tolerância

Paradoxalmente, ou talvez não, o relativismo constitui argumento frequente contra o liberalismo, por razões contrárias e opostas. Ele é utilizado ou por quem acha que o liberalismo consiste numa apologia do indiferentismo, segundo a qual todos os valores são igualmente válidos desde que livremente escolhidos, ou por quem pensa que ele enuncia certos dogmas com pretensa validade universal, entre eles uma hipotética «liberdade liberal», que desejaria impor como modelo social igualmente universal. Os primeiros críticos localizam-se habitualmente à direita, enquanto os segundos costumam frequentar paragens situadas mais à esquerda. E ambos estão errados, como se verá.

A crítica da ausência total de valores liberais, para além da defesa da soberania absoluta do livre-arbítrio, compreende-se pela confusão que subsiste nas sociedades de tradição francófona, entre elas a nossa (que, felizmente, já o foi mais do que é hoje), sobre o que é a tradição do liberalismo clássico e o que foi o liberalismo de raiz cartesiana e de expressão jacobina. Em ambos os casos, a simples reclamação da liberdade não chega. É bem mais importante enunciar os meios para a atingir e tentar compreender como a utilizará o governo de uma comunidade, do que descrever um elenco oco de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Por outras palavras, de que serve a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que a Convenção aprovou em 1793, se a ela sucede Robespierre, ou o Directório, ou Napoleão Bonaparte? É necessário, por conseguinte, delimitar estes dois modelos de liberalismo. Tanto mais importante quanto o facto de vivermos num país historicamente marcado pelo dito liberalismo francês, segundo o qual a liberdade só seria atingida quando, como dizia Diderot, «o último déspota [o rei] for estrangulado nas entranhas do último padre». Decididamente, quem conheça um pouco da tradição liberal clássica sabe como ela se encontra distante deste absurdo.

Preocupa-me mais a crítica movida ao liberalismo pela esquerda. Nomeadamente, de que o seu dogmatismo violará, no fim de contas, a própria liberdade, pelo menos a liberdade filosófica para a qual a «verdade absoluta» não existe. Esta crítica tem sido remetida por alguns filósofos contemporâneos, que a si mesmos se consideram liberais, entre eles, como muito bem advertiu o João Galamba na semana passada, se distingue Richard Rorty.

No essencial, Rorty considera que o vocabulário político do liberalismo está datado no racionalismo e no iluminismo. Ele girará em torno de conceitos historicamente limitados e entrados em desuso, como «verdade, racionalidade e obrigação moral», tendo-se, por isso, tornado num verdadeiro «impedimento para a preservação e o progresso das sociedades democráticas» (cfr. R.R., Contingência, Ironia e Solidariedade, Cap. III). Deste modo, o liberalismo não poderá nunca fundamentar-se (palavra de que Rorty não gosta e que, aliás, propõe que o liberalismo abandone) numa suposta superioridade moral dos seus valores face aos valores que lhe são ideologicamente adversos, porque este «muro argumentativo liberal» mais não é do que um vocabulário descritivo sem adesão à realidade. Rorty entende que a natureza do liberalismo consiste no puro abandono de qualquer «verdade liberal», em benefício de uma absoluta liberdade de expressão das contradições humanas. «Uma verdadeira sociedade liberal», escreve, «é uma sociedade que se contenta em chamar «verdadeiro» ao resultado de tais encontros, seja ele qual for». Trata-se, por conseguinte, de uma liberdade de procedimentos e não de uma liberdade de resultados, embora, um pouco mais adiante na obra citada, Rorty seja mais módico e afirme que, no fim de contas, «uma sociedade liberal é uma sociedade cujos ideais podem ser realizados pela persuasão e não pela força, pela reforma e não pela revolução, pelos encontros livres e abertos de práticas actuais, linguísticas e outras, sugestões de novas práticas». Nada mais próximo dos «ideais» (cuja existência Rorty acaba, afinal, por aceitar) do liberalismo clássico.

A posição de Rorty é refutável por si mesma, se atendermos que o «ideal» de uma sociedade liberal não poderá ser nunca a destruição da própria liberdade, ainda que ela eventualmente resultasse dos «tais encontros» que refere (o que sucedeu frequentemente ao longo da história). Isso é rigorosamente exacto porque, enquanto filosofia política, o liberalismo não pode, de resto, como todas as outras, dispensar um conjunto de valores que considere os mais adequados à felicidade dos homens, e por cuja divulgação e afirmação se baterá. Isso não implica que esse conjunto de princípios, valores e até de regras procedimentais se converta num programa de actuação política, menos ainda partidária, nem tão pouco em dogmas de validade universal e absoluta, que se pretendam impor como fundamentos de construção social. O liberalismo clássico é, de resto, avesso a construtivismos e não preferiria nunca sobrepor os seus valores à realidade social existente. É evolucionista e tradicionalista, pelo que acredita que uma comunidade de homens livres acabará sempre por escolher os valores do mercado e da liberdade. Não os pretende impor, repita-se, mas, e porque, efectivamente acredita na sua superioridade natural, porque os vê como verdadeiros direitos naturais e inatos ao género humano. Logo, a sua inexistência ou deficiência num contexto social não poderá satisfazê-lo. Como Mises escreveu, parece óbvio que as pessoas preferem «a vida à morte, a saúde à doença, a nutrição à inanição, a abundância à pobreza». Existem, na verdade, valores comuns à nossa natureza humana e formas mais adequadas para os alcançar e usufruir. Se, ainda assim, cada um pretender seguir outro caminho, desde que não viole as escolhas de terceiros, está no seu pleno direito. Chama-se a isto tolerância e não relativismo. E ela é, também, um valor liberal.

3 pensamentos sobre “tolerância

  1. Obrigadinho, RAF. Almoçamos quando quiseres. Eu estou por cá nos próximos dias. Com excepção da próxima quinta, estou à tua disposição.

    Abç.,

  2. CN

    A tolerância é um dever para um liberal e um bom argumento em si mesmo contra o excesso de Vontade Geral que tende a não ser nada tolerante.

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