Ainda a solidariedade estatal

O Daniel Oliveira ainda não entendeu. A questão não se prende com a solidariedade estatal ser um objecto de poder, mas o facto de essa solidariedade ser também a alavanca do próprio poder.
A primeira consequência deste facto é o de tornar o ciclo de poder longo, por vezes infinito. A tendência para a bipartidarização das social-democracias ocidentais é o melhor exemplo disso: os partidos obtêm o poder, colocam em marcha os mecanismos de solidariedade que por sua vez lhes dá mais poder e aí reinicia-se o ciclo. No caso da solidariedade privada, a alavanca é o dinheiro, e esse é finito. Quanto mais do seu próprio dinheiro distribuirem, menos terão para distribuir no futuro, e o poder obtido com essa solidariedade raramente se converte no mesmo montante de dinheiro dispendido para activar esses mecanismos de solidariedade. Nunca se viu Bill Gates a utilizar a sua fundação para vender versões do Windows aos mais necessitados, mas o poder político utiliza a solidariedade estatal para obter votos que por sua vez lhe dão o poder de volta para aplicar os mesmos mecanismos de solidariedade.
A segunda consequência é que o objectivo daqueles que decidem como distribuir o rendimento de todos não é o de ajudar os mais carenciados (por definição uma minoria) mas o de obter a aprovação de uma maioria com os recursos disponíveis, por forma a prolongar o poder. Por isso é que hoje em Portugal, apesar de o estado absorver metade dos recursos da economia, continua a haver gente a necessitar de apoio de grupos de solidariedade privados. Ao mesmo tempo, existem muito a ser ajudados sem o necessitarem de facto.
Finalmente, o facto de o poder político estar por natureza muito concentrado faz com que todo o poder redistributivo esteja nas mãos de um pequeno grupo de pessoas, ao contrário do poder conferido pelo dinheiro que está muito disperso. Comparemos, por exemplo, o poder que o presidente dos EUA tem sobre as políticas redistributivas do governo dos EUA com o poder de Bill Gates, cujo rendimento anual após impostos corresponde a cerca de 0.007% do PIB Americano, sobre os fundos de solidariedade privada. Esta concentração faz com que a margem de erro na redistribuição seja superior e os mecanismos de supervisão e controlo muito mais dispendiosos, absorvendo uma maior parcela dos recursos disponíveis para a solidariedade.
A solidariedade estatal sendo ao mesmo tempo objecto e alavanca de poder, não passa de um mecanismo formal de extorsão em que o apoio aos mais carenciados é apenas, para alguns, um subproduto de um processo de conquista de poder.

4 pensamentos sobre “Ainda a solidariedade estatal

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  2. Eu sou capaz de escrever alguma coisa sobre isso, mas para já só um aparte

    “os mais carenciados (por definição uma minoria)”

    Porque é que os mais carenciados são, “por definição”, uma minoria? Até pode ser que sejam, mas não há nenhuma razão para o serem “por definição” (as sociedades modernas costumam ter a forma de uma pêra – poucos ricos, alguns pobres e muita classe média – mas a regra habitual era a pirâmide – poucos ricos, alguma classe média e muitos pobres)

    [Bem, de acordo com as “taxas de pobreza relativa” calculadas na Europa, os “pobres” são efectivamente uma “minoria por definição” – já que o nível de pobreza é calculado como uma fracção do rendimento mediano; mas eu não concordo muito com esse critério]

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