganta durante toda a legislatura.

Em segundo lugar, por uma questão de honestidade e de boa educação, não deve ser dada resposta a uma carta que não se dirige a Passos Coelho mas sim ao povo português em geral. Lá porque a saudação identifica formalmente o PM, isso não significa que seja genuinamente dirigida a ele. Este género de cartas são pequenos mimos com que os meios de comunicação são brindados de vez em quando, pois o objectivo é encabeçar e dirigir a agenda política, ocupar espaço de oposição nos momentos mais oportunos (enquanto o Syriza ainda tem brilho) e minar a credibilidade de Passos Coelho entre a opinião pública. A presente carta está para o povo português como as discussões na Casa dos Segredos estão para os pobres telespectadores; simples encenação para entreter e matar tempo. E não há dúvida de que era urgente ocupar espaço político com esta banalidade de forma a disfarçar um pouco o ressabiamento e perplexidade da oposição perante a falta da “espiral recessiva”.

Em terceiro lugar, é sensato não dar resposta porque não existe forma de responder a uma carta vaga e pateta – “abordagem robusta”, “soluções realistas e de efeito imediato”, “democracia inclusiva” e outras vacuidades sonantes – sem ser de forma vaga e pateta. Posto isto, é natural que o PM não se pronuncie, ou não se alongue, sobre este assunto no próximo debate quinzenal (embora seja livre de o fazer) porque a táctica deste enxame de abelhas que entrou em fúria com a vitória do Syriza é a táctica, já demasiado batida, de lançar a batata quente para o lado de quem está a ser desafiado.

O mais engraçado numa carta tão curta e tão superficial – característica essencial em qualquer consenso despojado de convicções e de propostas – é conseguirmos encontrar incoerência nas entrelinhas.

É por isso também do interesse de Portugal contribuir ativamente para uma solução multilateral do problema das dívidas europeias reduzindo o peso do serviço da dívida em todos os países afetados, que tem sufocado o crescimento económico, agravando a crise da zona euro. Pela mesma razão, é ainda necessário que Portugal favoreça uma Europa que não seja identificável com um discurso punitivo mas com responsabilidade e solidariedade, que não humilhe estados-membros mas promova a convergência.

Ora, num só parágrafo, apesar de se refugiarem em eufemismos como “solução multilateral” e “solidariedade”, podemos perceber que acusam o PM de privilegiar um discurso punitivo contra os gregos (a acusação de ser lacaio de Merkel está sempre subjacente e é guardada para os espaços de opinião televisivos mais inflamados) ao mesmo tempo que apelam à única solução que conhecem, evitando sempre pronunciar o nome dos países que pagam a conta porque a Alemanha já está demasiado denegrida na narrativa e iria estragar a carta do amor ridículo dos 32. Só assim poderam ignorar a ligação que existe entre maior endividamento e maior dependência (humilhação) face a quem nos empresta. São estes os grandes defensores da soberania que temos por cá.

E aproveitando que referi espaços de opinião inflamados, é útil que conste, para memória futura, que em inícios de 2015, reconhecer publicamente a existência continuada de corrupção e nepotismo que absorvem e inutilizam qualquer altruísmo externo que se mobilize em favor das vítimas do caos, dá direito a receber o rótulo de “racista”. E é assim porque Pacheco Pereira (um dos 32) defendeu na Quadratura do Círculo de dia 13 de Fevereiro que não se podem fazer generalizações contra um povo em abstracto, pois isso é profundamente hipócrita, inaceitável e racista. Enfim, um generalização é, por natureza, injusta com as excepções, pois a sua utilidade reside na possibilidade de identificar regularidades, padrões, traços distintivos e alguma previsibilidade. Normalmente, quem se enfurece contra este tipo de operação de abstracção é quem está interessado na manutenção da confusão que não permite trazer à luz do dia certos factos.

No fundo, os 32 ilustres, quando afirmam que quem adopta um discurso punitivo contra os gregos “vai ter de engolir” essas palavras se as reclamações e gritos em negociações surtirem cedências e maior conforto para a Grécia, assemelham-se àqueles veteranos criminosos que já conhecem a rotina do bairro e que incentivam os mais novos a trocar o trabalho pelo crime. Sabem a que horas a senhora da mercearia está mais susceptível com pouca clientela, conhecem a rotina e as fraquezas dos agentes de segurança, conhecem os horários dos vizinhos, etc. Com tanta experiência acumulada no seu bairro, gabam-se de preferir aguardar pela hora e local perfeitos para o crime em vez de irem “vergar a mola” diariamente. O que se destaca na carta dos 32 não é nenhum particular altruísmo e compaixão pelos gregos mas sim a percepção e cálculo egoísta de que, se há vantagens para uns, passa a existir margem de chantagem para todos. Assim sendo, mesmo que haja consciência de que os sacríficios europeus em favor da Grécia podem continuar a “cair em saco roto” e de que são tímidas as possibilidades de virem a ser feitas reformas estruturais, a curto prazo o crime compensa e o que conta são as próximas eleições.

Passos-Coelho

O descaramento da guerra contra a federalização da Ucrânia

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É inquietante observar a concordância de tantas pessoas com o eventual fornecimento de armas a Kiev (os mais ousados e generosos acrescentarão a necessidade de fornecimento de tropas) com a mesma descontracção com que pedem uma bica. Pelos vistos, depois de repetir muitas vezes a mesma ideia, ficamos todos convencidos de que, em último recurso, prepara-se a mala com o pijamita e uma muda de roupa interior, e toca a ir combater o Urso. Em meia dúzia de dias fica o assunto arrumado, e retaliação é coisa que não existirá seguramente porque as forças do mal não poderão prevalecer contra os ventos libertadores atlantistas. É isto que pensarão aqueles que apoiam, sem pestanejar, uma intromissão da NATO no leste da Ucrânia. Os longos períodos de paz trazem consigo o tremendo risco de deixar os indivíduos inebriados dentro de uma nuvem de optimismo ilusório, incapazes de prever que pequenos actos políticos, provocações, tensões podem converter-se rapidamente em guerras totais, longas e depauperantes.

Restringidos ao diz-que-disse que é transmitido entre encontros diplomáticos e meios de comunicação, somos obrigados a deduzir alguma coisa a partir das migalhas que vão caindo da mesa de negociações, ou seja, ficamos a saber que a determinada reunião foi “constructiva” ou “difícil” ou “fracassada”, sem conhecermos a natureza dos entraves levantados e a verdadeira disposição para as negociações de cada uma das partes. A partir daqui podem cometer-se as mais diversas deturpações e injustiças por parte de quem detém o poder político e cabe-nos a nós ganhar algum discernimento, fazendo o exercício mental de nos colocarmos na pele de cada um dos líderes. Sabemos, por exemplo, que em Dezembro de 2014 os deputados ucranianos deram um passo para aconchegar a Aliança Atlântica junta da fronteira com a Rússia ao renunciarem o estatuto de “não-alinhado”. Uma prenda de Natal no sapatinho do Kremlin por parte de quem pretende ignorar a diversidade do povo que governa, e refugiar-se debaixo do chapéu da NATO, mostrando-se falta de sensibilidade histórica, geoestratégica e cultural.

Em segundo lugar, sabemos que um cenário de confrontação é o mais indesejável para todas as partes – a menos que os confrontos estejam muito longe da vista, como acontece a certos falcões com vícios de unipolaridade muito arreigados – porque consumiria tempo, dinheiro e “carne para canhão” que tanto a Europa como a Rússia não se podem dar ao luxo de esbanjar. Adicionalmente, a última coisa de que a humilde dupla Merkollande precisaria agora era de uma guerra que pusesse em evidência a sua pouco prestigiante dependência face aos EUA no domínio militar; e a sua evidente dependência energética face à Rússia, porque será no nosso quintal que se farão sentir as retaliações do Kremlin e não no outro lado do Atlântico. E, por fim, como reza a História recente da Europa, “gato escaldado, de água fria tem medo” e isso é dos melhores antídotos para a guerra.

Em terceiro lugar, é bom recordar que há cerca de um ano a solução federativa para a Ucrânia aparecia mencionada numerosas vezes mas, entretanto, tem sido estranhamente (ou não) alienada do debate político. Isto porque, ao contrário de algumas dissimulações ocidentais que só adoptam um discurso claro na hora de declarar guerra aberta a um território, Moscovo tem-se mostrado sempre defensora dessa solução. E como cabe às elites ocidentais demarcar a fronteira entre iniciativas boas e iniciativas más, indignações espontâneas e faccionismo manipulado, federações prósperas e federações instáveis, referendos democráticos e referendos despóticos, independentismos gloriosos e independentismos terroristas, é lógico que, uma vez que Putin simpatiza com a solução federal, temos aí o sinal de que só pode ser uma má solução. Uma visão muito simplória, adoptava apenas por quem acredita na sustentabilidade de um projecto político que, ao ignorar as divisões culturais do actual Estado ucraniano, pretende forçar todos os seus cidadãos a favorecer comercialmente o espaço europeu em detrimento das ligações profundas com o leste. Na sequência do favoritismo aduaneiro, segue-se invariavelmente a influência política, o alinhamento ideológico (nada aqui é neutral) e a cumplicidade/subserviência militar (no quadro da NATO). Não vale a pena ter ilusões. O respeito pelo direito à autodeterminação só vale para o Ocidente quando a mudança de um povo se propõe a obedecer aos valores que as democracias euro-atânticas promovem e aprovam.

Hostilidade com hostilidade se paga e sabemos bem qual o preço de se enveredar pelo caminho da humilhação e vingança desproporcional contra um país. A forma mais simples e rápida de humilhar um inimigo é excluindo-o de eventos internacionais (punição simbólica) e aplicando sanções económicas. Sendo, em qualquer caso, uma estratégia pouco recomendável por levar a um acirrar dos ânimos internos do país humilhado, some-se a isso a particularidade de estarmos a falar de uma potência regional. Assim, um possível discurso de vitimização e crítica ao Ocidente que possa daí advir – e que já ficou visível no discurso de Lavrov, ministro das Relações Externos, na Conferência de Segurança de Munique deste mês – está ao mesmo nível (ou até um pouco acima) da postura propagandística norte-americana com as suas alusões aos bichos-papões da Guerra-Fria e à vocação universalista dos EUA.

A escalada de violência só ganhará aceitabilidade se as justificações para a guerra se centrarem, de forma hábil e desonesta, numa discussão mútua acerca dos litros de sangue derramados pelo rival, do nível de oligarquização em redor dos seus governos, dos traços de personalidade, pecados e fraquezas de cada um. Quanto a estes tópicos, não há nada de novo debaixo do sol. Só se a discussão ficar reduzida à ridícula disputa que procure auto-legitimação com base nos erros do rival, só se a opinião pública e os líderes europeus pactuarem com isto é que a prontidão belicista surgirá como panaceia para a instabilidade que se instalou no “cordão sanitário”. Tudo isto estaria longe do horizonte se as lideranças estivessem dispostas a perceber a ténue fronteira que separa a retórica da efectiva acção política. Entre as intenções e a aplicação da vontade vai um pequeno passo e, em 2008, também na Conferência de Munique, um palco para os ressentimentos, ninguém levava a sério a hostilidade presente no discurso de Putin. A génese dos motins, indignações, separatismos é sempre nebulosa (teorização, meios de propaganda, financiamento, etc) e quem se vê prejudicado por qualquer um desse tipo de acções colectivas, encontra nesse carácter nebuloso um argumento para as descredibilizar. O facto é que, mesmo quando as origens são questionáveis e pouco inocentes, iniciativas dessa natureza só encontram eco onde há alguma correspondência com a verdade e aspirações por preencher. E as divisões leste-oeste são uma dessas pontas de verdade. Uma vez instalada a confusão, há que saber resolvê-la da melhor forma.

Se Obama e os membros do Congresso estivessem genuinamente interessados em ajudar a preservar a independência da Ucrânia, demitiam-se de qualquer envolvimento. Não colocariam a hipótese de disponibilizar armamento, somente por conta dos lindos olhos de Poroshenko, quando, depois de punirem directamente as empresas e os consumidores russos com as suas sanções arbitrárias – e que até deixaram intacta a popularidade interna de Putin – se propõem a perturbar ainda mais a vida de um povo que está saturado de confrontos indesejados. Qualquer solução pacífica tem de passar por respeitar as lealdades e diferenças, deixando o caminho livre para a cooperação com os parceiros que cada grupo bem entender e sem que exista divisão entre cidadãos de primeira e cidadãos de segunda por cegueira constitucional. Se a única forma de superar discordâncias políticas e culturais for a fragmentação em favor de uma federação, não se entende em que é que uma eventual guerra orquestrada pelos interesses dos governos envolvidos se pode assumir como receita de utilidade superior (e escusado será categorizar a opção do ponto de vista moral) para salvaguardar os interesses comerciais, sociais, culturais e linguísticos nesta vasta região, já demasiado fustigada por experimentalismos, planificações e liquidações populacionais.

Radicalismos vs Ambiguidades

O meu mais recente texto no Instituto Ludwig von Mises Portugal.

A Falência do Centrão na Era das Ambiguidades

Não é fácil perceber se a falência do centrão é uma causa ou uma consequência das posições radicais, mas parece mais plausível reunir ambos numa evolução em que são inversamente proporcionais, à medida que respondem – ou deixam de responder – aos problemas mais prementes da sociedade em determinado período. É inútil analisar, e até decidir alinhar, pelo radicalismo ou pela moderação/continuidade sem passar em vista alguns aspectos básicos referentes à democracia e algumas causas que parecem estar prestes a conduzir a uma ruptura institucional. As eleições para o Parlamento Europeu, em 2014, foram o primeiro abanão indisfarçável que fragilizou o “estado de graça” dos partidos socialistas e social-democratas, quando a insatisfação dos eleitores se materializou, com especial destaque, na ascensão do UKIP na Grã Bretanha (24 deputados), da Front National em França (23 deputados), do Podemos em Espanha (5 deputados), do Syriza na Grécia (6 deputados), do N-VA na Bélgica, para além da conquista de visibilidade política por parte de pequenos partidos nacionalistas e eurocépticos. Depois desse primeiro abanão – e para avivar a memória daqueles que pudessem achar que aqueles resultados eram fruto de uma mera rebeldia pontual –, chega-nos a vitória do partido Syriza nas eleições legislativas gregas de 2015. Muito haveria a dizer para explicar este resultado, mas não nos interessa agora abordar as especificidades dos gregos enquanto povo, discorrer sobre a ignorância racional dos eleitores, bracejar e clamar para que se ponha o país de quarentena, temendo contágios, nem saber se os eleitos são mais ou menos bons (a nível técnico, ético ou psico-afectivo). O que a vitória do Syriza e os resultados das eleições europeias de 2014 têm em comum é o esmorecimento do centrão (no caso grego, o esmorecimento do PASOK e da Nova Democracia.)

(…)

Ainda que pareça paradoxal, é uma consequência natural que a oligarquição da representatividade se conserve graças ao sufrágio universal. O desgate dos partidos passa também pela percepção de que a oligarquização se alimenta do distanciamento entre a deliberação e o eleitorado. É que a personalização da política tem beneficiado muito do recurso contínuo aos meios de comunicação para tentar criar carisma aos olhos dos indivíduos e padronizar a opinião pública, mas os meios de comunicação são mais uma das muitas armas que pode virar-se contra quem a usa. A proliferação de informação em permanente actualização e a publicação de opiniões em variadas plataformas acessíveis a qualquer indivíduo, complica a vida a qualquer líder em democracia, ajuda a minar rapidamente a credibilidade de quem fracassa/corrompe/silencia, ao mesmo tempo que disponibiliza os canais necessários para divulgar opiniões, procurar alianças e criar projectos que escapam ao espectáculo de omissões e dissimulações da partidocracia.

As omissões podem ter consequências mais determinantes em política do que aquilo que efectivamente é feito ou dito. É também aqui que o radicalismo vai absorver parte da sua força: no silêncio dos partidos de centro a respeito de problemas que os cidadãos, no terreno, já detectaram há muito tempo – refira-se que os cidadãos, regra geral, não estarão igualmente sensíveis em todos os domínios, pelo que é natural manifestarem rápida e fiel compreensão em assuntos que lhes são caros no dia-a-dia, como por exemplo em matéria de segurança, enquanto, por outro lado, aceitam passivamente o acesso a crédito fácil ou promessas de regalias suportadas à custa dos seus concidadãos. Eis algo em que dificilmente todos os partidos “radicais” dificilmente concordariam, apesar de a existência de pontos em comum induzir na tentação de os lançar para uma única categoria mal compreendida, com a mesma leviandade com que subestimam as razões destes movimentos políticos que fogem ao consenso oficial. Tendemos a subestimar os nossos inimigos até ao momento em que somos afrontados por uma humilhante derrota. Contudo, o adiar do inadiável por quem detém o poder gera crescente preocupação e sentimento de negligência nas bases, o que ajuda a explicar que se defendam soluções de ruptura em detrimento do conformismo sujeito à continuidade do status quo.

Desprestígio do ensino vocacional: um golpe igualitário

Podem encontrar o meu artigo completo, no site do Instituto Ludwig von Mises Portugal.

O momento em que o aluno decide o seu próprio rumo escolar é um dos mais determinantes para a sua vida e não é vantajoso para ninguém que essa decisão seja tomada de forma leviana ou desinformada. Contudo, se um excesso de cautela leva a que se subestime a autonomia dos indivíduos, abre-se caminho a uma intromissão política crescente que irá transformar as salas de aulas em espaços de nivelamento na mediocridade e de escassez de criatividade, forçando os alunos a seguirem um ensino obrigatório, alargado a longo prazo, e uniforme a nível programático.

Se a ânsia de prosseguir políticas educativas racionalistas acaba por fazer vergar a vontade dos alunos e passa a invadir um espaço de influência que deveria estar reservado essencialmente ao indivíduo e à família, essa tendência política irá infantilizar a capacidade de escolha dos alunos e poderá dar azo ao estabelecimento de metas irrealistas a nível económico, político e social. Uma meta irrealista nesta matéria será, por exemplo, – e porque os objectivos vocacionais não se livram do risco de incorrer em racionalismo planificado – almejar que seja atingido um determinado número de inscrições em cursos técnico-profissionais pela modalidade de ensino dual, e não ter em conta a capacidade de absorção do tecido empresarial nacional. No caso português, recorde-se que predomina uma racionalização das políticas planificadas centralmente, o que prejudica ainda mais a persecução de objectivos educacionais que devem ser geridos de acordo com as especificidades e oportunidades regionais.

Sob a justificação de igualdade de oportunidades, sacrificam-se, muitas vezes, a liberdade e a responsabilidade; nomeadamente, a liberdade de não gastar tempo inútil (12 anos de escolaridade obrigatório, no caso português) em programas escolares generalistas quando não há intenção de prosseguimento de estudos, e a responsabilidade de, mediante as reconhecidas capacidades pessoais, verificar as possibilidades reais do mercado de trabalho. As oportunidades vão estando previstas e têm sido dados passos positivos desde os anos 80, passada a fase de extinção do ensino comercial e técnico que aconteceu a partir de Junho de 1975, pelo desejo de combate à perpetuação das desigualdades sociais. Um golpe ideológico que muito terá contribuído para desprestigiar as profissões técnicas. Este espírito revolucionário cunhado nas decisões políticas, indiferente às necessidades de mão-de-obra qualificada e de diversidade de competências, levou a que fosse tentada uma reinvenção do ensino profissional, em 1983, por José Augusto Seabra, mas que não alcançaria sucesso devido à falta de adesão dos alunos, já pendendo preferencialmente para o continuação dos estudos. Só em 1989 é que viria a arrancar a reforma do ensino secundário que, entre outros objectivos, procurava promover a multiplicação da oferta formativa profissionalizante.(5)

As palavras de Merkel, já aqui referidas, causaram escândalo porque tem vindo a persistir um problema grave de expectativas entre os licenciados. A maioria das pessoas é atingida, directa ou indirectamente, quando confrontada com esta desagradável realidade (alunos, familiares de alunos, docentes, etc.). Mais do que um problema de massificação e de mediocridade no ensino superior, sofre-se pelo problema inevitável da falta de credibilidade (naturalmente, em consequência dos dois anteriores).

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A progressiva inaptidão de um famoso ou o medo de ser linchado

Em alguns espaços informativos e de comentário político – recordo-me em particular do Prós e Contras de ontem – vai-se ouvindo falar do perigo da “justiça espectáculo”. Curiosamente, ou não, este alerta é pronunciado pelos mesmos que se referem a uma “crise da democracia”. Parece-me que há aqui um mal entendido, mas a nebulosa utilização, ou invenção, de certos conceitos também não ajuda.

Se uma pessoa preza sobretudo a privacidade e a discrição, tem interesse em escolher uma casa mais isolada, com as desvantagens que essa decisão comporta; por exemplo, a desvantagem de estar mais desamparada em caso de emergências ou o risco de ser esquecida pelos amigos no dia-a-dia. Por outro lado, se determinada pessoa privilegiar o hábito de ser o centro das atenções, exibindo-se como figura de proa ou vedeta, tenderá a situar-se onde as luzes o alcancem permanentemente. Claro está, se as coisas começarem a correr em seu desfavor, continuará exposta num espaço de centralidade no espaço público. Todas as decisões têm um preço a pagar. Agora, apliquemos isto à democracia moderna – aquela em que nunca chegamos a conhecer com proximidade aqueles que nos representam. José Sócrates deverá ter uma eterna dívida de gratidão para com o mediatismo que deu visibilidade à sua esperteza, habilidade discursiva e ao efeito aglomerador do seu carisma entre a numerosa claque de fãs, em especial na juventude partidária, que fez despertar num dado momento político. A génese da “lufada de ar fresco” socrática remonta a anos em que eu ainda nem tinha idade para votar; ainda assim, é precisamente nessa condição inexperiente que posso testemunhar, de diferente prisma, a irracionalidade que envolve a entronização de figuras políticas em democracia, por ter visto tantos da minha geração, rendidos na defesa de um líder político que mal percebiam e ainda pouco conheciam (aqui ainda temos a atenuante da tenra idade mas há quem continue a fazer a mesma figura aos 40 anos). A democracia e a massificação de opiniões sobrevive disto; de um deslumbramento que não se apercebe da sua falta de conhecimentos e de fundamentos racionais. Assim, defende-se a ilusão de que todos gozam de autonomia, racionalidade e igual capacidade de emitir opiniões informadas, livres de paixões.

Quem precisa de sustentar esta ilusão para ser eleito, está bem ciente da forma como ela funciona. E também deveria perceber que, onde existem simpatias desregradas, também há legítimo espaço para o outro lado da moeda: ódios desregrados, tanto da parte daqueles que nunca nutriram simpatia pela figura em causa, como por aqueles que reverteram a simpatia em antipatia, ao sentirem-se desapontados ou atraiçoados.

Ninguém precisa de temer que a justiça ceda ao espectáculo porque, seguramente, isso não irá suceder. Há uma hora e um espaço para tudo. Talvez por saberem que isso não vai suceder é que insistem em confundir aquilo que é do âmbito da justiça com aquilo que é do âmbito da sociedade civil ou do âmbito do jornalismo, visto que o julgamento informal por parte dos portugueses está a deixar muitas figuras numa vivência confrangedora e desprovida de melhores argumentos. Vão ter que se habituar … aquele que vive pela espada, pela espada morrerá.

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A Igreja acolhe o pecador ou o pecado acolhe a Igreja?

Quando existe pouca vontade de discutir um assunto com seriedade e abertura, é frequente arranjar rótulos rápidos que enterrem o adversário no lamaçal. Eu destaco dois que são muito populares em dois domínios diferentes: o de “fascista” e o de “fariseu”. O rótulo de “fascista” está tão sobrecarregado e esvaziado que nem precisa de mais ridicularizações e considerações. O rótulo de “fariseu” serve um propósito semelhante e revela a mesma falta de criatividade, neste caso, de quem tenta apropriar-se do lado benevolente da falsa dicotomia entre amor (caridade) e justiça. Transpondo isto para o domínio político, corresponderia à exploração da dicotomia entre liberdade e autoridade.

Dos muitos usos que o termo “fariseu” tem tido durante séculos, a mais recente aplicação tem sido explorada em consequência da vaga de entusiasmos que tem cercado o Papa Francisco, e nomeadamente, para irmos directos ao exemplo mais recente, em consequência do ímpeto com que muitos olham para o Sínodo dos Bispos dedicado à família, depositando esperanças numa deformação da doutrina à medida das exigências e impulsos de cada um. Num contexto de grande polvorosa mediática em que as vozes que mais sobressaem são, tantas vezes, as daqueles que estão fora da Igreja e nem sequer querem entrar, chama-se “fariseu” a todo aquele que diz o óbvio: que o amor (caridade) pode ser interpretado como a roda dentada de uma engrenagem que não funciona sem a presença de outra roda dentada, a justiça.

Por outras palavras, se o homem tem uma dignidade intrínseca e total liberdade para dizer “sim”, se quer dar prioridade à vivência espiritual em detrimento dos bens materiais temporários, ou seja, se escolhe a conversão, é porque crê que é ele que precisa de ajustar a sua conduta e as suas prioridades; se passa a confiar nos ensinamentos da Igreja é porque lhes reconhece superioridade, tanto pelo discernimento com que passa a interpretar a realidade, como na utilidade prática que encontra quando decide aplicá-la. Visto que cada pessoa é livre de decidir o seu destino, quer isto dizer que a porta da Igreja está incondicionalmente aberta para acolher todos aqueles que se dirigem a ela com arrependimento; não é a Igreja que deve especializar-se em segmentação de mercado com vista a atrair as pessoas através de pacotes diversificados, vergando a sua coerência doutrinal para servir as mudanças de humor e as fraquezas humanas que possam alastrar com aceitação na sociedade.

Não é curioso observar que, entre os mais intransigentes defensores do laicismo dos Estados – sempre horrorizados com a mais leve possibilidade de haver algum derrame de influência espiritual sobre as instituições públicas – podemos encontrar empenhados promotores da inclusão dos vícios políticos na esfera espiritual? Afinal, de que vale defenderem a separação entre Estado e Igreja, se aquilo que pretendem é secularizar os processos, democratizar as decisões, amolecer a doutrina e incutir na Igreja as inconstâncias tipicamente parlamentares e a confusão inerente à mutabilidade da legislação do dia-a-dia?

É fácil identificar uma certa sintonia entre desequilíbrios que caracterizam as democracias ocidentais (desequilíbrios que se geram, em parte, com a ajuda e por culpa do eleitorado) e aquilo que são as reivindicações e anseios da opinião pública ocidental face ao que se passa na Igreja Católica. Os desequilíbrios vão-se revelando das seguintes formas:

1 – Negação da culpa e desresponsabilização pessoal;
2 – Banalização da lei, associada aos amontoados legislativos, e consequente descredibilização da justiça;
3 – Indiferença, ou até aversão, à autoridade (seja ela qual for);
4 – Insaciável apelo a mudanças constantes, adaptadas às singularidades de cada momento e que sejam reflexo dos interesses dos grupos com maior influência. Multiplicação de solicitações igualitaristas;
5 – Volubilidade das leis servindo de incentivo à corrupção e dissolução moral.

Se as leis de uma Nação mudam com o vento, quem as levará a sério? Se perdem a sua razão de ser, deixando de demonstrar um padrão simples, fixo e imutável, o que é que as torna preferíveis e respeitáveis? Contudo, esta é precisamente uma das faces das democracias modernas e um dos factores a ter em conta quando observamos o aumento da criminalidade e do sentimento de impunidade. Quando à dissolução moral, podemos encontrá-la associada também à desresponsabilização pessoal e chegamos ao combustível das promessas eleitorais que exploram o atomismo social e a dependência dos cidadãos em situação de fragilidade.

Se isto faz sentido no domínio político, não será óbvio que a Igreja não tem nada a aprender com os métodos mundanos que estão na moda? Ou as “tiranias da maioria” deixam de ser aborrecidas e aturam-se bem desde que preconizem uma agenda que nos agrade? Na mesma linha de comparação, se percebemos as consequências resultantes das ideologias que levam a um esvaziamento das funções e das responsabilidades pessoais, se conseguimos ver a dependência em que se lançam todos aqueles que acreditam no nivelamento e na acção afirmativa do Estado, não conseguimos também estabelecer ligação entre, por um lado, a negação de culpa e, por outro, o desespero e a angústia de ficar aprisionado a ela por não ter existido um farol moral que encorajasse a remodelação pessoal? Por fim, é fácil prever que quanto mais a Igreja fosse beber aos apelos e métodos que a opinião pública encoraja, mais descredibilizada passaria a estar a sua própria autoridade, menos solidez teriam os seus ensinamentos e menos nítida seria a Verdade.

Neste texto da Maria João, no Observador, encontramos uma alusão à parábola do Filho Pródigo e isto leva-me ao ponto em que comecei: a dicotomia entre amor e justiça. Por sua vez, a parábola levou-me a pensar naquilo que os bons alunos costumam sentir quando o professor fica eufórico com uma boa nota de um aluno que costumava estar entalado nas negativas há imenso tempo, e que precisou de empreender um grande esforço para alcançar um aproveitamento escolar satisfatório. Obter um 4, numa escala de 1 a 5, é algo trivial para alunos sem dificuldades e que andam nos eixos em termos de concentração, presença e cumprimento de tarefas. Já para outros que, imaginemos, possam cair numa rebeldia passageira no decurso de uma fase familiar menos boa, recuperar de uma negativa é uma tarefa muito mais exigente que depende da vontade e do esforço pessoal que visa compensar o tempo perdido. Para dar outro exemplo, um professor também pode ficar mais orgulhoso por conseguir puxar um aluno que revela menos capacidades intelectuais mas que trabalha incansavelmente para as superar. Isto significa que o professor tem preferência por alunos rebeldes, desgarrados ou menos inteligentes, enquanto desvaloriza os alunos que mantêm um bom desempenho – mesmo sem grande esforço – e um comportamento exemplar? É lógico que não. Acontece que alguns professores fazem questão de gastar tempo e dedicação com aqueles alunos que demonstram ter vontade de mudar e de se superarem.

Se um professor chegar em frente à sua turma e disser que vai deixar de usar critérios de avaliação, permitindo que todos transitem de ano independentemente de qualquer avaliação; se disser que ter 5 é vaidade e que quem incentiva tal resultado está a oprimir a liberdade e a criatividade dos alunos, é fácil prever os efeitos disto. Felizmente, não é isto que acontece quando os professores se empenham tanto com os “filhos pródigos” da turma. Está ali sempre subjacente uma mudança de atitude do aluno.

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