Não funciona mesmo

Perante as notas do João Rodrigues a respeito do que aqui disse sobre o sistema bancário, em particular perante a pergunta: “que nos propõe Luciano Amaral? Uma vaga disciplina de mercado, um regresso a um padrão-ouro de má memória?”; tenho de reconhecer que a minha posição não é inteiramente realista. São muitos séculos de uma certa socialização da banca, que não se mudam do pé para a mão. Acresce que, em democracia, alguma autonomia monetária os países têm de ter, o que significa que o banco central de um país democrático sempre terá tendência para intervir, muitas vezes para evitar falências bancárias. As democracias continuam a ser essencialmente nacionais, embora mais ou menos abertas ao exterior. É por isso que eu acho que o padrão-ouro (como, de resto, também o euro na sua fórmula actual) são dificilmente compatíveis com a democracia: o padrão-ouro transformaria as democracias nacionais em meras gestoras do boom & bust gerado pela situação dos pagamentos internacionais, o que acabaria por ser a própria negação da democracia. Sem exagerar, é o risco que corremos hoje no euro.

Mas o facto de a minha posição não ser inteiramente realista não me faz pensar que devo abandonar a ideia de que a disciplina de mercado seria melhor para o sistema financeiro, como aliás é para o resto da economia. Eu não confundo um sistema político e económico ideal com as possibilidades reais. O primeiro é abstracto, as segundas estão sujeitas a uma certa História, a certas circunstâncias concretas. Julgo que é esta posição que distingue um não dogmático de um dogmático. Eu aprecio a democracia (lá está a famosa frase não dogmática: é o pior que existe excepto tudo o resto) e, por isso, estou disposto a prescindir de partes daquilo que penso em favor de ideias com que não estou de acordo em nome da preservação da dita democracia. Agora, no “mercado das ideias” democrático, tentarei propor as minhas, sabendo que umas vezes elas serão aceites e que outras vezes não serão aceites. Por isso sei perfeitamente que jamais o sistema financeiro será completamente sujeito à disciplina de mercado. Mas não deixarei de propor que a comunidade democrática a que pertenço adopte maneiras de o fazer aproximar disso. Acho, definitivamente, que as nossas comunidades democráticas deveriam mesmo arranjar maneira de tornar a actividade bancária (e similares) mais arriscada do que é hoje. No passado já foi, mesmo em democracia. Por isso, uma “certa” disciplina de mercado não é assim tão irrealista.

Agora, no que não acredito mesmo é nos benefícios da nacionalização bancária, ao contrário do João. Uma banca completamente politizada, sem qualquer “disciplina de mercado”, seria o convite a criar-se a ideia de que o crédito é ilimitado, de que é sempre possível fazer tudo. A prazo, qualquer economia seria destruída por isto. No passado, para além de Portugal 75-85, há outros exemplos: a Itália fascista é um deles, ou os países socialistas. Neste último caso, o resultado foi mesmo uma “super-financeirização” da economia. Não através de banqueiros privados, mas através do perdão sistemático das dívidas das empresas. Resultado: o crédito continuava e elas continuavam a produzir aquilo que não era necessário e a não produzir aquilo que era necessário. Acrescendo a isto um processo inflacionário descontrolado. No caso dos países socialistas, como os preços eram fixados por decreto, a inflação via-se na escassez de produtos no mercado oficial e na existência de um mercado negro florescente onde tudo se comprava a 4, 5, 10 vezes mais do que a tabela.

Em suma, por tudo isto, acho que os nossos sistemas financeiros precisam de disciplina de mercado e não de socialização. Como já disse, socialização é o que existe e não me parece bom. E continuo a achar que a socialização do João jamais seria a solução.

3 pensamentos sobre “Não funciona mesmo

  1. Luís Lavoura

    Gostei muito do primeiro parágrafo do post.
    Oxalá os outros insurgentes fossem assim pragmáticos.

  2. neotonto

    disciplina de mercado ?

    Perdao poderia repetir para assegurar que nao foi um erro digital?. Esto nao é uma herexia liberal?

  3. Carlos Novais

    O “pragamatismo” da moeda dos bancos centrais serve para monetizar directa e indirectamente os défices orçamentais e aliar-se à falácia (eu diria crendice…) que expandir o crédito por criação de moeda é benéfico e faz parte da função natural do sistema bancário.

    Sim, precisamos de realismo e pragmatismo nesta matéria: As bolhas/crises e inflação são a maior praga económica que existe. Quer pela riqueza falsa que produz durante a bolha, quer pelos males sociais da crise inevitável. É a questão primordial que os economistas devem debater.

    O padrão ouro/prata sofria do mesmo mal, embora menor, porque a expansão de crédito e moeda sem estar coberto por ouro/prata físico operava da mesma forma, mas ainda assim, o sistema introduzia a disciplina das corridas aos bancos (sempre precedidas por uma qualquer bolha económica). E para acabarem com o padrão-ouro tiveram de o proibir e nacionalizar (roubar) o ouro existente.

    A concessão de crédito para ser sustentável e não introduzir bolhas tem de estar baseada na poupança existente e não na pura criação de moeda. Nestas condições a taxa de juro de mercado corresponde à preferência temporal entre consumo imediato e maior consumo futuro. Isso asseguraria condições de equilíbrio, acabaria com a pirâmide de crédito que põe o sistema bancário internacional sempre na vertigem do colapso e/ou da inflação quantitativa (bailouts desorçamentados para todos os efeitos) para o sustentar.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.