20 dias (em 1984)

As alterações à lei das finanças regionais eram tão graves que justificavam uma ameaça de demissão. Tão graves que, apesar da catástrofe na Madeira, Teixeira dos Santos mantinha a sua opinião sobre o assunto, que «não tem absolutamente nada a ver com a situação dramática que se vive na Madeira».

Hoje o PS «congratula-se», via Antena1, com a promulgação das alterações à lei, precisamente porque o assunto tem tudo a ver com a catástrofe na Madeira.

De uma declaração à outra vão 20 dias. É cada vez menor o pudor com que este governo PS parece achar conseguir reescrever a História.

Na ficção 1984, reescrever a História fazia-se no período de tempo mais curto possível, também através da comunicação social: é que tinham descoberto que estar constantemente a reescrever a realidade era o modo mais eficaz de debilitar a memória de curto prazo, sem a qual é impossível comparar criticamente seja o que for. Em 1984 as notícias antigas eram destruídas quando substituídas por uma nova versão da realidade.* Hoje ainda nos vale a internet.

* Acerca de 1984. é curioso que as leituras mais comuns interpretem a personagem principal como um símbolo do cidadão que resiste. No entanto a personagem principal não é um mero cidadão, é um jornalista cuja função é a difusão da mensagem do Partido. E o livro não mostra alguém que resiste, mostra sim os mecanismos pelos quais se consegue fazer com que esses funcionários do poder neguem a sua capacidade crítica a favor da imagem do Partido. No fim não há resistência. E no processo só a há na intimidade de um quarto, e não sob qualquer forma de resistência cívica. O Partido sai imaculado.

Para uma ficção em que um cidadão resiste efectivamente ao colectivismo no poder, ler Anthem, de Ayn Rand.

12 pensamentos sobre “20 dias (em 1984)

  1. bob

    Obrigado pela sugestão.

    Em Brave New World também encontramos dois cidadãos que prezam a individualidade e liberdade, um com uma perspectiva passiva, desmoralizada e permissiva (Bernard creio) e o outro com paixão, empenho e optimismo. No entanto o resultado é o mesmo (pior no caso de Bernard), ao menos existia a ilha e os selvagens. Bem melhor que no caso de 1984, o planeta prisão..

  2. elisabetejoaquim

    Em 1984 não há bem um «planeta prisão» dado que em rigor apenas o centro cosmopolita vive psicologicamente moldado à ideologia do Partido (da qual depende para sobreviver economicamente). Existem várias passagens em que se percebe que existe uma zona rural imune à ideologia, em que as pessoas (o “proletariado”) vivem à margem do Partido e das suas leis (o vestuário, a língua, a cultura, as trocas são diferentes). Daí que a personagem principal não seja representativa do “cidadão que vive à margem”, mas sim do funcionário cujo mundo mental se resume ao Partido e assim permanece.

  3. elisabetejoaquim

    Dito de outra maneira, a pergunta a que 1984 tenta responder não é (como é comum ver-se como leitura) «como é que um cidadão pode ser psicologicamente independente da ideologia no poder?», mas sim «como é que um socialista pode ser independente da máquina do Partido?». Pessoalmente acho que não pode: o socialismo desemboca forçosamente em engenharia social. Mas claro que para Orwell, um acérrimo defensor do socialismo, as coisas podiam ser independentes.

  4. bob

    Concordo consigo Elisabete, mas mesmo nas zonas rurais ou nas “favelas” do proletariado existia vigilância, quer informática (como o microfone que captava os encontros românticos no campo) quer humana (como a “pensão esconderijo” onde a personagem principal encontra o suposto livro da resistência). A zona selvagem do Maravilho Mundo Novo era realmente selvagem, completamente deixada ao abandono (ou em paz, depende da perspectiva).

    Mesmo as zonas periféricas e a mentalidade do proletariado eram controladas pelo partido, apesar da incidência da repressão e vigilância se verificar nas zonas urbanas e nas populações de “classe média” (devido à cultura/inteligência dos técnicos-operários do Partido) – na realidade não me lembro das condições económicas da personagem principal serem muito diferentes das do proletariado.

    Orwell era um acérrimo defensor do socialismo? Não conheço a sua biografia ou outros trabalhos, mas com o 1984 fiquei a pensar que fosse anti. :/

  5. elisabetejoaquim

    Existia de facto vigilância, mas servia o propósito de vigiar eventuais membros do Partido que se aventurassem pela zona. O proletariado é retratado como selvagem, quase como animais, precisamente por não estarem moldados pelo Partido. Uma das maiores provas é que a língua, a ingsoc, não penetra na zona, que preserva assim a memória linguística quase imperceptível para a personagem principal.

    Uma rápida busca pelo google evidencia o socialismo de Orwell. Era inclusive a favor da nacionalização de toda a rede produtiva.

  6. bob

    O objectivo principal era esse como diz, mas duvido que um membro do proletariado que saísse da linha não tivesse o mesmo tratamento. O máximo que o partido autoriza é ser inconsciente ao que se passa, desde que façam o que este lhes pede (e isto para o proletariado, como vemos depois na tortura da personagem principal para os membros do Partido – pelo menos de baixa hierarquia – é necessário uma fé divina), e jogar no jogo dos bichos a ver se sai a sorte grande.

    No BNW a mãe do selvagem inadvertidamente ficou retida com os selvagens, mas existia essa possibilidade para quem da sociedade não estivesse satisfeito, mesmo depois de toda a soma e ensino hipnopédico. Também considerados como animais, mas para quem nada interessam a nível politico, só em termos de curiosidade e ego humano como depois vemos na viagem do selvagem à “Sociedade”.

    Vou pesquisar e obrigado, mas fiquei um pouco triste com essa noticia… :/

  7. elisabetejoaquim

    Não tenho a certeza de ter percebido bem o seu comentário. O «proletariado» em 1984, tanto quanto me lembro, não são os membros do Partido nem os funcionários mais baixos, mas sim o nome que se dá às pessoas fora dele, que nem sabem da existência do Partido. O proletariado nunca é torturado, nem sequer trazido para a zona do partido, ou seja, não existe o conceito de «sair da linha» aplicado ao proletariado, eles são simplesmente deixados «à solta» na zona rural. Duvido que eles soubessem sequer que eram «proletariado» aos olhos do Partido.

  8. Para o Bob:

    George Orwell estava mais ou menos algures entre o trotskismo e o anarco-sindicalismo; é natural que ele ecrevesse romances anti-URSS (o 1984 e “O Triunfo dos Porcos”) – os bloquistas e os “anarcas” também não gostam do PCP.

  9. bob

    Obrigado a ambos.

    Para ser honesto li o 1984 há algum tempo e quando era demasiado jovem para compreender para além da mensagem principal (anti-totalitarismo), percebi que o “proletariado” existia fora do Partido, mas não que co-existia completamente independente do Partido, como no BNW. Pensava que eram a “mão-de-obra” do partido e este a oligarquia governante, as quais também têm hierarquias.

    Fica então o 1984 e os textos do Miguel para ler. 🙂

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