Manifesto de ignorância

Quando se fala da reestruturação de dívida (grega ou portuguesa) começa a ser habitual alguém argumentar com o perdão da dívida alemã nos anos 50 do século passado. Surpreendeu-me, no entanto, ler o mesmo raciocínio no designado “manifesto dos 70”:

De agora até 2017 o reembolso da dívida [portuguesa] de médio e longo prazo atingirá cerca de 48 mil milhões de euros. Alongamentos da mesma ordem de grandeza relativa têm respeitáveis antecedentes históricos, um dos quais ocorreu em benefício da própria Alemanha. Pelo Acordo de Londres sobre a Dívida Externa Alemã, de 27 de Fevereiro de 1953, a dívida externa alemã anterior à II Guerra Mundial foi perdoada em 46% e a posterior à II Guerra em 51,2%. Do remanescente, 17% ficaram a juro zero e 38% a juro de 2.5%  Os juros devidos desde 1934 foram igualmente perdoados. Foi também acordado um período de carência de 5 anos e limitadas as responsabilidades anuais futuras ao máximo de 5% das exportações no mesmo ano.  O último pagamento só foi feito depois da reunificação alemã, cerca de 5 décadas depois do Acordo de Londres. O princípio expresso do Acordo  era assegurar a prosperidade futura do povo alemão, em nome do interesse comum. Reputados historiadores económicos alemães são claros em considerar que este excepcional arranjo é a verdadeira origem do milagre económico da Alemanha.

Tal como em muitos outros acontecimentos, é importante sabermos qual o contexto histórico em que ocorreu este Acordo. Na era da informação é, pois, lamentável que ainda se assista a uma considerável preguiça em, pelo menos de forma genérica, conhecer os factos recolhidos na enciclopédia online Wikipedia. Abaixo fica um resumo:

No ano antes da 2ª Grande Guerra terminar na Europa (rendição incondicional alemã assinada em 7 de Maio de 1945) já havia plano para tornar a derrotada Alemanha num “país predominantemente de carácter agrícola”. Para esse intuito, no após-guerra, a indústria pesada que não tinha ainda sido destruída pelos bombardeamentos seria desmantelada, radicalmente reduzida e/ou entregue ao controlo das nações vencedoras.

Na Conferência de Yalta, em Fevereiro de 1945, Roosevelt, Churchill e Stalin acordaram na divisão do território alemão em zonas administradas pelos “Aliados” (EUA, Grã-Bretanha, França e União Soviética) e ao uso de trabalhos forçados como “reparações” de guerra, ou seja, por outras palavras, trabalho escravo (em Março de 1947 estimava-se que cerca de 4 milhões de alemães estariam nesta situação).

Na Conferência de Potsdam, Julho/Agosto de 1945, são definidas as formas de reparações a pagar pela Alemanha. Além de trabalho escravo, o plano dos Aliados para a indústria alemã remanescente passava por controlar a produção de carvão e aço (especialmente pelos franceses que mantiveram controlo da região de Saar, rica em carvão, até 1981), desmantelar e/ou reduzir a indústria pesada com potencial de uso militar (automóvel, naval, aviação) bem como confiscar ou destruir equipamento a centenas de fábricas em diversos sectores de actividade. Tudo sob o égide do “Conselho de Controlo Aliado” (Allied Control Council) que, para benefício dos mesmos, por exemplo, exportaram para os seus países carvão a metade do preço de mercado, abateram vastas áreas de floresta com sérias consequências para a sua gestão futura (estimativa dos próprios aliados assumia que poderia levar um século a reflorestar tais áreas) e proibiram a Alemanha de comercializar aço e carvão em troca de produtos agrícolas oferecidos por países como a Holanda, Itália, Dinamarca, Suécia, Noruega ou Turquia (como resultado, a população sofria de mal nutrição que o próprio programa de ajuda americano não conseguia colmatar e cujo custo era acrescido à dívida alemã…).

Outra acção dos Aliados que lesou a capacidade produtiva da economia alemã foi o confisco de patentes, de todo e qualquer conhecimento técnico-científico e o “recrutamento” de cientistas. Com receio (fundado) de continuado roubo de know-how, os empresários alemães abstiveram-se, durante vários anos, do desenvolvimento de inovações que lhes pudesse dar, em normais condições de mercado, vantagens competitivas.

Os Aliados ocidentais, gradualmente cientes de que tais acções só prejudicavam a futura estabilidade política, social e económica da Alemanha, incluíram o país como uns dos recipientes do Plano Marshall (montante a acrescer à dívida alemã) e começaram a devolver controlo às novas autoridades alemãs, culminando no referido Acordo de Londres, em 1953. Neste, o perdão de parte da dívida e alongamento dos prazos de pagamento faz todo o sentido, face aos acontecimentos passados. Aliás, seria impossível quantificar monetariamente o benefício para os Aliados do trabalho escravo, do conhecimento científico confiscado e da matéria-prima espoliada. Provavelmente muito mais do que o valor da dívida perdoada.

A origem do milagre económico alemão (Wirtschaftswunder) não se deve, portanto, ao perdão da dívida mas sim a período de baixa inflação (contrário ao que os subscritores do manifesto advogam!), redução de impostos, baixo consumo (ou seja, poupança elevada e consequente acumulação de capital) e orçamentos públicos equilibrados (saldos primários positivos).

Fontes Wikipedia:

8 pensamentos sobre “Manifesto de ignorância

  1. Pingback: Prós & Contras: reestruturação da dívida? | O Insurgente

  2. GG

    Bravo. Excelente exposição. Finalmente mostra a diferença entre indigência política (caso de Portugal) e destruição deliberada (caso da Alemanha).

  3. Ricardo Fonseca

    Bela exposição, mas infelizmente esta incorrecta, Pelos os teus próprios links, podes ver que quem beneficiou do trabalho escravo foram os Soviéticos, e que o plano marshal na verdade foi uma injecção brutal de capital americano nos países afectados pela segunda grande guerra. Quanto ao capital humano que foi levado pelos aliados, esqueceste de referir o capital humano que foi assassinado pelos alemães. Pequenas coisas que fazem toda a diferença quando analisamos a questão do perdoar da divida alemã. Se me perguntarem se devia ser perdoada a divida alemã em 1953, obviamente que respondo que sim, o povo não pode ser o único responsável pelas loucuras de meia dúzia, mesmo sendo o povo que os elege. Respondo afirmativamente também ao perdoar/renegociar da divida portuguesa, que claramente caminha a passos largos para a insustentabilidade, porque tal como os alemães o povo não deve o único responsável pelas loucuras de meia dúzia.

  4. Jose Lingrinhas

    Sou e serei contra esta Europa onde parece querer medrar um nazismo sem bigode !
    Embora sem Rommel e o seu Afrika Korps e mesmo sem ter que usar o célebre Flak de 88 mm, o imperialismo alemão avança.

  5. Ricardo Cerqueira

    Peço desculpa por ser tão frontal, mas parece-me que estão aqui a manipular a história ao mesmo nível do que pretendem apontar aos outro, baseando-se em títulos, sem ter em conta o que se passou na realidade.

    No ocidente nunca houve trabalho escravo no pós-guerra, excluindo as normais utilizações de prisioneiros de guerra em trabalhos de limpeza e reconstrução. E mesmo assim, de forma limitada e por pouco tempo.mNote-se que nem os imensos trabalhos de desminagem que ocorreram em França entre 1944 e 1950 foram realizados por prisioneiros alemães.

    O que se está aqui a confundir é o plano radical do Secretário de Estado do Tesouro,Harry Morgenthau, com a aplicação do mesmo, que nunca viria a acontecer. O desagrado de Winston Churchill, a opinião pública americana (o plano acabou por escapar para os media) e a morte do presidente Roosevelt, enterraram em a ideia de fazer dos alemães trabalhadores forçados e da Alemanha um país agrícola.

    Onde houve aproveitamento organizado e massificado de trabalhos forçados com prisioneiros alemães foi na União Soviética, em alguns casos até à data da morte de Estaline. E também uma enorme rapinagem de indústrias e até de linhas de caminho-de-ferro, levantadas inteiras (as vias duplas quase deixaram de existir na RDA). Mas essa realidade nada tem a ver com o que aqui se afirma em cima.

    Grosso modo, os aliados ocidentais não usaram trabalho forçado dos alemães, não lhes roubaram a indústria (em 1946, a Daimler-Benz e a antiga fábrica dos Kdf Wagen estavam a reiniciar a produção) e perdoaram rapidamente quase todas as penalidades que lhes tinham destinado após o cessar fogo.

    As razões eram de ordem estratégica, pois rapidamente se compreendeu que o inimigo mais perigoso já não eram os alemães. A necessidade de ter um tampão forte entre os T-34 soviéticos e a Europa ocidental, levou de facto, ao levantamento da maioria das penalizações impostas aos vencidos. Uma Alemanha forte era necessária para a defesa da Europa.

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