Índia (a Índia do planeta Darkover, certo?)

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Tenho gostado de ler A Batalha, que nos dá informações do que por aí se passa em tom de blogue bem conseguido (dois exemplos). Mas hoje dei com um texto hilariante sobre a Índia (ou sobre Goa, ou o que o autor acha que é e deveria ser Goa, ou sobre as várias supostas traições dos portugueses a Goa, é escolher).

O texto tem tanto de caricato que, por economia de post, não posso ir a todas. Começo por fazer uma declaração de interesses sobre a Índia. Estive lá umas tantas vezes em trabalho, uma dessas vezes fiquei lá (incluindo em Goa) mais umas duas semanas de férias. (Não sou, portanto, uma grande conhecedora da Índia; mas, neste caso, sou quanto baste). Rio às garagalhadas sempre que oiço alguém referir-se à Índia como ‘a maior democracia mundial’, agonia-me a forma como as mulheres são (mal)tratadas por lá, a pobreza da Índia é algo brutal e abjeto e antipatizo com o hinduísmo (que sustenta coisas como as castas e os abusos às mulheres). Considero que os meus amigos que vêem da Índia com conversas sobre a felicidade geral da população para além dos bens materiais, as cores dos saris e tretas semelhantes, uns alucinados. (Qualquer boa pessoa que vai à Índia só pode sair de lá com uma depressão). Detestava ter de fazer a profilaxia da malária e, de cada vez que lá ia (e ficava apenas um dia e meio) tinha como momento redentor da viagem aquele em que entrava no avião da Lufthansa, companhia com a qual, devido a tirar-me da Índia, desenvolvi uma relação muito afetuosa. Podia continuar, mas parece-me que já está claro que nada do que vou escrever é uma defesa da Índia. (Que sim, tem o Taj Mahal e outros edifícios lindos de morrer, e adoro os tecidos indianos, os móveis indianos, as jóias de prata com pedras coloridas, e a generalidade dos artesanatos indianos. Além de que gosto muito de alguns indianos.)

Regressando ao texto, não vou debater se a presença portuguesa na Índia foi colonialismo ou não, nem o facto de não se perceber o que reclama Luís Pistola ou o que tem a ver com as frases que cozinhou a exposição no Museu Nacional de Arte Antiga. Menos ainda o caso BNU ou se há ou não em Goa um sentimento generalizado de procura da independência face à União Indiana ou as causas da riqueza relativa goesa.

Diz o autor do texto coisas fabulosas. Por exemplo, pergunta: ‘De que tem medo o gigante indiano quando ainda hoje, volvidos mais de 50 anos da ocupação, teme e treme a cultura goesa, procurando indianizá-la a todo o custo, dificultando a difusão do português e do modo singular de viver lusitanamente na Índia?’ Eu, quando estive em Goa devo ter tido azar, porque não encontrei – e até tentei – uma única alma que proferisse a vontade de ‘viver lusitanamente’ (e que raio quer dizer isto?) ou de aprender português (e para que quereriam os goeses aprender português, a língua de um país com que nada têm a ver, quando há tantas outras línguas mais úteis para aprenderem?). O azar foi tanto que nem sequer houve quem se entusiasmasse (já nem se pedia que mostrasse saudades ou evidenciasse o amor que os goeses ‘sempre nos tiveram’) pelo facto de eu me identificar como portuguesa. E se em Goa os miúdos jogam futebol (em vez de críquete, como no resto da Índia), há muitas mulheres que se vestem com os vestidos que se usavam em Portugal há 50 anos, em vez de com saris, e a pobreza não é tão opressiva, se há coisa que se percebe é que aquela terra é infinitamente mais indiana do que portuguesa e só quem lá vai com palas carregadas de preconceitos não o vê. Quanto aos monumentos que a presença portuguesa por lá deixou, o que achei mais curioso foi o desapego que os goeses lhes tinham – ao contrário do que se passa no resto da Índia, onde os monumentos costumam estar apinhados de indianos (os bilhetes para nacionais que são para aí um décimo do valor do cobrado aos estrangeiros).

No texto também se compara a atitude da União Indiana para com Goa com a da China com os macaenses. Aqui estranho que não tenha havido também comparação com a relação de Portugal com a cidade de Santarém, já que entre Goa e Macau, e a forma da presença portuguesa em ambas, são tantas as diferenças que só por ignorância se pode estabelecer comparação. (Digo também que sou muito parcial para com a China e que a ‘ditatorial’ China tem liberdades de que eu gosto – poder andar de minissaia e alcinhas na rua, poder namorar na rua,… – que a ‘democrática’ Índia nem está perto de ter.)

A minha parte preferida é esta: a da ‘Índia hindu unificada politicamente pelos ingleses’ (interrupção para nova gargalhada). Bom, por partes. 1) A Índia não é hindú. 15% da população é muçulmana (mais de 150 milhões de almas), uns 30 milhões são cristãos (mais do que os portugueses, sejam cristão, agnósticos, ateus, protestantes, new age, whatever), há para lá jainas, sikhs e uma panóplia de religiões tribais. A fricção religiosa é um assunto sério do país e, para quem se quiser lembrar, levou até à partição entre Índia e Paquistão e, mais tarde, à criação do Bangladesh. 2) A Índia não foi unificada politicamente pelos ingleses. Durante a época colonial britânica continuaram a existir, nuns casos apenas mais formalmente, noutros menos, os reinos dos famosos rajas e maharajas. Apenas em 1947, com a criação da União Indiana, estes reinos foram integrados no país (os monarcas negociaram a entrega da soberania dos seus territórios contra o pagamento de uma subvenção anual pelo estado indiano, que depois Indira Gandhi extinguiu). 3) A Índia é tudo menos unificada. Na verdade, na Índia o insólito é o que é normal e há uma infindade de crenças, castas, costumes locais, linguagens, atividades económicas que tornam a Índia porventura no país mais diverso e menos unificado do planeta – neste caso, a Terra. Daí que a especificidade goesa seja tudo menos extraordinária na Índia.

Para ir terminando, vou a estas frases (que ou pretendem ser enigmáticas ou estão num português pouco valorizado): ‘O mais incrível de tudo isto é que andamos continuamente a reproduzir aculturamentos estrangeirados cuja história não chega para contar um terço da nossa: Goa foi construída ao longo de quase 460 anos de cultura comum. Tomara os Estados Unidos da América poderem gabar-se de metade disso.’ Passe-se ao lado da bazófia com a longevidade da nossa história face a esses selvagens que são os norte-americanos – que é algo que, estou certa, tira o sono aos selvagens – para me questionar quem são os estrangeiros sem história que se veja que condicionam o nosso conhecimento sobre a Índia e a presença portuguesa. Os americanos não condicionam nada, e os indianos têm uma história que remonta à civilização do Vale do Indo, milénios antes da era cristã. Além de que – refira-se – a Índia era, à data em que os portugueses lá chegaram (e foi até à revolução industrial), bastante mais rica do que os países europeus.

Termino dizendo que a História portuguesa, incluindo as suas aventuras marítimas, é assombrosa. (Incluindo também os projetos que falhámos, que, como diriam os selvagens americanos que não têm história e não percebem patavina, desonra é não tentar, não é falhar.) Não merece as tonterias ‘nós somos os melhores do mundo e todos os povos que governámos nos amam’. Os indianos divinizaram as personagens do Mahabharata e do Ramayana; há quem queira divinizar os portugueses dos tempos dos descobrimentos. Mas fazem mal: como deuses seriam medíocres, como homens poderão ter sido admiráveis.

???????????????????????????????(As imagens foram escolhidas para dar ideia de como a arte indo-portuguesa é muito mais sumptuosa do que a arte indiana – num exemplo de arte particularmente hindu de um império que mais hindu não podia ser. De facto não se entende como os artífices indianos escolhem dedicar-se à arte indiana em vez de à arte produzida em Goa.)

12 pensamentos sobre “Índia (a Índia do planeta Darkover, certo?)

  1. Luís Lavoura

    Eu quando fui a Goa, e estive lá apenas três dias, não tive dificuldade em encontrar quem falasse português e quem se emocionasse com o facto de encontrar um português. Mas, é um facto, isso já foi há mais de uma década (sou bastante mais velho que a Maria João).
    Também, há montes de chineses a aprender português, o português é de facto uma língua muito apreciada na China, pelo que não vejo por que motivos a Maria João sugere que os indianos não o devam aprender. O português, Maria João, é a sétima língua do mundo em termos de falantes nativos (mais do que o alemão e muito mais do que o francês, por comparação).
    Finalmente, toda a gente diz que a Índia é a maior democracia do mundo, e é mesmo. A Maria João tem razão em que há muita pobreza na Índia e em que se trata lá pessimamente as mulheres, mas isso não faz com que deixe de ser uma democracia. Vota-se e há liberdade de expressão.

  2. M. Miranda

    Não conheço a Índia mas um meu avô que lá exerceu funções como juiz durante meia dúzia de anos não me deixou boas indicações do que por lá conheceu pelo que estarei de acordo com as apreciações aqui feitas.
    Agora uma coisa posso dizer: o texto da Maria João Marques é um arrazoado de mau português

  3. Maria João Marques

    Luís Lavoura, haver ‘montes’ de chineses a aprender português é fácil, porque eles são tantos que, mesmo poucos para as medidas chinesas, são ‘montes’ para nós. A aposta estratégica em termos de língua estrangeira na China vai para o inglês, e mesmo assim a população falante de inglês é uma pequena percentagem. Nem em Hong Kong toda a gente fala inglês, portanto imagine o que se passa na China. E eu tenho tanto azar nestas coisas que também consigo não conhecer um único chinês (fora os que vivem em Portugal) que fale português. Isto não é desvalorizar a língua portuguesa. Quanto aos indianos, devem aprender português se assim o entenderem e não aprenderem português se não o quiserem. Não vejo é razões para haver um enorme interesse pelo português em Goa (e conheci pessoas que diziam mesmo isso, que os pais falavam português mas que não tinham sentido qualquer vontade ou necessidade de aprender português), nem vislumbro por que haveria o estado indiano ensinar português em Goa. Ou alimentar com meios públicos recordações dos tempos portugueses. Estive em Goa em 2003, desconfio, portanto, que o Luís ou terá contactado com pessoas muito mais velhas ou terá frequentado os meios diplomáticos ou académicos, onde a conversa cordial nem sempre reflete a opinião do resto da população.

    M Miranda, o meu texto não é uma crítica à Índia ou a Goa. É mesmo uma crítica a visões iludidas do que é a ligação de Goa a Portugal e a visões disparatadas sobre a Índia e Goa. Já agora, quanto a mau português, tem uma relação um tanto estranha com o uso de vírgulas.

  4. Rui Antão

    A indianização de GOA tem a ver apenas tem a ver com os descedentes , a maior parte das terras e possuida por descedentes de portugueses, e como o estado indiano quer de alguma forma expropiar os bens , colocou pessoas da outros estados, porque tendo o poder politico e mais facil criar leis de forma a que os descedentes sejam prejudicados. Por outro lado , a falta de apoio do estado português é gritante, como e espelhado neste noticia http://www.tvi24.iol.pt/videos/video/14112140/26 , o estado português prometeu ter a situação resolvida em tres meses , e ja la vão sete anos. Isto e apenas um dos assuntos que irrita os goeses que estão em Portugal .

  5. Carlos Guimarães Pinto

    Maria João, concordando com boa parte da análise, tinha que vir aqui discordar, profundamente, desta tua aversão à Índia.

    Passei lá 6 meses há quase 10 anos atrás. A Índia é uma experiência única, provavelmente a cultura (ou as culturas) mais diferente da Europeia que se pode encontrar. A explosão de cheiros, cores e de seres vivos, mesmo em ambiente urbano, é algo que não se vislumbra em mais lado nenhum. Desde essa altura já tive a oportunidade de viajar um pouco por toda a Ásia e África e não encontrei em lado nenhum algo tão único como a Índia. Não é um país onde gostasse de viver, mas definitivamente não é um país que quem chegue tenha vontade de sair. Há tanto para descobrir e tão diferente, tão intenso que, se tivesse que escolher um único país do Mundo que pudesse visitar para além de Portugal, seria inevitavelmente a Índia. Mas eu provavelmente entrarei na categoria dos alucinados 🙂

  6. Maria João Marques

    Definitivamente alucinado, Carlos 🙂 (A Índia tem imensa coisa apelativa, claro. Mas o que tem de mau punha-me indisposta sempre que lá ia, não conseguia evitar. China, Sueste Asiático, América Latina – escolhia isto tudo, de que gosto imenso, antes de decidir voltar à Índia.)

  7. José Silva

    Há 2 anos contactei em trabalho uma empresa indiana. O meu contacto indiano chamava-se Vanessa Fernandes. Eu, felicíssimo, expliquei-lhe que era o nome de uma campeã portuguesa e pergunte-lhe se ela era goesa. Laconicamente disse-me que não, sem qualquer outra explicação, e não mostrou qualquer interesse em Portugal ou na sua homónima portuguesa. Por isso concordo consigo. Os indianos têm mais que fazer (sobreviver, p.ex.) do que pensar em nós. Estive em Mumbai há alguns anos e eu também contei as horas que faltavam para fugir de lá num voo da Lufthansa. Estive deprimido 2 ou 3 dias.

  8. António Ferreira

    Mumbai não é exemplo. Eu adorei à Índia e odiei Bombaím. Concordo com tudo que CGP disse.Fui para a Índia sozinho durante um mês e meio e foi uma das melhores alturas da mi nha vida! Até chorei no Europorto quando me vim embora!

  9. Nuno Neves

    Também já estive em Goa, bem como vários familiares e amigos e não tive qualquer dificuldade em encontrar afinidades com Portugal.
    E é verdade sim que houve e há um esforço do estado central da Índia para destruir o que resta da nossa influência local, de que deveríamos legitimamente orgulhar-nos.
    Confesso que lamento o seu post. Apenas revela uma profunda ignorância em relação à Índia e a Goa em particular, bem patente na sua satisfação ao apanhar o voo da lufthansa. De qualquer maneira não passa da mal informada opinião habitual em Portugal sobre estes assuntos. Nem chega a ser surpreendente

  10. Maria João Marques

    Nuno Neves, que pena não compreender os texto que lê – e, depois, comentá-los. Não escrevi que Goa não tem afinidades com Portugal. Até pus uma imagem que mostra a afinidade que mais salta à vista: os monumentos que lá construímos. Escrevi que não encontrei falantes de português nem gente com vontade de manter a herança portuguesa. Não entende a diferença? Paciência. Quanto a achar que alguém que não tem opinião igual à sua é ignorante, pois que quer que lhe diga? E, novamente, opinei sobre a Índia, não opinei nada sobre Goa, por acaso parece também não ter percebido isso.

  11. Já que todas têm histórias sobre a Indía tb eu deixo aqui uma que se passou com uma prima minha, que com 35 anos se desempregou e foi para a India passar uns meses e descobrir o mundo. Conheceu gente boa, admirou-se com a simpatia dos indianos, assustou-se com os olhares libidinosos que os machos lhe deitavam a toda a hora, agradeceu os conselhos de raparigas que encontrava nos transportes públicos que a aconselhavam a evitar andar sozinha, apreciou a culinária indiana, participou numa cerimónia de casamento hindu, assistiu a uma cerimónia de natal cristã, dormiu uma noite ao relento porque na vila a que chegou já de noite ninguém lhe abriu uma porta para dormir etc….Mas um dia numa consulta com uma médica indiana, a médica virou-se para ela e perguntou: o que é que a senhora anda a fazer sozinha por aqui longe do seu país ? se quer encontrar a felicidade pode fazê-lo no seu país junto dos seus. Aqui arrisca-se a ser enganada diariamente ( preços para estrangeiros ), aqui arrisca-se a ser molestada sexualmente. Volte para a sua terra. E ela assim fez. Gostou da experiência e está de novo em Portugal e felizmente bem de saúde. E teve a sorte de arranjar de novo emprego.

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