Cluelessness

Eis uma boa palavra para descrever a qualidade comum a grande parte dos esquerdistas; especialmente aqueles que já estiveram no poder e que agora, afastados dele, continuam sem perceber o que fizeram de errado. Um bom exemplo é o artigo de Michel Rocard publicado no Jornal de Negócios, comentado aqui em baixo pelo Helder e muito apreciado pelo João Rodrigues no Ladrões de Bicicletas.

Numa leitura rápida o artigo parece razoável, se excluirmos o apelo à regulação e centralização no fim, algo inerentemente parte do ADN socialista. Mas uma leitura mais cuidada mostra inconsistências que levantam a questão de se Rocard percebe realmente alguma coisa do que está a escrever.

A certa altura, escreve: «(…) nos últimos 25 anos, a proporção de salários directos e indirectos em percentagem do PIB caiu entre 8% e 11% [nos países desenvolvidos]. Consequentemente, os empregos precários e a insegurança laboral, que pouco se faziam sentir entre 1940 e 1970, afectam, actualmente, mais de 15% da população do mundo desenvolvido.» Não há aqui relação causal. A afirmação é falsa. É normal que em países desenvolvidos o rendimento do capital aumente proporcionalmente face ao rendimento do trabalho. A economia torna-se mais capital intensive. O capital acumulado é muito maior, com consequente peso no rendimento. Sendo estas economias abertas, existem oportunidades de investimento noutras economias em desenvolvimento, cujo retorno pode surgir na forma de lucros das empresas, que também são rendimento do capital. Isto não tem nada a ver com precaridade ou insegurança laboral.

Logo a seguir, afirma: «O salário médio real tem-se mantido estável nos últimos 20 anos nos Estados Unidos, com 1% da população a captar todos os ganhos resultantes do crescimento de 50% do PIB no mesmo período. Esta situação “libertou” muita liquidez para as actividades financeiras, empreendimentos de risco e especulação.» É falso que o salário médio real nos EUA esteja essencialmente ao mesmo nível de há 20 anos. Isto seria, inclusivamente, incompatível com a observação anterior de uma mera diminuição de 8 a 11 p.p. no peso dos salários no PIB nos últimos 25 anos. A mediana dos salários reais é que subiu muito pouco nestes 20 anos. Mas esta medida não nos dá qualquer informação de como evoluiu o rendimento médio dos 50% da população que estão abaixo da mediana. Adicionalmente, e mais grave, a ideia de que 1% da população se apropriou de todo o crescimento do PIB é absurda. É verdade que a desigualdade de rendimento aumentou, bem como aumentou a desigualdade de riqueza acumulada. Mas a comparação de rendimentos com o PIB serve apenas como benchmark. Existe muita informação relevante que não é identificada na medida. Por exemplo, os EUA têm sido cronicamente deficitários na sua balança comercial durante o período em análise. Isto significa que grande parte do crescimento do produto acaba servindo para remunerar os credores ou investidores internacionais. Outro efeito perdido é que este tipo de análise ignora as mudanças individuais na distribuição do rendimento. É sabido que a mobilidade social é maior nos EUA do que na Europa. Especialmente no tal top 1%, que são 3 milhões de pessoas, pelo que não estamos a falar apenas de CEOs e do Bill Gates. Um banqueiro de topo que o deixe de ser, numa altura de contracção como em 2001, por exemplo, vê o seu rendimento baixar rapidamente e deixa de estar no grupo. Um jogador de basket, actor de cinema, golfista profissional ou rockeiro de sucesso, idem. De igual modo, um empresário bem sucedido cuja empresa de repente cresça rapidamente pode ver o seu rendimento aumentar e entrar no grupo. Por fim, as estatísticas de rendimento nos EUA são regra geral as dos “lares”. Ora, como o número médio de pessoas por lar tem diminuido ao longo do tempo (menos filhos, divórcios), isso significa que o rendimento por pessoa tem aumentado. Este efeito também se perde.

No entanto, há uma consideração importante, sugerida pela referência de Rocard ao risco e especulação, que convém explorar mais a fundo. Há no conventional wisdom a ideia de que as actividades financeiras são o expoente máximo do capitalismo descontrolado. Por isso quando os bancos e os especuladores financeiros apresentam rendimentos muito elevados são rapidamente criticados como capitalistas “selvagens” e “imorais”; e quando o sistema entra em recessão, logo aparecem os arautos da desgraça a acusar o capitalismo de nos levar a todos para o abismo. O problema é que ambas as situações não resultam primordialmente de acções dos agentes no mercado mas antes de intervenções políticas na economia; intervenções essas materializadas na forma de expansão do crédito por injecção de dinheiro “impresso” pelos bancos centrais no mercado via dívida pública ou crédito directo aos bancos. Por outras palavras, os ciclos de boom e bust que têm caracterizado as economias desenvolvidas, nos últimos 100 anos, não resultam de nenhum capitalismo “desenfreado” mas antes das políticas monetárias seguidas, que têm criado sucessivas bolhas nos preços dos activos e conduzido a alocações erradas do investimento, que resultam por sua vez em crises quando as bolhas “rebentam”. Este fenómeno é estudado desde há um século, tendo sido apontado e desenvolvido desde então por economistas como Mises, Hayek e outros da Escola Austríaca, sendo conhecido como a Teoria Austríaca dos Ciclos Económicos. Mas este problema vai mais longe: Não só ocorrem os ciclos, como surgem efeitos inflacionistas. Ao injectar dinheiro sem o correspondente aumento da capacidade produtiva, e ao contribuir para o aumento de preços de certas categorias de activos (normalmente financeiros, como acções), a procura adicional gerada pelas mais-valias provoca um aumento generalizado de preços. E a inflação tem uma característica particularmente perniciosa: Os primeiros por cujas mãos passa o novo dinheiro beneficiam mais que os restantes. Isto é, quanto mais upstream na cadeia de valor financeira estiver alguém, mais beneficia da expansão de crédito. Assim se explica grande parte do aumento da desigualdade no rendimento. Quem já possui capital acumulado em activos (acções, imobiliário, títulos) vê o seu valor subir, ficando mais rico tanto em termos de acumulação como de rendimento de capital. Resulta daqui que os efeitos que Rocard diz serem causados pela “instabilidade” do capitalismo, são na verdade o produto do monopólio estatal na emissão de moeda e da margem de manobra excessiva, bem como irresponsabilidade, das autoridades monetárias na gestão do seu valor fiduciário.

Por fim, Rocard menciona que «Todo este cenário foi acompanhado pela crescente imoralidade do sistema. A remuneração dos líderes das empresas atinge actualmente 300 a 500 vezes o salário médio dos colaboradores intermédios, contra 40 vezes no século XX e 50 vezes antes de 1980. Um pouco por todo o mundo, o número de empresas que enfrenta problemas legais por vários tipos de fraude está a aumentar fortemente.» Esta associação de ideias falaciosa é típica de muita esquerda e, lamentavelmente, de muita direita. O facto de determinados agentes actuarem de forma fraudulenta não tem qualquer implicação relativamente à “moralidade do sistema”. Quem age de forma fraudulenta deve ser julgado pela sua acção individual; a culpa não é do “sistema”, é do indivíduo. A moral não é colectiva. Pior: o facto de existir fraude não tem nada a ver com a desigualdade salarial. O efeito de inflação dos valores dos activos, causado pela expansão de crédito acima referida, ajuda a explicar a maior parte dessa desigualdade. Os accionistas remuneram os seus gestores em função da “criação de valor” manifestada no aumento de preço das suas participações e/ou na distribuição de dividendos. A capitalização bolsista das principais empresas aumentou cerca de seis vezes entre 1980 e 2003 (apesar da bolha rebentar em 2001). Adicionalmente, há um juízo de valor subjacente a esta associação de ideias que é, no mínimo, preconceituoso. A compensação total média de um CEO de uma empresa do S&P 500 foi de cerca de 15 milhões de dólares em 2006. Cai o Carmo e a Trindade. Quando Bruce Willis, Harrison Ford, Mel Gibson ou Will Smith ganham mais de 20 milhões de dólares pela sua participação num único filme, ninguém tuge nem muge. Idem para os salários das celebridades do futebol. A diferença é que enquanto os CEOs tipicamente geram retornos dez ou mais vezes superiores para os seus accionistas, os actores de Hollywood ficam com a fatia de leão dos resultados gerados por um filme, para não falar nos crónicos prejuízos da maior parte dos clubes de futebol.

Leitura complementar: Credit Expansion, Economic Inequality, and Stagnant Wages; Cracking the CEO Pay Puzzle; O laxismo monetário é uma receita para o desastre; O mito do aumento da pobreza nos EUA.

4 pensamentos sobre “Cluelessness

  1. lucklucky

    Se a Esquerda leva a sério as suas ideas chegará á conclusão que formar uma empresa é uma actividade altamente especulativa uma vez que 50-80% delas(dependendo da área) vão á falência ao fim de 3 anos. E sendo assim os Sindicatos só existem devido á especulação, assim como muita das novas tecnologias…

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