Quem não deve, não deve (mas se calhar até teme)

«A dívida dos portugueses ao Estado “não existe”. É o que conclui o livro Quem Paga o Estado Social em Portugal, coordenado pela historiadora Raquel Varela», conhecida do 5 Dias, e que teve oportunidade de destilar as principais conclusões do livro no que presumo foi uma entrevista ao site Agência Financeira, embora o tom geral da notícia seja perfeitamente panfletário. Devo dizer que fico aliviado. Era o que faltava descobrir agora que em cima dos impostos e “contribuições” pagas ao longo dos anos ao estado ainda lhe devia dinheiro.

Continuando, a historiadora refere que «trata-se de um estudo científico que prova, através de um modelo matemático que os trabalhadores “pagam o suficiente para todos os gastos sociais do Estado”». Confesso a admiração e espanto por tamanha ciência, bem como a perícia matemática. Parece-me no entanto haver aqui alguma falha de comunicação, pois ou a Raquel Varela não considera os salários dos funcionários públicos ligados aos ministérios de acção social do estado como despesa social do estado, ou então está revolucionariamente a considerar que toda a despesa não-social do estado é auto-financiada. Mistério. Mas adiante.

Diz-nos de seguida que «Na maioria dos anos os trabalhadores até pagam a mais, apesar de o Governo nunca ter prestado contas». Aqui fico algo perplexo. Pelo que li da autora, estava convencido que seria comunista. Até à esquerda do PCP, tendo em conta as acusações a este de cedências ao grande capital. Vê-la referir-se a prestação de contas por parte do estado, o que só seria realmente possível num regime de contas individuais é desconcertante. Ainda para mais quando mais à frente sente a necessidade de referir que os ditos modelos matemáticos usados cientificamente não são marxistas.

Para rematar esta questão, afirma que «A divida não é pública, é um mecanismo de acumulação de capital, ou seja é uma renda fixa para quem detém os títulos da dívida. A dívida produz juros e esses juros significam uma renda fixa para quem compra os títulos, nomeadamente o setor financeiro». Não querendo ser picuinhas, e por isso deixando de lado a correcção que a acumulação de capital tem de ocorrer antes da compra dos títulos de dívida, creio que a explicação para a afirmação inicial, que tanto me aliviou, de que os portugueses não devem nada ao estado, advém de uma confusão. Parece que a historiadora e/ou os seus co-autores achavam que dívida pública era dívida do público ao estado. Não, posso adiantar sem necessidade de um estudo centífico ou modelo matemático que a dívida pública é pública por ser do estado e não ao estado.

Devo dizer que para um livro que «põe a nu as contradições do sistema capitalista», pelo menos a sua apresentação pela coordenadora (que presumo científica) está cheia ela própria de contradições e/ou erros. Por exemplo, «os historiadores usam o caso da situação da saúde para concluírem que o setor está nas mãos das Parcerias Público Privadas (PPP): mais de metade do que os portugueses pagam para o serviço nacional de saúde é transferido para hospitais de gestão privada.» Não quero ser desmancha-prazeres, mas isto é um completo disparate. O orçamento total do SNS em 2011 foi de 8,5 mil milhões de euros. Destes, apenas 232 milhões (2.6%) foram em PPPs; e nas restantes subcontratações (meios complementares, etc), o total é de 11.4%. Existe de facto uma alínea que é mais de metade: As transferências para os Hospitais EPE, como por exemplo o Santa Maria, o Garcia de Orta, o São João. EPE significa entidade pública empresarial. Não são empresas privadas. E o facto de terem gestão empresarial não é o mesmo que terem gestão privada. Bem, se calhar para a Raquel Varela tudo o que não seja gestão por comissão de trabalhadores com votação de braço no ar é privado.

Outra contradição, neste caso auspiciosa, é um parágrafo que poderia ter sido escrito aqui n’O Insurgente:

«Outro número escandaloso são as PPP rodoviárias. Mesmo que as pessoas deste país não andem nas autoestradas, estão a pagar como se lá andassem, porque o Estado garantiu a algumas empresas uma renda fixa, independentemente de passarem lá carros ou não. Ou seja, é um capitalismo sem risco. Não é aquela ideia do capitalista empreendedor que corre riscos para ganhar lucro. É a ideia do capitalista que não vive sem a cobertura do Estado.»

Por este andar, pode ser que a Raquel Varela ainda perceba a diferença entre capitalismo stricto sensu, ou seja laissez-faire, e o crony-capitalism corporativo, que de capitalismo apenas tem o nome.

14 pensamentos sobre “Quem não deve, não deve (mas se calhar até teme)

  1. tina

    Um livro ainda mais interessante seria sobre as reações da esquerda perante o simples facto de o socialismo ter acabado porque o dinheiro acabou. Ora vejamos:

    – Primeiro choque – juros começam a subir vertiginosamente. Nessa altura, os grandes culpados eram as agências de rating. Não sei porquê, mas agora nunca se fala das agências de rating.
    – Segundo choque – pedido desesperado de ajuda externa. Para a esquerda, a culpa da ajuda externa não foi porque tinhamos ficado sem dinheiro mas sim porque o PSD não aprovou o orçamento. Agora, só os mais fanáticos ainda sustentam isso.
    – Terceiro choque – imposição de medidas de austeridade. Não são precisas nenhumas medidas de austeridade, só temos de fabricar dinheiro ou recorrer a truques monetários e o problema resolve-se.

    Em resumo, nunca houve um problema de dívida excessiva e falta de dinheiro. Para a esquerda o problema foi devido apenas às agências de rating e ao PSD e podemos fabricar dinheiro para substituir aquele que ninguém nos quer emprestar.

  2. JS

    Bem visto M.B.M.. Espantoso!.
    Logo no dia em que o Nobel de Economia foi, como demonstra, “laurear” a cabecinha errada. Realmente é difícil explicar a um peixinho vermelho, feliz, dentro do seu aquário, o que é “água”.
    Só tirando-o cá para fora, o que até sería uma crueldade. Não acha?.

  3. aaaaaa

    A Raquel Varela denunciaria facilmente a URSS como um estado não-socialista, com a mesma facilidade com que vocês admitem que vivemos em corporativismo, crony capitalism, social democracia ou mesmo socialismo, nos casos dos autores mais revolucionários deste magnífico blog.

  4. JS

    Dir-se-ia que este anúncio, do próximo Orçamento de Estado, obedece a uma estratégia política, por parte do Governo, de abandonar completamente a tática dos “passinhos pequenos e leves”.

    Esta filosofia aclara a realidade e ultrapassa as “relativamente autorizadas” vozes que preconizam, inverossímeis, “paninhos quentes”. O resultado poderá ser um “ou vai ou racha”.

    Com a prevista reacção popular, este governo, se subsistir, terá então, quiçá, a necessária autoridade para cortar a direito, doa a quem doer. Se subsistir.
    E, pelo menos, não escamoteou, não iludiu. Não contemporizou os autores de fáceis demagogias.

    Quanto às equipes de ansiosos por trepar, já, para o poleiro, paciência.
    Haverá muitas outras crises, aproveitáveis, para exercitar proverbiais mestrias “política”.

  5. Euro2cent

    “prova, através de um modelo matemático”

    Bah, isso não é nada. Eu provo um copo de tinto, que tem mais ou menos a mesma autoridade cientifica que o modelo matemático.

    Modelos matemáticos qualquer imbecil inventa para sustentar seja o que for. Dois pontapés nas premissas, e até as galinhas voam como águias.

  6. Realmente a autora parece estar confusa quanto aos conceitos do que é a esquerda e a direita, mas no fundo não estamos todos? Cá pra mim a esquerda e a direita até gostam de jantar e depois dormir juntos. E ainda queria ver que formulas matemáticas usou.

    Relativamente a estes pontos também gostaria que colocasse aqui os documentos e fundamentos se não for dar muito trabalho:

    – O orçamento total do SNS em 2011 foi de 8,5 mil milhões de euros. Destes, apenas 232 milhões (2.6%) foram em PPPs; e nas restantes subcontratações (meios complementares, etc), o total é de 11.4%.

    – “a acumulação de capital tem de ocorrer antes da compra dos títulos de dívida” …neste tou mesmo confuso %\

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  8. Adelaide

    Vi a entrevista da Raquel. Alucinante. Vê-se que é historiadora – se tivesse ideia do que é a modelaçao saberia que “garbage in, garbage out”. É pena as provas cientificas que a Raquel diz ter, nao tenham sido apresentadas a uma revista internacional com arbitragem pelos pares.

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