Há morte para além do défice

hands_and_feet_2_645_405_55Dificilmente poderei ser considerado um conservador nos costumes. Sou a favor da legalização total das drogas, do jogo e contra a existência do crime de lenocínio. Acho que o contrato de casamento não deve ser tipificado, mas a sê-lo não deverá impôr restrições de género ou número. Acho que um casal deve poder recorrer aos métodos que achar necessários para constituir família desde que não viole os direitos de outrém, e considero a institucionalização como o pior destino possível a dar a uma criança que perca os pais biológicos. Com o aborto, é diferente.

Em muitos momentos da história, os povos caíram no erro de menosprezar formas de vida humana que consideravam inferiores. Os índios americanos, os negros na África colonial, os escravos nos EUA, as crianças de Esparta ou as mulheres em diversos locais tiveram a certa altura o seu direito à vida desvalorizado. Todas estas discriminações eram aceites pacificamente por todos. Todos estes povos sem excepção acabaram por ser crucificados pela história. O caso histórico recente do nazismo é um bom exemplo deste facto. Apesar do regime nazi não ter sido o mais mortífero de todos (a revolução cultural Chinesa e o Stalinismo foram directamente responsáveis por mais mortes), há algo de aterrorizante na forma como uniu todo um povo no horror. Um povo culto e moderno unido no horror. Ao contrário das mortes do Stalinismo, as mortes nos campos de concentração eram aceites como necessárias e normais pela maioria, e não apenas por uma elite. Havia um consenso, que emergiu quase de forma natural, de que judeus, ciganos e homossexuais tinham um direito à vida mais limitado. Tudo isso foi racionalizado de uma forma ou de outra, e aceite por todos como natural. Quando por vezes se questionam alemães que eram adultos nessa altura e que tiverem um papel qualquer menor em toda a máquina de guerra, sobre o porquê de terem aceite fazer parte disso, a resposta tímida é invariavelmente a mesma: tudo parecia natural, a maioria das pessoas não estava consciente de estarem a fazer parte de uma matança. Isto porque se foram dando passos lentos, que fizeram tudo aquilo parecer lógico e inevitável.

Todos os anos são abortadas 20 mil crianças em Portugal. Nos países desenvolvidos há 6 milhões de abortos todos os anos, uma coincidência infeliz com o número de judeus assassinados durante todo o período do holocausto. Há alguns meses, notícias sobre a venda de pedaços de fetos abortados por clínicas de aborto nos EUA, com o intuito de serem usadas para investigação científica (outro paralelo infeliz com o holocausto) causaram algum choque, mas o efeito acabou por desaparecer na espuma dos dias. Eu aceito as dúvidas sobre o momento em que se inicia a vida ou se um embrião é de facto vida humana (dúvidas tão legítimas no contexto contemporâneo como eram as dúvidas sobre o estatuto humano dos escravos no século XVIII). É-me bastante mais complicado entender como, perante a dúvida, e todos os antecedentes históricos de como este tipo de dúvidas foi resolvido, a opção seja contra a vida humana.

Resolvi há alguns anos que não discutiria mais em público o assunto do aborto (é uma discussão perdida no actual contexto cultural). Não consigo, como alguns, criticar moralmente quem recorre ao aborto, ou defender legislação no sentido da proibição que, por ser contra o sistema de valores dominante, não resolveria nada. Escrevo por descargo de consciência, como o fiz pela última vez há 4 anos. Provavelmente passarei mais 4 anos sem tocar no assunto. É muito mais fácil falar do défice, da dívida e do próximo orçamento rectificativo. Mas não será por aqui que a nossa geração será julgada no futuro, da mesma forma que hoje ninguém quer saber se o III Reich tinha contas públicas equilibradas ou se o sistema de pensões stalinista era sustentável. Há morte para além do défice. E será apenas isto que restará desta geração.

16 pensamentos sobre “Há morte para além do défice

  1. Pingback: Mais que a morte, também a vida | BLASFÉMIAS

  2. «Não consigo […] criticar moralmente quem recorre ao aborto, ou defender legislação no sentido da proibição que […] não resolveria nada.»

    Então está de acordo com a lei actual. Porque ninguém é a favor do aborto em si, apenas contra a penalização e perseguição de quem tem de recorrer a um.

    É bom relembrar que a lei não obriga ninguém a abortar nem promove quaisquer matanças, e muito menos desvaloriza a necessidade de apostar na informação e no planeamento familiar como principal meio de evitar gravidezes indesejadas.

  3. A questão não se trata da liberdade da mulher ou não. É uma falsa questão.
    Ao tornar o aborto facilitado (sem taxas moderadoras e custos como outras intervenções) trata-se de de-responsabilizar as pessoas. Proibir não resolve, agora dizer que é um direito da mulher fazer o que quer do corpo como desculpa para um aborto é que não é aceitável. Uma mulher engravida por um acto em que assumiu um risco, mesmo que tenha cuidado e se deu um “acidente” todos sabem que isso pode acontecer, logo há que assumir a responsabilidade dos seus actos, isso sim é liberdade, poder fazer o que se quer assumir as consequências dos seus actos! Por não se saber quando começa a vida, é que devemos tentar preservá-la em caso de dúvida.

  4. CN

    “Então está de acordo com a lei actual. ”

    A lei actual conduziu à subsidiação do aborto por quem o considera crime.

    Não sendo crime, e no princípio da descentralização local, os municípios e freguesias deveriam poder decidir por não autorizar/licenciar a sua prática, embora, suponho, muitos não se dessem ao trabalho disso, mas alguns poderiam-no fazer.

    Não sendo o crime, tudo o que não é crime não tem de ser julgado como moralmente neutro pelos outros, da mesma forma como o consumo (ou venda) de droga não ser crime não implica passar a ser moralmente neutro em relação ao consumo (ou venda).

  5. M. Rothbard

    A real questão pode resumir-se da seguinte forma – Quem tem a autoridade/legitimidade de decisão em relação à disposição do feto enquanto este estiver dentro do corpo da Mãe?
    A resposta, pelo menos do ponto de vista legal, é óbvia – ninguém para alem da mãe tem uma reivindicação mais alta sobre a disposição do feto, pelo menos enquanto este estiver dentro do seu corpo. Como tal ninguém tem o direito legitimo de impedi-la de fazer um aborto. E este sim é o enquadramento da questão.

  6. A real questão pode resumir-se da seguinte forma – Quem tem a autoridade/legitimidade de decisão em relação à disposição do feto enquanto este estiver dentro do corpo da Mãe?
    A resposta, pelo menos do ponto de vista legal, é óbvia – ninguém para alem da mãe tem uma reivindicação mais alta sobre a disposição do feto, pelo menos enquanto este estiver dentro do seu corpo. Como tal ninguém tem o direito legitimo de impedi-la de fazer um aborto. E este sim deveria ser o enquadramento da questão, tudo o resto é demagogia.

  7. Pedro Martins

    Este post é do mais adequado que se pode ler. Eu também sou tudo menos conservador nos costumes. Revejo-me na descrição que é feita. A questão da proibição pura e simples, com direito a cadeia para quem pratica aborto, não resolve problema nenhum. Agora, continuo sem conseguir aceitar uma sociedade que patrocina esse acto. Viver num regime que nem a preocupação de defender quem não se pode defender de forma nenhuma, é triste. Saber que quem use o aborto como método contraceptivo tem o incentivo do Estado é triste. Saber que não vale a pena discutir com quem argumenta: “a barriga é minha”, é triste.

  8. Acho muita piada ao conceito do CGP de “não viole os direitos de outrém”.

    Ao permitir que uma criançã seja adoptada por um casal homosexual – que não vive a sexualidade da mesma forma que os heterosexuais – não estamos a violar os melhores interesses desse outrem?

    Quando os jovens toxicodependentes destroem a sua vida e a das suas familias não estão a violar os direitos de outrem?

    Quando misturamos o casamento natural – que é uma consequência da natureza sexuada do homem – com outras realidades artificiais positivistas, não estamos a violar os direitos de outrem?

    Se pelas leis comodificarmos o homem para ser comprado, vendido e alugado ao valor estabelecido pelo mercado, não estamos a pôr em causa os direitos desse outrem?

    Non sequitur.

  9. Gonçalo Ameal

    O aborto é o holocausto dos nossos dias. É extraordinariamente sintomático dos males, dos egoísmos e da cegueira das sociedades actuais que a discussão sobre o aborto se tenha radicalizado até ao ponto em que está. No entanto, caro Carlos Guimarães Pinto, não se pode deixar de falar nisso e insistir no mal que isso representa para a humanidade. Calar é, neste caso, um consentimento que mata vidas humanas indefesas mais conhecidas correntemente por bébés.´BÉBÉS. O que aqueles que defendem o aborto livre (e subsidiado) lhes chamam, fetos ou o que quiserem, são formas de lavar as suas próprias consciências.

  10. Tive um professor de biologia e etologia que era uma personalidade marcante: o Professor Vítor Almada. Apesar de ser cego era uma autoridade mundial em comportamento de peixes. Dava as aulas sem recorrer a apontamentos e uma vez disse-nos, a propósito de determinado assunto, que deveria ter trazido uma imagem pois era um tema que era difícil entender sem ver.
    Dizia-se 100% agnóstico não acreditando, de todo, em qualquer Ser superior criador.
    Dizia também que sendo completamente não-crente o termo que considerava melhor capturar a relação que devemos ter com a vida humana era o termo “sagrado”. A vida humana deveria ser considerada sagrada. O Professor Vítor Almada desenvolveu esse raciocínio num contexto de discussão acerca de manipulação genética, mas penso que será estendível ao conceito de vida intrauterina.
    Eu também sou “homem de pouca fé”, sou um liberal (não tanto como CGP) mas penso que a defesa da vida humana, sobretudo nas suas formas mais fracas e vulneráveis, é pilar central de qualquer sociedade que se pretenda civilizada.
    Obviamente não vou condenar, em concreto, qualquer pessoa que recorreu ao aborto. Só elas conhecem na plenitude todo o seu contexto e casuística e até acredito que em muitos casos o “ser e a circunstância” o possam justificar.
    Agora enquanto estado civilizacional de uma sociedade tal preocupa-me. Subscrevo muito pouco o conceito de “culpa coletiva”. Este será um dos poucos casos em que ele se aplica.

  11. Aprecio a coerência ideológica dos meus colegas Rui Lima e CN, mas acho que está a ser mal aplicada neste caso.

    Uns anos de convivência próxima com uma maternidade nacional fazem-nos perceber o tipo de pessoas que, regra geral, recorrem ao aborto em Portugal: pessoas com pouca escolaridade, com poucos recursos e acesso a informação muito limitado. Querem mesmo aplicar o princípio da liberdade e responsabilidade individual a pessoas que têm a 4ª classe e que “sempre acharam que o coito interrompido funcionava”? Tenhamos calma. A miséria existe, a pobreza (económica e de espírito) existe, e as leis têm de ser humanas e apropriadas. Ninguém quer uma sociedade com muitos abortos, mas não é certamente a lei que faz com que eles existam.

    Quanto à subsidiação, se não for o estado, quem? “fizeste asneira, agora pagas”? Se vamos por aí, então pensemos primeiro em quem paga realmente a conta de uma vida de um filho indesejado, e percebemos rapidamente que não é nem simples nem linear. Colocar um castigo financeiro (onde antes havia um pseudo-castigo penal) não vai resolver o problema, nunca o resolverá. Relembro que a OMS identificou a penalização do aborto como uma questão de saúde pública… por muito curto que eu ache que deva ser o estado, acho que as questões de saúde pública ultrapassam o individualismo (de que tanto carecemos em Portugal).

    Não sendo conservadores, sugiro que também não sejamos desumanos.

  12. “Eu aceito as dúvidas sobre o momento em que se inicia a vida ou se um embrião é de facto vida humana (dúvidas tão legítimas no contexto contemporâneo como eram as dúvidas sobre o estatuto humano dos escravos no século XVIII). É-me bastante mais complicado entender como, perante a dúvida, e todos os antecedentes históricos de como este tipo de dúvidas foi resolvido, a opção seja contra a vida humana.” – só se de facto considerar o embrião como vida humana; comparar “dúvidas” acerca de quando começa a vida humana com os conceito dos direitos do indivíduo, propriedade, classes sociais, etc. e discussões associadas do séc. XVIII é, no mínimo, desadequado. Do parágrafo citado, também se deduz que além do aborto, a contracepção deve ser desencorajada.

  13. jc

    A lei actual promove o aborto livre. Antes abortava no SNS qdo a mãe estava em perigo vida ou o bebé tinha graves problemas de saúde. Hoje o SNS promove o aborto livre, porque é a minha barriga e porque me apetece. Estamos a liquidar as gerações futuras de forma criminosa e a transformar o SNS num matadouro de bebés. Mas somos um país modernaço e progressista, dizem os defensores do aborto livre. Que a consciência não vos pese.

  14. Jose Pedro

    Então, temos aqui alguns pontos de discussão:
    1) O aborto (sem ser em casos de perigo para a mãe ou feto com graves deficiências) não deve ser comparticipado no SNS.
    2) O aborto livre, deve ser criminalizado de novo pois, se queremos ser coerentes, abortar é matar, é um homicídio.

  15. Muito já escrevi sobre a temática: http://www.veraveritas.eu/2011/09/as-questoes-filosoficas-sobre-o-aborto.html
    Acho “graça” ainda a gana que os “cristãos liberais” colocam a questão das taxas moderadoras: dinheiro. Ou seja, já não há mal nos abortos se os pagarem, pois o estado precisa de dinheiro. Pois para mim, não interessa se é num vão de escada ou numa clínica limpinha, de borla ou a pagar, sou contra: é matar um ser humano indefeso. Uma mãe não tem o direito de matar um filho. Um pai não é um proprietário.

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