A Política do Inatismo

The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion” é o mais recente livro do psicólogo social e evolutivo Jonathan Haidt. A premissa do livro é simples: através de uma perspectiva evolutiva, Haidt mostra através de inúmeros dados que as nossas escolhas políticas (socialista, conservador, liberal) são influenciadas decisivamente por características biológicas inatas. Isto claro, não significa que é a nossa pré-disposição natural que define em absoluto as nossas escolhas ideológicas; significa sim que, num dado contexto, perante a exposição a determinadas ideologias/mundividências, a nossa escolha será instintivamente passional e apenas racionalizada à posteriori.

Os indivíduos sentem os fenómenos de forma diferente. Uma pessoa que sente uma insuportável dor ao ver imagens de fome noutras partes do mundo tem mais probabilidades de escolher uma ideologia igualitária do que alguém que aceita o facto como natural e prefere antes agir localmente nos problemas da sua vida, família ou comunidade.

Haidt identificou algumas das tendências psicológicas centrais nos chamados “progressistas de esquerda”: entre outras, a abertura à experiência (amor por coisas desconhecidas, subversão do tradicional) e a fixação no valor da igualdade (uma aversão à hierarquia a que chamam de justiça social). Já nos conservadores e tradicionalistas ele identificou que o espírito tribal era assumido, isto é, que existia uma clara assunção do conceito de “nós” vs “eles” (família, genealogia, comunidade, nação), que a hierarquia era aceite como natural, inevitável e benéfica, e que o respeito pela autoridade do grupo era valorizado.

Naturalmente, as tendências que a esquerda apresenta são inversamente proporcionais às de direita, e tal deriva da forma como as pessoas “sentem” o mundo.

Ademais, Haidt revelou que os liberais clássicos/libertários estão muito mais próximos da esquerda do que da direita em termos sociais. Em boa parte isto advém do facto de verem o indivíduo como soberano e não como parte de um grupo, tal como a direita vê.  Neste ponto as questões tornam-se confusas; então não é a esquerda que é suposto ser colectivista? Não necessariamente. A chamada esquerda liberal (new left) renega a existência de grupos porque paradoxalmente o seu grande cavalo de batalha são os chamados “grupos de vitimização” (mulheres, outras etnias, homossexuais, etc) e o objectivo final é o fim das diferenças entre grupos. Por outras palavras, o objectivo é a individualização igualitária, a atomização, o “todos iguais na diferença” e essa individualização terá de ser garantida pelo Estado (liberdade positiva).

Outra razão pela qual Haidt coloca os liberais clássicos/libertários na esquerda é que estes tendem a ser mais racionalistas e mais despegados de instintos tribais. Porém, acrescenta que eles tendem a votar na mesma linha dos conservadores porque ambos consideram que o Estado Social que a esquerda promove tem efeitos destrutivos. Para os libertários o Estado Social é destrutivo da liberdade individual e para conservadores/tradicionalistas é destrutivo de uma ordem comunitária tradicional e meritocrática.

No entanto, há uma razão bastante mais forte para colocar os liberais clássicos na direita: não estão enamorados pela igualdade. Independentemente dos seus benefícios, o resultado do mercado livre significará sempre desigualdade como reflexo das diferentes habilidades inatas humanas. Apesar de tudo, é possível argumentar que eles estão enamorados pela igualdade de direitos (propriedade, liberdade, etc) e este foco nos “direitos”, apesar de diferentes, é uma das bandeiras da esquerda. Sem “direitos” a esquerda não sobrevive ideologicamente. Já a direita tradicional baseia-se no que é melhor para o grupo, e o que é melhor para o grupo é a hierarquia natural, o respeito pelas normas sociais e não uma lógica de direitos. Na lógica de Edmund Burke ou de Oswald Spengler, a ordem hierárquica demorou séculos, talvez milénios, a ser formada pelo acomodar das diferentes habilidades humanas numa sociedade; qualquer revolução institucional de massas apenas traz o caos inutilmente, pois o processo começa de novo, provavelmente para se chegar ao mesmo ponto.

Desta forma, os liberais clássicos/libertários parecem operar na terra de ninguém no que diz respeito ao espectro político esquerda/direita.

Sendo estes arquétipos ideológicos imperfeitos quando praticados, cada um preenche as suas reivindicações puxando mais para a direita ou para esquerda em assuntos particulares. No caso dos liberais clássicos, há quem termine mais à direita e quem termine mais à esquerda. Os individualistas extremos estarão socialmente mais à esquerda, mas aqueles que, tal como F.A. Hayek, abraçaram a selecção de grupo, estarão mais à direita. Aliás, o facto de Hayek rejeitar “direitos” e basear-se em normas sociais e na selecção de grupo (onde tribos competem com tribos) ajudou em grande parte à sua receptividade pela direita.

Hayek, tal como E.O. Wilson, Charles Darwin, Elinor Ostrom e o próprio Jonathan Haidt, perceberam que a essência grupal dos seres humanos é um produto da evolução que nos faz competir não só dentro dos grupos mas principalmente entre grupos. Se existir liberdade, existirá competição grupal; e para que essa competição seja eficaz, todos os grupos se focam na punição dos “cheaters” ou “free riders”.

Sendo os mais honestos em relação a esta lógica grupal, o foco na coesão de grupo por parte de conservadores/tradicionalistas está por demais evidente na sua condenação moral de actos que vão contra essa coesão do colectivo como unidade adaptativa; entre muitos outros, é bem conhecida a contestação a actos de egoísmo puro (receber sem dar), anti-comunitarismo, práticas homossexuais, miscigenação, atitudes anti-família, atitudes anti-autoridade natural, etc…

Curiosamente, a esquerda progressiva rejeita a lógica grupal do “nós” contra “eles” (“in-group/out-group”) mas na prática são tão tribais como os demais humanos. Tal como Charles Murray documentou no seu último livro “Coming Apart”, apesar de toda a sua retórica de inclusão, os progressistas de esquerda vivem em famílias tradicionais, rodeados de pessoas tal como eles e em antagonismo constante contra o grupo da “direita”. Haidt explica o facto com a tendência humana para “sacralizar” valores de forma a unir o  seu “grupo” contra o outro “grupo”. No caso da new left “frankfurtiana” a sacralização fez-se à volta dos supracitados “grupos de vitimização” que tinham de ser protegidos do homem ocidental e à direita a sacralização é feita abertamente à volta do seu próprio grupo.

Por fim, Haidt escreveu que foi um homem de esquerda durante boa parte da sua vida mas que por ser por natureza politicamente incorrecto nunca se sentiu totalmente “em casa”. Hoje diz-se centrista, mas não se coibiu de revelar que depois de todos os estudos que fez, não tem dúvidas de que os valores conservadores/tradicionalistas estão muito mais próximos da natureza humana do que todos os outros.

Leitura complementar: Selecção individual, selecção de grupo e liberalismo clássico

15 pensamentos sobre “A Política do Inatismo

  1. lucklucky

    E a cidade vs campo vs suburbios? escreve alguma coisa? pelo que noto a maioira das pessoas anti-liberdade vivem nas cidades. O contacto entre humanos potencia a existência de cada vez mais regras, até um ponto são benéficas – apertar a mão é uma convenção e como a maioria das convenções é uma decisão económica – mas a cidade parece ser o embrião dos disfuncionais que querem regras em tudo e por isso é nas cidades as grandes votações na esquerda. Todos se têm de sentir iguais na cidade ergo regras.

  2. Ramone

    “Hoje diz-se centrista, mas não se coibiu de revelar que depois de todos os estudos que fez, não tem dúvidas de que os valores conservadores/tradicionalistas estão muito mais próximos da natureza humana do que todos os outros.”

    O problema de se falar da natureza humana na política é que redunda em teses tautológicas como esta que citei. A sua lógica é: a política preferida da natureza humana é a conservadora porque a natureza humana é politicamente conservadora.

    Naturalmente que não cabe uma negação completa da importância dos referidos valores tradicionais mas não deixa de ser verdade que ao longo da história os conservadores, de cada época, dizem invariavelmente que a tradição é o que melhor traduz a natureza humana.

  3. Demasiado claro para ser ignorado. A própria observação da realidade, sem “palas” nos olhos e com total consciência de que poderemos ter surpresas, e dispostos a admitir o derrube de barreiras que julgávamos incontestáveis, permite a constatação destas ideias.

    Ademais, pelos vistos, a Antiguidade Clássica conseguiu demonstrar como assim era a vida, natural quanto simples. Infelizmente, parece que nos esquecemos dos ensinamentos que todos aprendemos. A falácia da igualdade é destrutiva.

  4. João Branco

    A migração do autor de esquerda -> centro pode ser também simplesmente reflectir o facto de que está a envelhecer (como todos nós). O envelhecimento geralmente traz consigo esse tipo de reposicionamento (principalmente menos extremismo mas também uma tendencia para mudança de esquerda -> direita).

  5. lucklucky

    O Alentejo é uma excepção no panorama. Haverá certamente outras pelo Ocidente fora. Mas estava a referir-me mais aos EUA.

    “As grandes votações da esquerda são nos suburbios, não nas cidades”

    Depende dos suburbios.Talvez que a desertificação do centro de algumas cidades com o envelhecimento contribua por cá?

  6. “A chamada esquerda liberal (new left) renega a existência de grupos porque paradoxalmente o seu grande cavalo de batalha são os chamados “grupos de vitimização” (mulheres, outras etnias, homossexuais, etc) e o objectivo final é o fim das diferenças entre grupos. Por outras palavras, o objectivo é a individualização igualitária, a atomização, o “todos iguais na diferença” e essa individualização terá de ser garantida pelo Estado (liberdade positiva).”

    A mim até me parece que a “new left” (especialmente na versão actual; nos anos 60 era um pouco mais complicado) até é muito mais grupalista que a esquerda tradicional – a esquerda clássica era muito adepta do principio “só há duas coisas, o individuo e a humanidade; tudo o resto – familias, nãções, tribos – é alienação”; é com a “new left” que começa em força a “identity politics” na esquerda (no caso dos EUA, com a moda dos “americanos hifenizados”, quando antes até seria mais a direita a fazer essa distinções).

  7. Mariana

    Esse tal de Haidt “mostra” (eheheheheh) que “as nossas escolhas políticas (socialista, conservador, liberal) são influenciadas decisivamente por características biológicas inatas” para concluir que “não tem dúvidas de que os valores conservadores/tradicionalistas estão muito mais próximos da natureza humana do que todos os outros.” Afinal em que ficamos? Os socialistas têm características biológicas que não são humanas? Serão marcianos? Do planeta vermelho, portanto, daí a conotação? É a natureza humana essencialmente igual à dos macacos? Estes juntam-se em pequenas tribos e guerreiam ferozmente com as tribos vizinhas. Serão os conservadores essencialmente macacos? Seria o Hayek um gorila? Ufa… Comecemos de novo.

  8. jhb

    “não tem dúvidas de que os valores conservadores/tradicionalistas estão muito mais próximos da natureza humana do que todos os outros.”
    Uff! Mais uma razão para ser de esquerda… E isto se se admite que existe tal coisa, a “natureza humana”, que não me soa.
    Mais uma tentativa conservadora de justificar moralmente o “business as usual”, o egoísmo, o patriarcado, etc etc

  9. Trinta e três

    Sabem que mais? Vale do Vouga! Uma das mais belas regiões do país, com um verde i tenso mesmo nesta altura do ano, onde ainda é possível ouvir o som do silêncio e, claro, deliciarmo-nos com um fantástico pastel de Vouzela.

  10. Ramone

    http://www.lacan.com/zizbadman.htm

    (…)

    “It is here that the materialist-dialectic passage from the Two to Three gains all its weight: the axiom of Communist politics is not simply the dualist “class struggle,” but, more precisely, the Third moment as the subtraction from the Two of the hegemonic politics. That is to say, the hegemonic ideological field imposes on us a field of (ideological) visibility with its own “principal contradiction” (today, it is the opposition of market-freedom-democracy and fundamentalist-terrorist-totalitarianism – “Islamofascism” etc.), and the first thing to do is to reject (to subtract from) this opposition, to perceive it as a false opposition destined to obfuscate the true line of division. Lacan’s formula for this redoubling is 1+1+a: the “official” antagonism (the Two) is always supplemented by an “indivisible remainder” which indicates its foreclosed dimension. In other terms, the TRUE antagonism is always reflective, it is the antagonism between the “official” antagonism and that what is foreclosed by it (this is why, in Lacan’s mathematics, 1+1=3). Today, for example, the true antagonism is not the one between liberal multiculturalism and fundamentalism, but between the very field of their opposition and the exclude Third (radical emancipatory politics). – One is even tempted to link this Threesome to three different mechanisms of keeping a social body together:

    – the traditional matrix of authority in which a community is established through sacrifice or is grounded in some primordial crime, so that it is the guilt which keeps the members together and subordinates them to a leader;

    – the “invisible hand” of the market, i.e., a social field in which, by means of a Cunning of Reason, the very competition among individuals, each following his or her egotistic concerns, results in a mysterious balance which works for the best of all;

    – the open political process of social cooperation in which decisions are neither made by the supreme authority, nor are they the outcome of a blind mechanism, but are reached through conscious interaction of individuals.

    And, furthermore, do these three modes not form a kind of Levi-Straussian triangle? Both market liberalism and the properly democratic space of civil public action and planned social cooperation. (One can argue, of course, that the triangle should be extended to a Greimasian semiotic square, since the third mode is itself split between democratic self-organization proper and the State Power imposed from above onto society – “self-management versus bureaucracy.”)

    This allows us also to approach in a new way Badiou’s concept of “point” as the point of decision, as the moment at which the complexity of a situation is “filtered” through a binary disposition and thus reduced to a simple choice: all things considered, are we AGAINST or FOR (should we attack or retreat? support that proclamation or oppose it?) With regard to the Third moment as the subtraction from the Two of the hegemonic politics, one should always bar in mind that one of the basic operations of the hegemonic ideology is to enforce a false point, to impose on us a false choice – like, in today’s “war on terror,” when anyone who draws attention to the complexity and ambiguity of the situation, is sooner or later interrupted by a brutal voice telling him: “OK, enough of this muddle – we are in the middle of a difficult struggle in which the fate of our free world is at stake, so please, make it clear, where do you really stand: do you support freedom and democracy or not?” (One can also imagine a humanitarian version of such a pseudo-ethical blackmail: “OK, enough of this muddle about the neocolonialism, the responsibility of the West, and so on – do you want to do something to really help the millions suffering in Africa, or do you just want to use them to score points in your ideologico-political struggle?”) The obverse of this imposition of a false choice is, of course, the blurring of the true line of division – here, Nazism is still unsurpassed with his designation of the Jewish enemy as the agent of the “plutocratic-bolshevik plot.” In this designation, the mechanism is almost laid bare: the true opposition (“plutocrats” versus “Bolsheviks,” i.e., capitalists versus proletariat) is literally obliterated, blurred into One, and therein resides the function of the name “Jew” – to serve as the operator of this obliteration. The first task of the emancipatory politics is therefore to distinguish between “false” and “true” points, “false” and “true” choices, i.e., to bring back the third element whose obliteration sustains the false choice – like, today, the false choice “liberal democracy or Islamofascism” is sustained by the obliteration of the radical secular emancipatory politics. So one should be clear here in rejecting the dangerous motto “the enemy of my enemy is my friend,” which leads us to discover “progressive” anti-imperialist potential in fundamentalist Islamist movements. The ideological universe of movements like Hezbollah is based on the blurring of distinctions between capitalist neoimperialism and secular progressive emancipation: within the Hezbollah ideological space, women’s emancipation, gay rights, etc., are NOTHING BUT the “decadent” moral aspect of Western imperialism…”

    (…)

  11. Paulo Pereira

    As provas são avassaladoras a favor do centrismo social-democrata .

    Não exsiste nenhum sistema politico-economico que possa competir com o sistema dual capitalismo / estado social, que conjuga alta produtividade e inovação continua, com elevado consumo e bem estar .

  12. Pingback: Liberalismo, esquerda e direita « O Insurgente

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