individualismo

O colectivismo é uma ideologia construída sobre falácias e inexistências. A sociedade orgânica, entendida como corpo dotado de personalidade e de interesse próprio, não existe. O interesse público não é mais do que o conjunto de interesses privados, impostos coercivamente pela força ilegítima do estado contra outros interesses divergentes. O bem-estar colectivo não pode ser mais do que a satisfação do maior número de interesses individuais. A vontade comum é a vontade de quem governa. O colectivismo é o pecado capital do nosso tempo. A sua forma política chama-se estatismo.

Sob todas essas categorias mitificadas reside a única verdade consistente: o homem, o indivíduo, dotado de interesse individual, a vontade individual. O homem com a sua identidade, os seus valores, os seus direitos inerentes à sua condição humana. Nenhum outro organismo social existe verdadeiramente. A sociedade não é um organismo. Não tem vontade própria. Nem tem interesse próprio, que não sejam aqueles que são comuns aos seres humanos: o direito à vida, a liberdade e a propriedade. Tudo o mais não passa de uma falácia inventada para legitimar a soberania e as decisões de quem governa, invariavelmente contra o interesse individual, ou seja, contra os verdadeiros interesses dos cidadãos que compõem uma sociedade.

A natureza moral do individualismo reside na defesa do homem como um fim em si mesmo, e não como um veículo para a promoção e a defesa, em primeira instância, de fins alheios. Essa sua natureza não pode ser questionada, nem rebatida. O homem possui, como Ayn Rand salientou, uma identidade própria sobre a qual se erguem os valores morais essenciais de uma sociedade livre. O homem tem direito à vida em liberdade, sem coacção, sem ter de sujeitar-se à violência de terceiros, e à propriedade, sem a qual os outros dois valores não são exequíveis. Numa ética liberal, a propriedade é, assim, muito mais do que o direito a dispor de bens tangíveis ou intangíveis. Ela é um “direito à acção” do homem (vd. Ayn Rand, Os Direitos do Homem, The Virtue of Selfisness, 1963), logo, um direito à liberdade.

Ao proclamar o indivíduo como a única categoria sociológica reconhecível, o liberalismo tem necessariamente que dar conteúdo a essa realidade. O “princípio da identidade” formulado por Rand é de extrema utilidade, não apenas porque nos permite identificar o que há de essencial no homem, como nos legitima a reclamar que esse núcleo fundamental de características definidoras seja respeitado pelo poder público. Como a própria Rand muito bem assinalou no estudo já citado, “os direitos do indivíduo são o meio para subordinar a sociedade à lei moral”. A sociedade e, sobretudo, a sociedade política, ou seja, o estado. Por isso, o capitalismo defende (pelo menos, desde Locke) que “o único propósito correcto, moral, de um governo é a protecção dos direitos do homem, e isto significa protegê-lo da violência física, proteger o seu direito à vida, a sua liberdade, a sua propriedade privada e a prossecução da sua felicidade” (Ayn Rand, A Ética Objectivista, idem).

O individualismo assenta no egoísmo como fundamento ético de uma sociedade livre, onde os direitos do homem sejam efectivamente respeitados. O egoísmo significa, aqui, não propriamente o interesse próprio irracional satisfeito sobre e à custa dos interesses e dos direitos alheios, mas a tutela consciente e legítima dos direitos próprios de cada indivíduo. Na tentativa de formular uma moral individualista a partir do egoísmo, os objectivistas propuseram esse conceito mais como um contraponto ao então muito em voga conceito de alturísmo individual e social, do que propriamente como uma idéia que ultrapassasse a defesa natural e espontânea da individualidade e dos direitos que lhe são inerentes. A este respeito, Nathaniel Braden escreveu: “O egoísmo sustenta que o homem é um fim em si mesmo; segundo o altruísmo, é um meio para os fins dos outros. O egoísmo postula que, moralmente, o beneficiário de uma acção deve ser a pessoa que a efectua; o altruísmo afirma que, moralmente, o beneficiário de uma acção deve ser alguém distinto da pessoa que a realiza” (Nathaniel Braden, Não somos todos egoístas?, idem).

Muito haveria para acrescentar sobre o individualismo e o seu pressuposto metodológico do egoísmo. E valeria a pena ponderar se o mundo de Rand é um mundo imaginado, povoado por figuras e arquétipos inexistentes que ela manipula magistralmente sobretudo nas suas duas principais obras de ficção (The Fountainhead e Atlas Shrugged), ou se correspondem efectivamente à realidade que os objectivistas tanto prezavam. A resposta seria, provavelmente, negativa, mas esse assunto terá que aguardar outra oportunidade. Independentemente disso, os valores que Rand defendeu não saem diminuídos por isso e devem compor qualquer abordagem liberal.

12 pensamentos sobre “individualismo

  1. “O bem-estar colectivo não pode ser mais do que a satisfação do maior número de interesses individuais.”

    Não tenho certeza que algum colectivista alguma vez tenha defendido o contrário.

  2. ruialbuquerque

    “Não tenho certeza que algum colectivista alguma vez tenha defendido o contrário.”

    Até posso admitir que sim. Mas não será isso que o legitima.

  3. joão tomás

    ha um paradoxo efectivo no individualismo para o qual cada vez mais pessoas tem vindo a alertar. Num modelo de sociedade sistémico e com recursos limitados a expansão individual de alguns implica um estado de servidão virtual a outros. A liberdade é cerceada.

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  5. Concordo totalmente com a quase totalidade do artigo. Só que o individualismo não pode excluir o interesse público, isso já seria ir longe demais.

  6. Pingback: o projecto de indivíduo « O Insurgente

  7. Alfredo

    «O egoísmo significa, aqui, não propriamente o interesse próprio irracional satisfeito sobre e à custa dos interesses e dos direitos alheios, mas a tutela consciente e legítima dos direitos próprios de cada indivíduo.»

    Isto faz lembrar o 1984, em que se redifinem as palavras para adulterar os raciocínios.
    “Comeste o bolo todo sem esperar pelos outros? És mesmo… err… altruista!”

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