Será burrice? Será má-fé? Ou será simplesmente para convencer os leitores a comprar um livro, já que a qualidade literária não se vislumbra?

José Saramago, que talvez estivesse sentindo algum défice de atenção a precisar de ser corrigido, lá escreveu outro livro sobre a Bíblia e os personagens bíblicos, na sua cruzada contra o cristianismo e o judaísmo (ou na busca de mais uns tostões, o que é mais honorável do que a motivação anterior), mostrando a esses néscios que são os crentes que Deus é mau, dando como prova o Antigo Testamento. Como o faz? Com duas burrices titânicas.

A primeira é tomar como factuais os relatos bíblicos. Sim, é verdade: os católicos há muito que têm como pacífico que a Bíblia é ‘apenas’ um livro teológico, cujo objectivo é salvífico e não proporcionar um curso de História ou de ciências naturais (áreas do conhecimento de resto desconhecidas durante a maior parte dos séculos em que os textos bíblicos foram sendo escritos). A Bíblia é mais ou menos fiel à história e aos factos consoante isso se adequa ou não à catequese sobre o que deveria ser a relação de Deus com o seu povo escolhido (e, depois, no Novo Testamento, com cada um de nós e a Igreja). Algo pacífico, como disse, há muito, para os católicos, mas alguns ateus ainda não conseguiram entender isto. Sejamos caridosos e dêmos-lhes todo o tempo que necessitarem.

A segunda é julgar a religiosidade e os valores de há mais de vinte séculos – que são os que estão estampados nos textos bíblicos – com as lentes do séc. XXI. Como é fastidioso repetir o óbvio, para este ponto recomendo este post, a propósito das incursões nada bem sucedidas de uma jornalista de causas pelo Deuteronómio.

Mas não são as burrices anti-católicas e anti-judaicas de Saramago que o tornam merecedor de ficar nos escaparates das livrarias em vez de em nossas casas, nem sequer o facto de não perceber do que escreve (como diz D. Manuel Clemente, qualquer introdução de uma Bíblia desfazia as dúvidas básicas de Saramago). Há muitos bons livros escritos, mais ou menos informados, que contraditam ou interpelam a Bíblia, e eu tendo a consumir o género. A razão para não ler Saramago é tratar-se de um mau escritor.

19 pensamentos sobre “Será burrice? Será má-fé? Ou será simplesmente para convencer os leitores a comprar um livro, já que a qualidade literária não se vislumbra?

  1. “A Bíblia é mais ou menos fiel à história e aos factos consoante isso se adequa ou não à catequese sobre o que deveria ser a relação de Deus com o seu povo escolhido (e, depois, no Novo Testamento, com cada um de nós e a Igreja). Algo pacífico, como disse, há muito, para os católicos,”

    (…)

    “A segunda é julgar a religiosidade e os valores de há mais de vinte séculos – que são os que estão estampados nos textos bíblicos – com as lentes do séc. XXI.”

    Mas esse relativismo cultural (no fundo, é disso que se trata) não implica, então, que a Biblia (e, pela mesma lógica, toda a doutrina das várias igrejas e religiões) não serve para nada?

    Em tempos, li algo (provavelmente da autoria de algum protestante ou evangélico) como “aqueles que acreditam só em partes da Biblia não acreditam na Biblia, mas apenas neles próprios”. Se a Biblia é para ser interpretada não-literalmente e de acordo com o tempo, qual é o significado da Biblia? Se devemos deixar de arrancar os olhos aos falsos profetas porque isso foi escrito numa época com valores muito diferentes dos nossos, isso não se poderá aplicará a toda a doutrina da Igreja (grande parte dela feita noutras épocas)?

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  3. Luís

    O Génesis é um livro com um grande sentido metafórico, alegórico. Só quem não «pesca nada» de História, Filosofia ou Antropologia é que não percebe isso.

  4. Maria João Marques

    Miguel, vai-me desculpar, mas a sua pergunta é um tanto tonta. Vamos lá por partes.

    “Se a Biblia é para ser interpretada não-literalmente e de acordo com o tempo, qual é o significado da Biblia?”
    A B. não é para ser interpretada de acordo com os tempos; a B. foi escrita de acordo com o seu tempo e os valores e condicionantes culturais, geográficas, etc. dos redactores que a escreveram. A verdade da B. é a mesma em todos os tempos. Outra coisa é cada tempo ser interpelado pela B. de forma diferente.

    “Se devemos deixar de arrancar os olhos aos falsos profetas porque isso foi escrito numa época com valores muito diferentes dos nossos, isso não se poderá aplicará a toda a doutrina da Igreja (grande parte dela feita noutras épocas)?”
    Que falsos profetas? Os livros da B. dos profetas foram escritos depois da vida desses profetas, pelo que as ‘profecias’ não se trata de adivinhar o futuro, mas sim de proferir a palavra de Deus. Mais uma vez, os livros sobre os profetas não são relatos históricos. Mas Saramago centra-se não nos livros dos profetas, mas no pentateuco.
    A doutrina da I. pode mudar em algumas coisas, consoante os tempos (por exemplo o celibato dos padres). Não mudou nunca, e não pode mudar, no centro da doutrina cristã, que é o que consta no credo.

    “Mas esse relativismo cultural (no fundo, é disso que se trata) não implica, então, que a Biblia (e, pela mesma lógica, toda a doutrina das várias igrejas e religiões) não serve para nada?”
    Que relativismo cultural? A B. não diz que é indiferente querer matar os infieis ou não. No sex. VII a.C. era visto pelos homens como bom matar os infieis, e isso está na B., que de resto mostra bem a evolução em termos de valores que houve, talvez muito pela acção de um Deus moderador dos ímpetos selvagens.

  5. Luís

    Saramago é ateu. No entanto, tem uma estranha obcessão por Deus. Parece uma adolescente que se apaixona por um rapaz mas como não é correspondida vive obcecada destilando ódio. Paradoxal, não é?

  6. Maria João
    Concordo que é preferível ler os cientistas aos romancistas quando se trata de especular sobre Deus.
    E concordo que se trata de uma obsessão paradoxal do escritor: primeiro, se Deus não existe, porque o incomoda tanto? Segundo, numa época em que o laicismo militante avança pela sociedade dentro, a invadir e substituir valores de base cristã, a que propósito bater na mesma tecla?

    A história da humanidade é violenta, por si mesma.
    Teria sido mais interessante, a meu ver, pegar na inquietante perspectiva de Alberoni em “Valores”: somos os descendentes dos sobreviventes.
    “… Nós somos os filhos de quem se mostrou capaz de sobreviver. … Quem se comportou de outra forma não pode falar. Os seus descendentes não chegaram a nascer. … Apenas sobrevivem os filhos de Caim. Disse-o a sabedoria bíblica. Abel está morto. Apenas ficou Caim, e nós somos a sua progenitura. Também na evolução, todos aqules que eram como Abel morreram. Com Abel a vida não se teria desenvolvido. …” (da Bertrand Editora, 1994, pág. 13) Sim, inquietante, no mínimo.

  7. “Que falsos profetas? Os livros da B. dos profetas foram escritos depois da vida desses profetas, pelo que as ‘profecias’ não se trata de adivinhar o futuro, mas sim de proferir a palavra de Deus….”

    Eu estava-me a referir a uma passagem do Deutorónimo em que acho que fala qualquer coisa de cegar os falsos profetas, ou quem dê ouvidos a falsos profetas, ou coisa do género… (não sei se era exactamente sobre “falsos profetas”, mas não afecta o centro do meu argumento – se devemos abandonar algumas coisas que vêm na Biblia, porque não todas?)

    “Que relativismo cultural? A B. não diz que é indiferente querer matar os infieis ou não.”

    Eu não estava a dizer que a Biblia é relativista; estava a dizer é que o argumento “não se pode julgar um texto de há 2.000 anos pelos padrões actuais” é relativista (já agora, “relativismo” não é achar que é indiferente fazer X oy Y; é achar que dever-se fazer X ou Y é algo que varia com as épocas e lugares – ou pelo menos foi o que eu aprendi em Filosofia no 11º ano)

  8. Maria João Marques

    “Eu não estava a dizer que a Biblia é relativista; estava a dizer é que o argumento “não se pode julgar um texto de há 2.000 anos pelos padrões actuais” é relativista ”
    Miguel, Não, é apenas bom-senso e interpretação correcta de um qualquer texto literário, não apenas os religiosos. Dou-lhe um exemplo (muito caro aos meus gostos). Se ler o Pride and Prejudice sem atender que foi um texto escrito em finais do sec. XVIII, inícios do sec. XIX, acha que aquela gente é toda maluca pelos comportamentos que tem e que a Elizabeth Bennet é um reprimida e uma pudica – ou seja, não entende nada do que lê. Se souber que é um livro do seu tempo, e se conhecer o contexto do texto, percebe o que as personagens fazem e que a Elizabeth é uma irreverente.

    E relativismo não é “achar que dever-se fazer X ou Y é algo que varia com as épocas e lugares”. Que x e y variam com as épocas e lugares é história, antropologia, geografia,… Relativismo tem subjacente uma valorização equivalente das várias variações de x e y em cada época e lugar.

    Ana e Luís, também me surpreende sempre a obcessão que certos ateus têm com a religião. São, na realidade, muito religiosos e ferozmente prosélitos. Algo muito estranho. Mas bom, porque sinal de que é algo tão vivo que os incomoda.

    Diogo, bom post, o seu. A propósito da frase “transmitir a ideia de que perante as dificuldades deveremos manter um espírito positivo e encarar o futuro com optimismo não é muito diferente do que nos dirá hoje qualquer psicólogo”, de facto é engraçado ver como Freud, por exemplo, considerava muito saudáveis alguns aspectos do catolicismo (por exemplo a confissão).

  9. José Barros

    Eu não estava a dizer que a Biblia é relativista; estava a dizer é que o argumento “não se pode julgar um texto de há 2.000 anos pelos padrões actuais” é relativista (já agora, “relativismo” não é achar que é indiferente fazer X oy Y; é achar que dever-se fazer X ou Y é algo que varia com as épocas e lugares – ou pelo menos foi o que eu aprendi em Filosofia no 11º ano) – Miguel Madeira

    Se a Bíblia fosse uma teoria científica, então seria necessário procurar contrafactuais e a partir dos mesmos testar a teoria.

    Se a Bíblia fosse uma obra historiográfica, então faria sentido procurar infirmar os factos nela contidos com as provas da época que se pudesse apresentar e que infirmassem o que nela se diz.

    Sendo a Bíblia um texto religioso para os crentes e uma obra literária para os não crentes, então não se vê qualquer sentido ou razão para utilizar os métodos científicos que se destinam a testar a correcção de teorias científicas ou de narrativas históricas. É o que se chama “to miss the point”. As “verdades” que se encontram na Bíblia ou em quaisquer outros textos religiosos ou literários são, por definição, irrefutáveis no sentido técnico do termo.

    O que não as torna menos “verdadeiras”, tão só de uma diferente espécie de verdade equiparável às lições que cada um tira das suas vidas, por exemplo, e em relação às quais ninguém, em bom juízo, procura demonstrar cientificamente a sua falsidade ou veracidade.

    .

  10. Daniel Azevedo

    “os católicos há muito que têm como pacífico que a Bíblia é ‘apenas’ um livro teológico”

    Deve ser só na sua paróquia.

    Então pela sua teoria, a Terra não é plana nem o Homem foi criado cerca de 6000 antes de Cristo, nem o diluvio existiu, mas um rabino chamado Jesus que viveu na Judeia no reinado de Tibério Augusto, curava leprosos e cegos,andava sobre a água e depois de morrer crucificado rescuscitou e subiu para o céu.
    A segunda parte é verdadeira e tem que ser levada à letra (por definição de católico), a primeira são “metaforas” e têm que ser interpretadas consoante a “catequese”?

  11. Maria João Marques

    Daniel, mas porque não se informa antes de escrever? É que, no seu comentário, não acerta uma. E, depois, não comente coisas que eu tb não escrevi. Todos os livros da B., incluino os evangelhos, são livros catequéticos e nehum – e, isto sim, por definição da I. – pode ser lido literalmente. Se se der ao trabalho de ler os evangelhos vê diferenças entre eles; não são, nem pretendem ser, uma biografia de Jesus. Muitas partes dos evangelhos são redaccionais, i.e., são a forma do evangelista mostrar alguns aspectos da natureza de Jesus. Por outro lado, há que antender aos géneros e subgéneros literários usados (midráshico, apocalíptico,…), que variam dentro do mesmo evangelho, para entender o que lá está. No caso de andar sobre as águas, não faço ideia se andou de facto. Quanto às curas, provavelmente terão acontecido, já que Jesus era, no seu tempo, uma celebridade e a alguma coisa se devia dever esta notoriedade. Quanto à morte e ressurreição, se percebesse alguma coisa da redacção dos vários evnagelhos, conhecida a partir dos vários métodos de exegese disponíveis (e usados tb noutros textos antigos não-religiosos), saberia que esta parte dos evengelhos é a tradição mais antiga destes relatos, amplamente difundida oralmente e através de textos de S. Paulo e da escola de S. Paulo (que são anteriores aos evangelhos), e que é o fulcro de cada evangelho; apesar de ser o ‘desenlace’ da história, nos evangelhos cada versículo tem de ser lido com esta chave.
    Por isso sim, há partes na B. que são factuais e outras não. Tanto umas como outras são uma catequese.

  12. viajante93

    Há um pormenor que tem escapado aos comentadores e que se relaciona com o facto de Saramago também ter afirmado que o corão é uma mentira.

    Não me parece que o enfoque na Bíblia, pela CS, seja acidental e que se esteja a procurar “esconder” o que ele disse do corão.

    Gostava de saber qual a opinião dos muçulmanos acerca das afirmações de Saramago.

  13. Daniel Azevedo

    “Daniel, mas porque não se informa antes de escrever?”
    Escrevi alguma mentira? É falso algum dos argumentos que usei? Creio que não!

    Então a crença na ressureição de cristo não é um dos pilares da fé católica? Está a dizer-me que até isso é metafórico?

    Para mim os envangelhos são como todos os textos: passíveis de diferentes interpretações. Quando na biblia aparece uma frase do género “Quem não acreditar perecerá.” isto pode ser interpretado de maneiras diversas e muito sangue correu na história por causa desta interpretação.

    A Maria João está a defender a tese de que como Biblia não pode ser levada à letra (de todo), os “erros” flagrantes que contem têm que ser ignorados ou não reconhecidos? Mas isso é um argumento circular!

    O que eu pretendia salientar é que se a Biblia (e já agora os textos religiosos em geral) são textos que cada um interpreta a seu gosto, então a Maria João tem tanta razão no seu argumento como o Saramago. Um interpreta negativemente e outro positivamente.

  14. Maria João Marques

    Daniel, não é uma questão de ‘mentira’, mas de escrever coisas erradas, que fez no seu 1º comentário (todas, de resto). E no segundo distorce o que eu disse.

    Quanto a ressurreição, claro que não é metafórico. Onde escrevi isso?! Pelo contrário, escrevi que todas as partes dos evangelhos deviam ser lidas tendo em conta a morte e ressurreição.

    Também não defendi que a B. não é para ser levada à letra, mas sim que não pode ser lida de forma literal, o que é algo diferente: na primeira assume-se que o que está na B. é uma invenção, e na segunda que se tem de conhecer o contexto para perceber o texto. E que erros contém a B.?! Tam algum erro teológico, a B.?! Não disse já que não é um livro histórico, nem de ciências naturais? Também valoriza Os Lusíadas porque contêm erros históricos ou omissões? Ou entende que é uma obra que quer transmitir uma mensagem para além dos factos que relata, a maior parte deles inventados?

    Claro que cada pessoa interpreta a B. como quer, como de resto cada pessoa interpreta tudo como quiser. A diferença é que eu sei do que falo e Saramago, claramente, não sabe. Mais. Como já disse, o que Saramago faz com os textos bíblicos é de uma burrice sem tamanho.

  15. Agnostico

    “A primeira é tomar como factuais os relatos bíblicos. Sim, é verdade: os católicos há muito que têm como pacífico que a Bíblia é ‘apenas’ um livro teológico, cujo objectivo é salvífico e não proporcionar um curso de História ou de ciências naturais (áreas do conhecimento de resto desconhecidas durante a maior parte dos séculos em que os textos bíblicos foram sendo escritos). A Bíblia é mais ou menos fiel à história e aos factos consoante isso se adequa ou não à catequese sobre o que deveria ser a relação de Deus com o seu povo escolhido (e, depois, no Novo Testamento, com cada um de nós e a Igreja). Algo pacífico, como disse, há muito, para os católicos, mas alguns ateus ainda não conseguiram entender isto. Sejamos caridosos e dêmos-lhes todo o tempo que necessitarem.

    A segunda é julgar a religiosidade e os valores de há mais de vinte séculos – que são os que estão estampados nos textos bíblicos – com as lentes do séc. XXI. Como é fastidioso repetir o óbvio, para este ponto recomendo este post, a propósito das incursões nada bem sucedidas de uma jornalista de causas pelo Deuteronómio.”

    ou seja: A biblia não presta!

    é interessante, tentando mostrar que Saramago é um “burro titánico” (o insulto é seu e é bom lembrar que ele não o insultou a si) provou que ele até tinha razão.

  16. XIS

    Depois de tudo o que Maria João Marques escreveu, o agnóstico resume: “ou seja: A biblia não presta!”

    Maria, não se canse que há muita gente que não está a perceber patavina do que escreve.

  17. Maria João Marques

    Caro agnóstico, não chamei burro titânico a Saramago (é diferente quailificar a pessoa do que qualificar o que escreve). As minhas opiniões sobre o senhor ficaram para mim.

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