Um Orçamento do Estado fora da lei – infelizmente a lei violada não é CRP

O orçamento que as esquerdas se preparam para aprovar é ilegal.

O art.º 20.º da Lei de Enquadramento Orçamental estipula no seu número 6:

O saldo estrutural, que corresponde ao saldo orçamental das administrações públicas, definido de acordo com o Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais, corrigido dos efeitos cíclicos e líquido de medidas extraordinárias e temporárias, não pode ser inferior ao objetivo de médio prazo constante do Programa de Estabilidade, tendo por objetivo alcançar um limite de défice estrutural de 0,5 % do produto interno bruto (PIB) a preços de mercado.

Uma vez que o saldo estrutural em 2015 terá sido de -2,0% do PIB, muito longe do que impõe a lei, estabelece esta ainda no número 6 do mesmo artigo:

Enquanto não for atingido o objetivo de médio prazo, o ajustamento anual do saldo estrutural não pode ser inferior a 0,5 % do PIB (…). 

Como advertiu o Conselho de Finanças Públicas (CFP), no seu parecer à proposta de OE2016,

O esforço orçamental em 2016 em direção ao OMP é insuficiente para garantir o cumprimento da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) (…). 

De facto, a correção ao saldo estrutural preconizada pelo orçamento é de 0,2%, que o CFP entende não ser, de fato, mais do que 0,1%. Um quinto.

Viola, pois, a lei, é um orçamento fora da lei.

É para o lado que toda a gente dorme melhor.

Têm sido inúmeras as críticas a este orçamento; que é basicamente eleitoralista, assentando na compra de votos a clientelas estratégicas, e é, que, preconizando um aumento das remunerações em toda a economia superior à produtividade, compromete os ganhos de competitividade dos últimos anos, e compromete, que penaliza as empresas e o investimento, e penaliza, que é portanto nocivo para a economia, tornando risível a ideia de que o PS e as esquerdas gostam de políticas amigas do crescimento, é e torna risível; mas, que me recorde, quase ninguém se referiu a esta característica incontroversa do orçamento: é ilegal.

O que diz muito do apreço em que temos, como sociedade, a lei como tal. A lei é para cumprir – se der jeito. Se der jeito não cumprir e puder não se cumprir, porque não dá jeito a muita gente, a gente pelo menos suficiente para que a violação da lei não desencadeie alvoroço, não se cumpre e não se fala mais nisso. Tudo depende, portanto, no que ao cumprimento da lei diz respeito, de ser a lei jeitosa ou não.

Tenho ideia que esta relação com a lei tem alguma coisa a ver com a nossa miséria endémica, mas não é isso que me traz hoje aqui. Ou melhor, é, mas de outra maneira.

Pergunto-me se os preceitos legais que este orçamento viola, perante a passividade geral, estivessem inscritos na constituição, seria a mesma coisa.

É verdade que o número 1 do art.º 58.º Constituição diz (juro!):

Todos têm direito ao trabalho. 

Há para aí cerca de 600 mil violações à Constituição neste momento e ninguém perde por isso o sono (salvo eventualmente as vítimas, mas não é porque a sua situação viola a constituição, é por não terem emprego, mesmo). Há coisas que a Constituição estipula, como direitos, insuscetíveis de serem cumpridas e garantidas (salvo numa sociedade tipo URSS, mas, aí, o que era garantido era o emprego: as pessoas fingiam que trabalhavam, o estado fingia que lhes pagava e assim lá cumpriam a sua constituição, que deverá ter sido a constituição inspiradora da nossa constituição neste como em outros detalhes).

É possível que se a Constituição da República Portuguesa proibisse os défices orçamentais nos precisos termos em que a lei de enquadramento orçamental os proíbe, toda a gente assobiasse para o lado. Ou não.

Reparem. Ninguém se incomoda com o incumprimento constitucional do art.º 58.º (ou o 78.º,  por exemplo, uma norma patusca que estipula que «todos têm direito à fruição e criação cultural»), porque ninguém se incomoda com o incumprimento de qualquer coisa que não é cumprível ou garantível, da mesma maneira que ninguém se incomodaria com uma norma derrogando a lei da gravidade, ou impondo o direito ao amor e à amizade. (Quanto mais com o cumprimento de qualquer coisa que nem sequer é compreensível, do tipo do direito à fruição cultural; é exatamente o quê?).

Não é o caso dos défices orçamentais: por um lado é possível não tê-los, por outro toda a gente sabe o que é e não é. Nós temos não fazemos em 2016 – como não fizemos em 2015, o que explica em parte a passividade – o suficiente para cumprir os termos da lei.

Supondo que uma das funções do Presidente da República é garantir a fiscalização da constitucionalidade das leis, não pertencendo propriamente à esfera do poder legislativo e sem «passivos» nessa matéria, como é o caso das oposições no parlamento, quer-me parecer que a constitucionalização da proibição dos défices era capaz de envolver o Presidente – nolens volens – na ativação dos mecanismos sancionatórios da ilegalidade orçamental.

Essa é a razão por que eu considero que essa constitucionalizarão é a reforma mais importante que poderíamos fazer, em nome de um futuro melhor.

5 pensamentos sobre “Um Orçamento do Estado fora da lei – infelizmente a lei violada não é CRP

  1. O maior entrave ao desenvolvimento de Portugal não são os juízes do Tribunal Constitucional, como dizia uma vez Passos Coelho. O entrave é a própria constituição; um texto com uma enorme amplitude de interpretações e redigido apenas aos “especialistas” e “eruditos”. Prova disso mesmo são as votações divididas, os juízes à esquerda a pensarem uma coisa e os juízes à direita a pensarem outra, pelo que as decisões tomadas em maioria dependem na verdade da filiação política de cada juiz.
    O mais caricato em relação a estas Sagradas Escrituras é que os juízes do TC podem tomar decisões em minoria qualificada no caso de ausências de colegas em férias, o que coloca ainda mais em causa a necessidade de uma constituição, ou, de pelo menos, treze juízes para “hercúlea” tarefa.
    E é óbvio que a opacidade desta constituição é o refúgio para as grandes corporações e interesses instalados, juízes e políticos incluídos. Tudo o que os afectar diretamente será julgado em causa própria.
    Como desbloquear o país e sacudir os parasitas? Erradicar a Constituição!

  2. ecozeus

    Que raio de Estado é este que viola as suas próprias leis, mas que não se coíbe de perseguir qualquer cidadão perante pequenas negligências (ocorridas sem dolo), como seja uma falha no preenchimento de determinada declaração fiscal, aplicando severas coimas, acrescidas de juros de mora e de taxas de justiça.
    A balança do Estado tem muitos pesos e muitas medidas e está sempre aferida para os pratos penderem sempre para o seu lado.

  3. Pingback: A intensa procura do precipício – O Insurgente

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