Extorsão feita taxa

Em relação à temática que sobe alegadamente hoje a conselho de ministros relativa à questão dos mecanismos de compensação associados à cópia privada, será difícil acrescentar algo ao excelente artigo do jcd, mas fica a tentativa de acrescentar alguns pontos à discussão e à indignação que o renascer desta infeliz iniciativa legislativa suscita:

  • É sintomático que a generalidade dos testemunhos de apoio de autores à iniciativa resvalam rapidamente do problema da compensação da cópia (legal) privada para a questão da “pirataria” (ilegal). Um exemplo desse facto é o testemunho de apoio à medida do vocalista dos Xutos&Pontapés, ligado neste artigo d’O Observador. O que está em cima da mesa é portanto a pressão dos autores e do seu lobby para a criação de um veículo de remuneração que lhes compense aquele que entendem ser os prejuízo derivados da actividade ilegal de “pirataria”, utilizando um expediente argumentativo sustentado na cópia privada. Pelo caminho, cria-se uma presunção de culpa (inultrapassável e irrebatível) que se abate em todos os utilizadores de meios que porventura possam ser utilizados para a prática dos crimes de usurpação. Algo que seria um pouco semelhante à APAV pedir uma taxa sobre a venda de facas, machados e outras alfaias para entregar às vítimas que não conseguem ou que não se mobilizam para obter nos tribunais indemnizações pelo crime de homicídio. Se não se consegue ou se está sequer disposto a tomar a iniciativa legal de tentar obter o ressarcimento dos infractores, pagam todos em todo um novo Mundo de socialização de prejuízos.
  • Uma taxa pressupõe, por definição, que associada a ela esteja a prestação de um serviço. Ora neste caso propõe-se uma originalidade que é o pagamento de uma taxa não pela prestação de um serviço, mas sim pela possibilidade (mesmo que remota ou até manifestamente inviável) de esse serviço poder algum dia vir a ser prestado. Assiste-se assim mais à criação de um novo imposto sobre o consumo do que propriamente a uma taxa, imposto esse consignado a privados e em relação ao qual o estado se remete ao seu papel de coerção e de cobrador.
  • A progressiva desmaterialização da venda de produtos culturais, com o modelo de compra online de conteúdos em franca expansão em domínios como o do livro, da música ou da imagem, tem como consequência que a aquisição desses conteúdos vai ser imediatamente onerada, pelo facto de o suporte destes ser garantido pelo comprador, por uma taxa de cópia privada. Ou seja, quem compra esses conteúdos é imediatamente taxado por um “serviço” que não quer, não solicitou e que muitas vezes não pode sequer exercer pelo facto de esse conteúdo ser vendido acompanhado de medidas que limitam a sua cópia.
  • De um ponto de vista moral, a implementação deste mecanismo de cobrança dá todo um novo alento aos que ainda poderiam sustentar alguma reserva de consciência em disseminar de forma ilegal conteúdos abrangidos por direito de autor (já que a sua aquisição não é legalmente crime). A utilização destes mecanismos de socialização de alegadas perdas, em que os justos pagam como os pecadores, dá toda uma sustentação moral a que este mecanismo seja visto como uma espécie de “licença compulsória” de conteúdos. Ou seja, se todos os agentes envolvidos na disseminação desses conteúdos são obrigados a pagar de alguma forma uma taxa deste género, pela própria necessidade de os materializarem de algum modo, podem por esta via munir-se de razões moralmente fundadas para acharem que não estão a fazer nada de “mal”, já que os autores acabam ressarcidos por essa via. Acabam por se criar fortes fundamentos morais para o apelo ao fim de todos os crimes associados à “partilha não autorizada” de conteúdos. É isto que os autores querem?
  • Nunca é demais reforçar a absoluta prepotência desta medida. Fazer pessoas pagar taxas pela aquisição de dispositivos que não fazem a mínima tenção de utilizar para o exercício do direito de cópia privada, quando até antes  pelo contrário os pretendem utilizar para guardar as suas obras – nada como pagar aos inscritos nas sociedades gestoras de direitos por comprar um disco ou cartões de memória para guardar ou registar as fotografias ou filmes de férias – é algo revelador de um tão despudorado uso do poder coercivo do estado e do não olhar a meios para atingir os fins que não pode deixar indiferentes as suas vítimas e de alimentar revolta.
  • Depois da aprovação já por este governo de taxas no âmbito da lei do cinema, assistimos a uma nova tentativa de criação de taxas no domínio da cultura. Assinala-se também que, no caso dos serviços de média (ISP, televisão paga), a oneração dos dispositivos utilizados para a prestação desses serviços se vai consumar como uma taxação múltipla dos consumidores desses serviços. Assistimos portanto a que, depois de se estabelecer um mecanismo de subsídio cego aos autores no domínio da produção, eis senão quando se pretende dar o passo em frente para intervir na distribuição. É sem dúvida o governo mais liberal de sempre, e o que aguenta firme face aos lobbies.
  • A responsabilidade relativa a este processo e ao seu desfecho tem que ser assacada ao primeiro-ministro. A sua escolha em tutelar de forma directa a Cultura pela criação de uma secretaria de estado debaixo da sua alçada, torna-o no principal responsável por essa decisão, para o bem e para o mal. A chegada ao fim deste processo com a aprovação do referido diploma tem que ser interpretada como uma vontade expressa da tutela para que tal chegue a esse fim. Não colarão portanto argumentos de desconhecimento ou de reserva de capacidade de decisão, e esse desfecho terá que ser compreendido como tendo sido atingido por uma vontade pessoal do primeiro-ministro, sendo o natural responsável político por tal ter acontecido.

5 pensamentos sobre “Extorsão feita taxa

  1. lucklucky

    Razões para não votar PSD ou CDS. E os outros não parecem diferentes como se nota pelo silêncio

    Já agora, foi escolhido fazer isto em Agosto.

  2. Marco

    Procurem info sobre os escândalos da SGAE, a máfia anti-pirataria espanhola …

    É só parasitas subsidio-dependentes. Em todo o caso e de certa forma a pirataria a existir fica semi legalizada perante essas atrocidades 😉

  3. Mário Pinto

    Tem todo o aspecto de ser um pagamento aos “(…) artistas têm de exigir que os contribuintes os sustentem, como se fossem seres superiores que os comuns mortais (que desprezam) devem suportar (…)”. São uns malandros, estes “artistas”.

  4. Foobar

    Gostava de saber o que pensa o TC sobre este assunto, porque viola o princípio da igualdade, já que o Estado está a privilegiar certas associações de autores sobre outras que já existem ou poderão vir a existir.
    Mas algo me diz que o TC e o sistema judicial irão permanecer caladinhos…

    Crony capitalism no seu melhor.

  5. Slint

    Foobar, se o “nosso” presidente se dignar a enviar este projecto de lei para o TC, também estou curioso para saber qual é a sua opinião acerca disto. Mas cheira-me que esta ele assina de cruz.

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