A época em que vivemos está muito marcada por um disfuncional amor às causas distantes (diferente de causas grandiosas), aos compromissos globais, aos objectivos inalcançáveis, às promessas utópicas e, consequentemente, está muito exposta a repressões também globais impostas por lideranças distantes que nada significam para cada um de nós. Esta viciosa tendência para o global é usada sobretudo por dois motivos: porque quem detém o poder realiza alterações jurídico-legais, propositadamente para incutir mudanças estruturais e mudanças simbólicas e para dirigir a opinião pública; e porque, entre o comum dos mortais, essa tendência para o global serve para colmatar a falta de acção, de vocação, ou de coragem face às necessidades e responsabilidades nas instâncias mais baixas de actuação cívica e política.
Na primeira situação, há inclinação para o global porque se tem poder para isso e não há oposição que faça frente, já que a maior parte da sociedade é naturalmente anestesiada e conivente, – e sem meios de reacção, mesmo que exista vontade de empreender alguma reacção entre aqueles que têm capacidade crítica perante o caos. Quanto ao segundo caso, a preferência por preocupações globais explica-se, em parte, porque as qualidades e as competências práticas que são imprescindíveis na sustentação de pequenas comunidades, passam a ser supérfluas no contexto da superorganização atomizante. Assim, aquelas inclinações e aptidões naturais muito úteis na resolução de problemas correntes do dia-a-dia, são destreinadas e alienadas para o nível das meras qualidades abstractas quando deixam de ser necessárias.
A concentração das atenções naquilo que é genérico e distante alastra um pouco por todos as áreas, mas eu apresento quatro exemplos elucidativos que, de alguma forma, se relacionam: 1) a multiplicação legislativa decorrente da “acção afirmativa” incentivada a grande escala no combate às desigualdades, e de que é mais recente exemplo a decisão do Supremo Tribunal dos EUA que impõe a todos os Estados a legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo; 2) a utilização da censura uniforme a nível internacional; 3) o acolhimento acrítico de vagas incessantes de imigração chegada à Europa; 4) e as preocupações ambientais, que voltam a ganhar mediatismo devido à recente encíclica do Papa Francisco.
1) Relativamente à permanente acção política de combate às desigualdades, é óbvio que esta transformação de caprichos de uma ínfima parte da população em temas de centralidade no debate público só é possível quando há um grande desfasamento entre os decisores políticos e as preocupações da generalidade dos governados. Em primeiro lugar, é graças a esse desfasamento que as lideranças políticas são facilmente captadas por grupos minoritários empenhados em fazer avançar as suas agendas políticas, mesmo que isso implique prejuízo da estrutura cultural em que estão inseridos. Em segundo lugar, a permeabilidade da sociedade é maior quando estas mudanças legais, de impacto prático e simbólico, se mantêm na esfera da bondade abstracta e quando poucos estão interessados em ir verificar as verdadeiras intenções de quem moveu as referidas decisões – por exemplo, raramente alguém se irá interessar em verificar, depois de o trabalho estar feito, a relevância dessas “conquistas” legais no dia-a-dia de quem tanto as defendeu. A novidade norte-americana gerou um rápido efeito de contágio acéfalo nas redes sociais e, mais uma vez, a exteriorização de apoio público ao activismo LGBT proporcionou uma sensação de conforto colectivo e de missão caritativa socialmente louvável e exibível.
2) Mas não é somente a acção política que beneficia deste distanciamento entre quem manda e quem obedece. As transformações legais que têm sido promovidas não estariam garantidamente protegidas de ameaças se não se fizesse uso de uma das ferramentas mais velhinhas e importantes para o fenómeno do poder: a censura. A inevitável presença da censura na sociedade faz-se sentir na política, na academia, no entretenimento, na religião e em todos os espaços que se revelem importantes para a legitimação da ordem social dominante. Por muito que custe admitir aos crentes no debate puramente racional e equilibrado – em que, supostamente, os intervenientes começam a debater de pontos de partida neutros e com total receptividade a argumentos racionais, rumo à descoberta da verdade – a realidade não corrobora esta visão optimista porque não é dessa forma que a larga percentagem da população funciona e pensa (e todos observamos isso). A opinião pública é sempre dirigida, por pouco simpático que seja admiti-lo. Quanto mais numerosa for a turba numa democracia em que todas as opiniões são valorizadas por igual, mais estúpida (e menos consciente dessa estupidez) ela se torna.
Posto isto, o recurso à censura não é motivo de espanto ou de reprovação – ainda que seja divertido confrontar os donos da falsa tolerância cosmopolita com esta ironia incontornável. O problema é que a censura com que nos deparamos agora é sobretudo uma censura internacional ao serviço de indivíduos que não têm apenas o interesse legítimo de proteger os organismos colectivos que integram, mas que têm, para além disso, interesse em domar a acção e prejudicar os interesses internos de outras nações. E, claro, como em tudo o que se decide a nível global, as pessoas estão muito mais indefesas diante deste tipo de censura que em nada as beneficia, mas a que não conseguem fazer frente. Veja-se a indiferença generalizada em relação à reivindicação sionista que exige uma censura (ainda mais?) internacional a todo e qualquer discurso anti-semita manifesto na internet. O problema, mais uma vez, prende-se com este substituição da importância da censura de proximidade por uma indiferença perante censura que é estranha às nossas particularidades. Nos países ocidentais, qualquer censura assumida está fora de questão se partir de lideranças políticas nacionais (e a mesma resistência é cada vez mais sentida até no domínio religioso que persegue os mesmos anseios de democratização e de resistência às hierarquias), mas as mesmas pessoas aceitam doutrinamento e punição quando desrespeitam a dogmática das democracias liberais. Ou seja, a censura é bem tolerada enquanto instrumento de legitimação da presente ordem progressista a grande escala (combate aos denominados “discursos de ódio” sexistas, racistas, homofóbicos, xenófobos, etc), mas já não é compreendida como meio de defesa de um corpo contra as inclinações que são prejudiciais para o todo e em favor da vitalidade a longo prazo. Pior ainda, a censura é cada vez menos uma ferramenta de utilidade para a saúde da “pólis”, que vise evitar o alastramento de “cancros”, e cada vez mais uma ferramenta que invade e aniquila completamente as acções e pensamentos privados.
3) Outra área em que se perde a vitalidade e sabedoria local por excesso de benevolência e tolerância é a da política de imigração. É por nos conhecermos cada vez menos que ficamos susceptíveis a qualquer imposição que leve o carimbo de consentimento das lideranças políticas europeias, muitas vezes sem pressentirmos o real impacto que determinadas decisões vão provocar no amanhã. Das lideranças políticas europeias ao Papa, quase todos parecem ignorar que os homens não estão vocacionados para um altruísmo indiscriminado, à prova de bala e, tantas vezes, suicidário. As sociedades ocidentais são agora caracterizadas pela falta de empatia nas interacções sociais, desconfiança, hedonismo, objectivos de curto prazo, elogio à mediocridade, pouca predisposição para a cooperação, fraca estima pelos recursos e pelo próximo, e fraude endémica. É caricato que, em vez de se procurar curar estas degenerações, se incentive a maior fragmentação social, a violência e o maior peso na balança de dependentes da providência estatal, promovendo uma caridade inesgotável e jogando com argumentos que vão completamente ao arrepio do que seria aceitável no seio de um pequeno grupo com uma palavra a dizer e que não estivesse sujeito a simples caprichos universalistas inconsequentes, falsas remendos para a necessidade de rejuvenescimento na Europa ou a irresponsáveis incentivos à recepção de mão-de-obra barata.
Com recurso a exageros, por vezes, é mais fácil perceber o que está em jogo. Citando Konrad Lorenz (em O Homem Ameaçado): “Um homem normal segue estes Mandamentos por inclinação natural, sempre que se trate de uma relação com os seus amigos pessoais. Ninguém rouba ou mente a um amigo, muito menos alguém desejará a sua mulher e menos ainda ousará matá-lo. Os Dez Mandamentos só começam a perder a sua eficácia fundamental através do crescente anonimato da sociedade humana. (…) Num grupo de pessoas amigas, cada um seguirá com relativa fidelidade os Dez Mandamentos. Será até capaz de se expor a grandes perigos para salvar um amigo de uma má situação, a custo da própria vida. Um sociólogo americano calculou que o número ideal para um grupo, unido por laços de profunda amizade, é o onze. (…) O homem, mais do que perverso desde a sua juventude, é sim suficientemente bom para uma sociedade de onze pessoas, mas não “bastante bom” para se inserir numa sociedade de massas, como membro anónimo e pessoalmente desconhecido, do mesmo modo que se integraria no pequeno grupo como indivíduo que todos conhecem e estimam.”
Não se trata aqui, obviamente, de colaborarmos apenas dentro de grupos com pouco mais de onze elementos, embora isso seja adequado no desporto ou em pequenas conspirações e tertúlias. Trata-se antes de perceber a tendência e os limites da empatia e da confiança entre indivíduos e de não os forçar em demasia. Esquecemos os compromissos e sacrifícios que seria conveniente encetarmos a nível de proximidade porque não nos conhecemos, não precisamos de nos conhecer e não saberíamos muito bem o que fazer se nos viéssemos a conhecer. Contudo, a maior agravante neste estado de coisas é a atitude humanitarista que nega a própria identidade e que se predispõe a receber todos os que lhe batem à porta, ostentando uma reacção débil e efeminizada, e acumulando um potencial de conflitos na própria “casa”. Dentro de casa é que é tudo mais rotineiro, mais repetitivo, e é dentro de casa que os indivíduos são mais espontâneos e autênticos. É lá que os limites da paciência, a generosidade, o sentido de humor, as aptidões e as fraquezas se dão a conhecer totalmente. A casa é sagrada e não há espaço para constantes incursões de estranhos que quebrem hábitos e laços.
4) Por último, e porque já referi a “higiene” no campo das ideias, aplicada por via da censura, falta referir as preocupações ambientais propriamente ditas. Uma defesa da fraternidade ecológica universal, é uma possível síntese da encíclica “Laudato Si”. Neste último exemplo, não ponho em caso a legitimidade das preocupações ambientais, nem a importância de cada um se sentir responsável por estimar o meio envolvente, e nem desvalorizo a sabedoria de muitos dos pontos levantados ao longo do documento. Chamo a atenção apenas os alvos que procura criticar, a pertinência do tema, o âmbito da preocupação e o que propõe como salvação. Não falta por aí quem, sob pretexto de querer salvar o planeta, queira forçar novos modelos de desenvolvimento como forma de autoflagelação por pertencer a um espaço civilizacional excessivamente avançado e produtivo. Este encorajamento papal vem reforçar essas posições e está sempre subjacente a necessidade de distribuição, como no caso em que se refere a uma “dívida ecológica” do Norte em relação ao Sul.
Depois, é verdade que o Papa Francisco salienta que os centros de poder não têm contacto directo com os problemas mas, por outro lado, apela a uma consciencialização demasiado global sem horizonte de exequibilidade e que peca por atribuir demasiada bondade ao ser humano, vendo-o quase como bom selvagem em que a perversidade só irrompe quando é exposto à tecnologia e à finança. Em resumo, ficamos com simples tentativas de persuasão genérica que não logram qualquer resultado entre aqueles que nunca nutriram o mínimo de apego e respeito pelo meio em que vivem e que transformam. O âmbito da preocupação é outro ponto crítico; “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral”; e “a interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projecto comum.” Mais uma vez, note-se o preocupante nível de abstracção e de ambição a que chegamos, quando se pretende sensibilizar milhões de pessoas para um tema relativamente superficial e acessório, que consegue ser, contudo, um bom escape de conversa para aqueles que não queiram ferir susceptibilidade, abordando temas actuais como os três que exemplifiquei anteriormente.
É no conforto das causas globais e na bondade desligada da utilidade social e da consciência de uma moralidade colectiva, validada pelo tempo e pela resistência face às ameaças externas e internas, que se refugia todo o cobarde que ama o mundo sem amar, preferencialmente, aqueles que lhe são mais próximos. É nesta ambiente de cobardia social que as grandes decisões políticas são perpetradas, sem que haja energia para contraditório.