Os últimos dias do “socratismo”?

Não deixa de ser curioso que, tal como até há uns meses toda a comunicação social se entretinha a falar da “invencibilidade” de Sócrates e da inevitabilidade da sua reeleição, hoje não exista comentador que não diga que Sócrates está “acabado”. A “epidemia” da imagem “socrática” atingiu o seu ponto de viragem: durante anos, foi-se espalhando, e parecia que poucos lhe estavam imunes; até que um dia, a coisa começou a desvanecer, e uma outra “epidemia” substituí-a, desta vez uma “epidemia” vagamente “anti-socrática”, que leva muitos dos que até ontem estavam apaixonados pelo “animal feroz” a, hoje, acharem que estamos a viver os últimos dias do “socratismo”.

De facto, vivem-se dias de “fim de regime”: o desnorte do Governo, recuando em políticas “simbólicas” apenas por terem percebido que não seriam eleitoralmente vantajosas, o aparentemente amolecimento da mão férrea com que Sócrates domesticara o partido, os lamentos de Lino acerca da sua excessiva velhice para estar no Governo, e a despropositada histeria em torno dos famosos “corninhos” de Manuel Pinho, tudo isto mostra como se instalou, até no PS e no Governo, a ideia de que, a 27 de Setembro, Sócrates perderá as eleições.

Nas hostes do PSD e na cabeça daqueles que, pura e simplesmente, odeiam o primeiro-Ministro (um sentimento absolutamente compreensível e quase universalmente partilhado), começou a surgir um sentimento de um certo optimismo e a ideia de que até é possível que Manuela Ferreira Leite e o PSD consigam uma maioria absoluta nas próximas legislativas. Não quero estragar a festa a este pessoal, tão necessitado de alegrias, e eu próprio sou dado a entusiasmos destes. Mas também acho que ainda muita tinta vai correr, e que é precisamente o facto de vivermos num clima de “fim de regime” do PS que tornará as coisas mais difíceis para o PSD.

Os momentos finais da decadência de um regime são aqueles que se tornam mais caóticos. Como dizem os americanos, all bets are off: a anarquia instala-se, e ninguém tem controlo sobre o que se passa. Os dias de “fim de regime” são os mais violentos. É claro que os próximos meses não vão trazer uma revolução, e duvido que os militantes do PS se envolvam em confrontos nas ruas com elementos da oposição. Afinal, Portugal não é Teerão, e a rapaziada dos partidos aprecia tanto a dependência estatal que nem para andarem à pancada têm um mínimo de iniciativa.

Mas, se é verdade que não vai haver sangue na campanha, vai haver muita “sujeira”, como dizem os nossos amigos brasileiros. Vai haver muita mentira, muitas acusações mútuas, muita demagogia. O PS não hesitará em deturpar a mensagem eleitoral do PSD, e Manuela Ferreira Leite e os restantes responsáveis do PSD dificilmente deixarão de responder agressivamente. O desespero dos militantes socialistas, temendo perder os “empregos” que o poder traz consigo, fará com que o Estado, nas mãos do PS, seja usado como instrumento de campanha, o que levará o PSD (e os outros partidos), a radicalizarem (com toda a razão) a sua retórica anti-socialista. E o envolvimento de Sócrates em casos judiciais pouco abonatórios da sua pessoa não vão contribuir muito para pacificar o ambiente.

O espectáculo não vai ser bonito. E isso pode vir a beneficiar o PS, por estranho que possa parecer. Em primeiro lugar, pode excitar os sentimentos tribais daqueles que, embora desiludidos com a governação socrática, não gostam de ver “um dos seus” a ser “atacado” por “eles”. E em segundo lugar, e talvez acima de tudo, porque irá confirmar na cabeça de muitas pessoas a ideia já de si muito negativa que têm da política e dos políticos. Uma campanha especialmente violenta, especialmente degradante (e a polémica em torno dos “corninhos” de Pinho não deixa antever nada de muito diferente), certamente convencerá ainda mais gente a, pura e simplesmente, não votar, deixando a eleição para os “fiéis” (favorecendo assim um PS que, por estar no Estado, o pode usar para fidelizar apoio).

Para além do mais, uma campanha conduzida nesses termos será especialmente favorável a partidos mais confortáveis com o uso da demagogia e do populismo, como o CDS/PP, o BE e o PCP, o que custando alguns votos ao PS, fará também com que o descontentamento com a governação de Sócrates se disperse por estes partidos, em vez de se concentrar no PSD. Este é um aspecto que muita gente parece ter alguma dificuldade em perceber: nestas eleições o PSD não compete apenas com o PS pelo voto útil, nem apenas com o CDS pelo voto “à direita”; compete também com a extrema-esquerda pelo voto de protesto. É por isso que o ódio generalizado ao Primeiro-Ministro, e a retórica “quente” que ele provoca em todos os lados da discussão, poderão acabar por favorecer o próprio Sócrates. E é por isso que eu temo que a alegria provocada pela percepção de que daqui a uns meses estaremos livres dele, embora compreensível (quem não a compreende?), seja talvez um pouco prematura.

4 pensamentos sobre “Os últimos dias do “socratismo”?

  1. José Barros

    Concordo com o post.

    1) Em primeiro lugar, a maioria absoluta é inatingível por qualquer partido. Mesmo a maioria da direita parece improvável, na medida em que dificilmente a extrema-esquerda deixará de ter perto de 20% dos votos.

    2) Quanto à campanha suja do PS, a qual já está no terreno e se acentuará nos próximos tempos, o PSD tem de fazer o que fez relativamente ao caso BPN nas eleições europeias: repudiar a estratégia e ignorar olimpicamente as provocações da campanha eleitoral socialista. Funcionou nas europeias e funcionará nas legislativas, porque, em geral, os eleitores não gostam de campanhas sujas e estas só são premiadas quando provocam um efeito mimético nos adversários.

    3) A vitória do PSD está longe de estar assegurada. Vai depender – e muito – do efeito que terá a apresentação do programa eleitoral na opinião pública e da capacidade de Ferreira Leite convencer os eleitores relativamente a três ou quatro propostas estruturais. Fazê-lo antes do PS – e tudo indica que assim será – dará a Ferreira Leite a vantagem de obrigar Sócrates a copiar as ideias do partido da oposição. Como já aconteceu com o recente discurso do primeiro-ministro relativamente às PME`s. Nesse cenário, não só a mensagem do PS entrará em curto-circuito, como os eleitores preferirão o original à cópia, dando o seu voto a quem teve, desde sempre, um discurso coerente.

  2. I Parte

    Os erros capitais
    de uma legislatura falhada,
    são tantos e fatais,
    ficando a nação esfrangalhada.

    As crenças adolescentes
    e a propaganda encomendada,
    originaram caos efervescentes
    numa política trucidada.

    A exacerbada autoridade
    criou uma zanga colectiva,
    aliada à falta de verdade
    de uma política subjectiva.

    II Parte

    Com a queda angelical
    do regime socialista,
    a mudança será radical
    contra gente miserabilista.

    A violência retórica
    durante esta legislatura,
    é a verdade histórica
    de uma república imatura.

  3. Bruno, no essencial estou de acordo com o post e com o comentário do José. Só acrescentaria uma questão que também me parece essencial: a escolha dos protagonistas, de uma equipa, pelo PSD, também vai ser essencial. A credibilidade está essencialmente nos recursos humanos a partir daqui.

  4. Pingback: O pântano « O Insurgente

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.