A experiência na Casa Pia e os viciados em indignação

Depois da gripe das aves, das agências de rating, do Pingo Doce, da emigração, da selecção, das intervenções policiais, do Pingo Doce outra vez, dos subsídios ao cinema e do Relvas, eis que surje um novo motivo para indignação. Há 16 anos atrás foi conduzida uma investigação para entender os efeitos neurocomportamentais da utilização de amálgamas de prata contendo mercúrio nos dentes, utilizando como cobaias crianças da Casa Pia. As vozes mais inflamadas já vieram comparar esta experiência à dos regimes nazis. Uma reportagem emotiva na RTP cheia de deficiências e erros de investigação despoletou a onda indignação. Porém, antes de se indignar convém fazer uma reflexão, ler o estudo (é pequeno) e fazer as questões certas.
Para aqueles que não leram o estudo, este consistiu basicamente em fazer tratamentos dentários a um grupo de 250 crianças da Casa Pia recorrendo a amálgamas de prata (standard na altura e ainda hoje) e a um segundo grupo de 250 crianças recorrendo a um composto diferente que não continha mercúrio. A evolução neurocomportamental dos dois grupos foi depois acompanhada para tentar entender se existiam diferenças que pudessem ser causadas pelo mercúrio.
A primeira questão a fazer é saber se a experiência expôs as crianças a qualquer substância a que não teriam sido expostas caso a experiência não tivesse sido feita. A resposta aqui é um claro não. O tratamento com chumbos de prata contendo mercúrio era o standard na altura (a maior parte dos leitores deste blog terão um ou mais dentes com este tipo de composto), e se as crianças tivessem tratamento dentário normal, seria esse o tipo de amálgama que receberiam. Quando muito, a experiência fez com que 250 crianças não tivessem amálgamas de prata.
A segunda questão passará por saber se as crianças foram expostas a mais mercúrio do que seriam sem a experiência, ou seja, se foram colocados chumbos desnecessários. Aqui a resposta é mais complicada. No estudo afirma-se que a mediana de número de amálgamas nas crianças com amálgamas de prata foi 16*, o que parece ser um número elevado. Porém convém olhar para os factores que levaram às escolha das crianças da Casa Pia para o estudo: a universidade de Lisboa já tinha identificado aquelas crianças como sendo um grupo de alto risco em termos de higiene oral (se houvesse dúvidas, mais uma prova das “vantagens” da institucionalização do estado). Para além disso, apenas as crianças que já tivessem cáries foram incluidas no estudo. Com todos estes factores, deixa de ser tão surpreendente que a mediana de chumbos seja 16. Ainda menos surpreendente será, se considerarmos que entre as crianças que não foram tratadas com amálgamas de prata a mediana foi de 21. Se o objectivo fosse expôr as crianças a mais mercúrio do que o necessário, não haveria necessidade de sobrecarregar também as crianças no grupo de controle.
Em resumo, tudo o que a experiência fez foi observar a reacção de um grupo de crianças a um tratamento ao qual teriam sido expostos de qualquer forma porque era o standard na altura. As crianças não foram expostas a nenhum risco adicional devido à experiência. Bem sei que esta explicação não encaixa na narrativa de crianças pobrezinhas abusadas por uma universidade imperialista americana que seria tão bom material de indignação, mas a realidade é mesmo assim.

*Entretanto fui informado por profissionais da área na caixa de comentários de que as 16 “tooth surfaces” referidas no estudo não significam 16 dentes tratados, uma vez que cada dente pode ser tratado em diferentes superfícies. Agradeço à Catarina Vaz e ao Miguel Fraga pelo esclarecimento, que apenas vem reforçar ainda mais o argumento do post.

24 pensamentos sobre “A experiência na Casa Pia e os viciados em indignação

  1. Ricardo C.

    Obviamente que foi uma não-notícia em busca de sensacionalismo barato. As amálgamas com mercúrio ainda hoje se utilizam em pacientes com casos especificos, por exemplo, quando se verifica não terem boas práticas de higiene (e nem imaginam quantos são, mesmo de classes sociais ditas superiores).

    Alguns dos entrevistados não me pareceram muito credíveis, baseando-se em teorias e histórias que pareciam mais de uma seita religiosa que de experiência ciêntifica. Se não fosse sério daria vontade de rir… Mas o objectivo foi alcançado, vilipediando uma vez mais a Casa Pia e assustando uma população que em grande parte tem tratamentos dentários feitos com amálgama. Em troca de audiências…

    Note-se que há estudos ciêntificos realizados em países do 3º mundo que, de facto, tocam as raias da infâmia. Por exemplo, para falar de um caso que vi referido há uns anos atrás, aplicar compósito de grande qualidade em crianças de um país africano, numa clínica onde nem sequer há um sistema de aspiração é um disparate, uma fraude que apenas serve para fazer curriculo. Os resultados nunca poderão ser satisfatórios a prazo. Além dos compósitos exigirem higiene e vigilância em muitos casos impossíveis de obter.

    Mas aqui, nesta notícia da Casa Pia, estamos muito, mas mesmo muito longe desses casos. Trata-se apenas de um aproveitamento sensasionalista de algo que é normal e inócuo.

  2. “Se o objectivo fosse expôr as crianças a mais mercúrio do que o necessário, não haveria necessidade de sobrecarregar também as crianças no grupo de controle.”

    Acho que haveria, precisamente para o grupo de controlo ser mais parecido com o do mercurio.

  3. Isso não tem lógica, caro(a) Zwei. O objectivo seria o contrário (estou a teorizar, admito). Normalmente, estes estudos fazem-se quando se quer mudar as práticas correntes de forma a vender o novo produto.

  4. Ricardo Monteiro

    De certeza que as pessoas que leram este post, deixavam os próprios filhos “participar” nesta experiência. De certeza.

  5. Carlos Guimarães Pinto

    Zwei, a experiência era testar o efeito do mercúrio. O grupo de controle seria exposto ao mesmo nível de mercúrio quer tivesse 5 ou 30 tratamentos. era exactamente o mesmo.

    Ricardo Monteiro, diga lá porque é que não deixaria os seus filhos participar nesta experiência. Não os leva ao dentista?

  6. Catarina Vaz

    Antes de me caírem os dentes de leite dois deles tinham amalgama. Não fiz parte de nenhum estudo, o material foi usado porque estava indicado e está aprovado para uso médico em humanos há várias décadas, e nem o meu dentista era criminoso nem a minha mãe era uma má mãe. Resta salientar que a mediana de 16 restaurações não significa 16 dentes restaurados, já que cada dente pode apresentar mais que uma cárie separadas, sendo que em crianças institucionalizadas há uma incidência de cárie normalmente mais elevada que noutras idades e estratos socio-economicos

  7. Miguel Fraga

    Queria apenas esclarecer que as 16 “tooth surfaces”, não quer dizer que sejam obrigatoriamente 16 dentes tratados, pois cada, repito cada restauração dentária pode dividir-se em 3 grupos conforme envolva Uma, Duas ou Três faces desse mesmo dente, e neste caso o que se fez foi somar o numero de faces, a título de exemplo poderíamos estar a falar de apenas 6 dentes por criança,…. já agora apenas gostaria de referir, que na qualidade de Médico Dentista, a reportagem de ontem foi facciosa e intelectualmente desonesta, e susceptível de ser causadora de alarme social por parte de quem é menos informado relativamente a estas matérias….

  8. Ricardo Arroja

    Carlos (e médicos dentistas na plateia),

    A médica dentista que tenho cá em casa diz que, sem prejuízo do sensacionalismo da dita reportagem e do facto de à luz da evidência científica de então não existirem efeitos lesivos associados ao uso da amálgama, há uma série de países (nomeadamente os nórdicos) onde o uso da amálgama foi restringido ou até mesmo abolido (Noruega). Mais, existem hoje materiais que podem substituir a amálgama com bons resultados (e esteticamente até com melhores resultados), sem o potencial tóxico que, na dúvida (como as restrições anteriores indiciam), podem estar associados à amálgama.

  9. É curioso que entre tanta sapiência, tanta gente imune ao mercúrio, ninguém tenha chegado ao cerne da questão, e o cerne da questão é que alguém autorizou que dezenas de crianças institucionalizadas foram objecto de um estudo médico, e desculpem lá mas não me parece que isso seja nem lógico nem admissível.

    Não li evidentemente o resultado do estudo, porque não me interessa, acredito que o senhor tenha lido e que as conclusões sejam as que diz, mas diga-me lá uma coisa, se as conclusões tivessem sido que o mercúrio era prejudicial para a saúde, que a longo prazo pode ser causa de cancro e de outras doenças este seu post teria o mesmo sentido?, se calhar não, mas a verdade é que o estudo já teria sido feito e as crianças sujeitas ao mercúrio.

    Já agora, não se pergunta quantos outros estudos terão sido feitos na Casa Pia e nas centenas de instituições que há no país?, sim, porque se autorizaram este quem sabe a troco de quê, quem nos diz que não autorizaram outros?

    E não, a desculpa de que as crianças não tinham tratamento dentário e assim ficaram a ter não pega, porque se não tinham era porque a Casa Pia não cumpria com a sua obrigação de o facultar… assim como não cumpria a sua obrigação de as proteger de estudos médicos e dos abusos por parte de funcionários e estranhos.

    Jorge Soares

  10. Diogo Alves

    Na minha opinião, o problema não é se o estudo fez mal aos meninos, é o facto de se sujeitar crianças a estudos e, principalmente, sujeitar crianças que indefesas. Mas concerteza que sou eu que estou a ver mal a coisa e de certeza que o proximo estudo do género será feito no Liceu Francês.

  11. Jorge Soares, o seu comentário só faria sentido se as crianças tivessem sido expostas devido à experiência a alguma substância que não teriam sido sem ela. Isso não é verdade: se as crianças tivessem ido a qualquer dentista em 1996 para tratar os dentes, teriam tido os implantes de mercúrio na mesma. Era o tratamento standard na altura. Repito: não houve qualquer exposição adicional a risco, as crianças receberam o tratamento que teriam recebido de qualquer forma se não fizessem parte da experiência. Vou mais longe: mesmo que o resultado do teste tivesse sido que o mercúrio na amálgama é prejudicial, o estudo continuaria a ser ético, porque, repito, as crianças não foram expostas a nenhum risco adicional pela experiência.

    Ricardo, saber se o mercúrio nas amálgamas é ou não prejudicial é irrelevante para as conclusōes do post. O que importa é reconhecer que a experiência não expôs as crianças a nenhum risco adicional.

  12. joao

    Caro Ricardo Monteiro, sim muitos pais aceitariam colocar os filhos nesta experiência, tanto que aceitaram (muitos miudos da casa pia não estão institucionalizados). Foi feito um consentimento informado, e logo nenhum pai deu autorização sem saber o que se iria passar. O que não é assim tão surpreendente afinal o objectivo era tratar os dentes de crianças, com grandes necessidades e com uma saúde oral precária, com amálgamas, os vulgos chumbos, e não era com uma amálgama especial, feita especialmente para o estudo e para poder mal tratar as criancinhas, era somente a amálgama que se usava correntemente e que na altura seria o material que mais frequentemente se usava para tratar cáries, material esse que ainda se hoje se usa, e se usa cada vez menos, mas não por ser um mau material, ou por causar outros danos, mas sim porque é menos estético, contudo é um material que em determinadas casos ainda é o mais apropriado. Portanto era um estudo de amálgama versus uma material mais recente, realmente os pais e o provedor fizeram muito mal em ter aceite tal. O que deveriam era ter levado as crianças ao dentista e depois de saírem do consultório pedirem aos meninos para abrir a boca e reparar que os meninos tinham sido tratados com a malvada amalgama do estudo (há época 1997 era o mais provável). Portanto… Quanto ao grupo de pressão contra a amálgama, de certeza que também haverá um qualquer contra as resinas compostas, já que estas também têm compostos que usados em “quantidades sobrehumanas” poderão ter efeitos deletérios. Também deverá haver um grupo de pressão a favor de nenhum tratamento e a favor dos dentes cariados e não é por isso que lhes irei dar qualquer relevância. Quanto ao último comentário, sim concordo. Este estudo levante questões éticas porque não se deveria realizar estudos em crianças. Contudo penso que as questões éticas se diluem no facto de se ter usado o melhor tratamento disponivel na altura, ou um dos melhores, e não haver sobretratamento, só quem não conhece as bocas portuguesas poderá pensar em tal coisa (infelizmente). Depois pergunto-me se nesta reportagem não se deveria ter pesquisado o contraditório?
    E já agora faço a minha declaração de interesses sou dentista e não tenho qualquer relação com a faculdade de medicina dentária da universidade de lisboa.

  13. P. Monteiro

    Este vergonhoso caso de CIÊNCIA SEM CONSCIÊNCIA, além de expor CRIANÇAS a riscos desconhecidos (muitos deles podem vir só a revelar-se a longo prazo) e “tratamentos” desnecessários (pelo menos em alguns casos – o que, só em si, já é censurável do ponto de vista da deontologia médica), atinge o cúmulo da MÁ FÉ quando, no final dos formulários de consentimento, se afirma que “na eventualidade *pouco provável* (!!! – o estudo pretendia avaliar isso mesmo!!!) de uma criança sofrer um dano físico em resultado dos procedimentos do estudo, essa criança será assistida por um dos membros da equipa de investigação ou enviada a quem possa proceder aos tratamentos necessários. A RESPONSABILIDADE POR QUAISQUER CUSTOS ASSOCIADOS A ESSES TRATAMENTOS SERÁ DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS PAIS OU RESPONSÁVEIS LEGAIS.”

    VERGONHOSO, mil vezes VERGONHOSO – isto é apenas digno de mercenários sem qualquer tipo de escrúpulo!!!

  14. Carlos Guimarães, não percebeu ou eu não me soube explicar, o meu comentário não tem a ver com amálgamas, tem a ver com utilização de crianças institucionalizadas para estudos médicos, a minha indignação seria a mesma se o estudo tivesse sido feita com aspirinas ou benuron.. ou não leu esta parte do meu comentário?:

    Já agora, não se pergunta quantos outros estudos terão sido feitos na Casa Pia e nas centenas de instituições que há no país?, sim, porque se autorizaram este quem sabe a troco de quê, quem nos diz que não autorizaram outros?

    E não, a desculpa de que as crianças não tinham tratamento dentário e assim ficaram a ter não pega, porque se não tinham era porque a Casa Pia não cumpria com a sua obrigação de o facultar… assim como não cumpria a sua obrigação de as proteger de estudos médicos e dos abusos por parte de funcionários e estranhos.

    Jorge Soares

  15. Carlos Guimarães Pinto

    Ou seja, segundo o Jorge Soares, as crianças da Casa Pia não deverão poder participar em quaisquer testes científicos, mesmo aqueles em que não lhes é pedido nada mais do que fazer a sua vida normal, como foi o caso. E as outras crianças, podem? Ou não devem haver testes científicos de todo?

    Quanto a qualquer potencial outro teste médico no qual as crianças tenham sido efectivamente expostas a substâncias nocivas que não teriam sido noutro caso, concordarei consigo. só que não foi noticiado nenhum exemplo.

  16. Sara Pereira

    Olá, quando vi a repostagem mudei logo de canal porque achei de tão ridícula a maneira como foi feita que não merecia visualização. Mais tenho a acrescentar que, se não forem feitos nenhuns estudos em crianças não há hipótese de perceber que tratamentos se podem usar ou não com cada vez mais segurança. Os estudos feitos em crianças são normalmente estudos como este, em que as crianças não são expostas a mais do que aquilo que estariam em condições normais.
    Sara
    Mãe de 3 filhos

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  18. Pois, se o resultado do estudo tivesse sido que aquelas crianças teriam falhas no seu sistema nervoso e renal por terem sido tratadas com as amálgamas de prata, gostava de ver se este post teria sido escrito na mesma. Ainda durante o estudo já havia reportagens do Público sobre ele em que se referia que vários países já tinham praticamente banido o uso dessas substâncias e, segundo parece, o tal “consentimento informado” não existiu porque os formulários assinados em Portugal não referem a presença de mercúrio nas amálgamas, ao contrário do que acontecia nos formulários assinados para o estudo semelhante que aconteceu nos EUA.

    As crianças não teriam sido expostas às amálgamas de qualquer forma porque, como dizem os autores do estudo, nem sequer participariam se o tratamento não lhes fosse oferecido gratuitamente. Basicamente foi a forma de tanto a Casa Pia e os progenitores destas crianças manterem nos seus bolsos o dinheiro que teriam de despender nestas crianças, num país em que o acesso à saúde é considerado um direito básico universal, especialmente quando falamos de crianças.

    Já agora, se leu o estudo, sabe que o objectivo era avaliar os efeitos neuronais e renais do uso de fontes de exposição ao mercúrio, como aparece logo nas primeiras linhas e, se viu a reportagem, verá que o investigador responsável que é entrevistado refere que o que se pretende estudar são os outros compósitos e que as amálgamas com mercúrio não são mais do que o ponto de referência. Têm muita seriedade e coerência, até mentem na televisão sobre o fim dos estudos que executam…

  19. Carlos Guimarães Pinto

    Romeu, apenas uma questão: se as crianças não tivessem participado no estudo, teriam ou não sido tratadas com amálgamas de prata de qualquer forma?

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