Racionamento

“Durante 5 anos ninguém morreu” . Não, não é o início de um romance desaparecido de Saramago, é uma história real de uma aldeia da Roménia onde estive há uns anos. A economia centralizada de Ceausescu falhava muitas vezes em produzir os bens necessários (enquanto produzia outros em excesso). Era comum o racionamento de bens essenciais como o leite e cereais. Cada pessoa recebia uma senha e tinha direito a um certo montante de cada um dos bens. Quando morria deixava de ter acesso aos bens em causa. Excepto, claro, se ninguém soubesse que tinha morrido. Nesse caso, a família podia receber um pouco mais de leite e cereais do que o planeador central tinha alocado a cada um. Nas aldeias mais isoladas, onde era mais fácil de esconder estas situações, passavam anos sem que morresse uma pessoa.

Em Portugal, felizmente, não temos esse problema com bens alimentares que são abundantemente produzidos e distribuídos por cadeias privadas de supermercados. Em Portugal, como no resto do mundo desenvolvido, a produção e distribuição dos bens alimentares pela economia de mercado fez com que o problema se invertesse: hoje os excessos alimentares matam muito mais do que a fome, que é virtualmente inexistente na maioria dos países desenvolvidos.

Mas nem todos os sectores foram poupados a esse destino. Os serviços de educação continuam a ser geridos centralmente. Sem surpresa, estão também sujeitos a racionamento. E tal como os aldeões da Roménia que não morriam, há habitantes no centro de Lisboa que são encarregados de educação para muitas crianças, muitos dos quais sem qualquer relação familiar. Há notícias de problemas com moradas falsas nas principais escolas de Lisboa e pancadaria à porta das escolas no período de inscrições (as filas de racionamento na Roménia também eram frequentemente palco de confrontos e violência). Numa economia de mercado, a Filipa de Lencastre já teria aumentado a lotação ou teria sido construída uma escola ao lado para absorver todos os residentes que ficam sem lugar. Mas no sector da educação não há mercado: há estado. E enquanto os funcionários públicos do Ministério da Segurança Social, do INE e da CGD continuarem a poder inscrever os filhos nas melhores escolas públicas, enquanto, para todos os efeitos, tiverem direito aos seus colégios privados dentro da rede pública, ninguém mexerá uma palha para alterar o sistema e tirar incentivos à fraude.

Como não consigo culpar os aldeões romenos que não enterravam os seus mortos, também não culparei quem inventa moradas falsas para dar a melhor educação possível aos seus filhos. Eu faria o mesmo.

13 pensamentos sobre “Racionamento

  1. “Numa economia de mercado, a Filipa de Lencastre já teria aumentado a lotação ou teria sido construída uma escola ao lado para absorver todos os residentes que ficam sem lugar. ”

    Ou aumentado o preço,

  2. E se houvesse mais escolas públicas com a qualidade do Filipa? Secalhar ajudava a não querer toda a gente só essa escola, digo eu… A restrição de ensino de qualidade pelo Estado dá nestas coisas, a única diferença é se se descrimina as pessoas por local de residência ou por capacidade de aldrabar moradas. Melhorar o serviço para todos, ’tá quieto.

  3. Carlos Guimarães Pinto

    “Ou aumentado o preço”
    Certo. O que daria incentivos a ter mais escolas como aquela ou reconfigurar as existentes naquele sentido.

  4. Por outro lado, nas variantes de economia de semi-mercado que são frequentemente propostas (como os vouchers), se calhar problemas como este haveriam em ainda maior grau – ou se aceita a possibilidade de seleção pelo preço (e duvido muito que isso seja possível politicamente – “Recebem o dinheiro dos vouchers e ao mesmo tempo cobram propinas altissimas criando à mesma escolas só para ricos e embolsando dos dois lado! É uma vergonha! Só em Portugal!”), ou num sistema em que houvesse total liberdade de escolha das escolas a que se candidatar mas com preços tabelados, haveria ainda mais noticias sobre esquemas mirabolantes para ficar em primeiro na fila.

  5. Por exemplo, pegando neste artigo do Alexandre Homem Cristo (http://observador.pt/opiniao/afinal-a-liberdade-de-escolha-da-escola-existe/):

    “Alegando uma garantia de equidade, o Estado que rejeita criar um sistema que dê aos pais a liberdade de escolher uma escola na rede pública é o mesmo Estado que permite que tantos o façam de forma ilegítima, apesar de eventualmente legal.”

    Em que ele me parece estar a defender a liberdade de os pais escolherem a escola pública em que querem matricular os filhos; mas para isso (e assumindo que as escolas públicas, ainda mais no ensino obrigatório, não vão começar a cobrar propinas) é preciso haver um critério qualquer (seja ele qual for) para decidir quem entra se haver mais candidatos que lugares (p.ex., eu, num post que escrevi há uns anos, propus como critério que os melhores e os piores alunos tivessem prioridade sobre os médios); e, seja qual for o critério, provavelmente haverá sempre quem descubra maneiras de o furar.

    Já agora, uma dúvida que talvez os comentadores com crianças em idade escolar me possam esclarecer – é mesmo proibido inscrever os filhos em escolas que não sejam da área de residência ou trabalho dos encarregados de educação, ou é permitido, mas sujeito a que haja vagas depois dos filhos dos residentes ou trabalhadores serem colocados?

  6. “Já agora, uma dúvida que talvez os comentadores com crianças em idade escolar me possam esclarecer – é mesmo proibido inscrever os filhos em escolas que não sejam da área de residência ou trabalho dos encarregados de educação, ou é permitido, mas sujeito a que haja vagas depois dos filhos dos residentes ou trabalhadores serem colocados?”

    Penso que proibido não é, Miguel. É só uma questão de prioridades na escolha. Mas daqui a um ano já te responderei com total conhecimento de causa.

  7. Carlos Guimarães Pinto

    Miguel, parece-me haver várias alternativas num sistema de semi-mercado. Por exemplo, podia estabelecer tecto máximo para a contribuição dos pais. Podia-se também flexibilizar o tipo de benefício que cada escola dá. uma escola menos procurada, podia oferecer os livros escolares, por exemplo. No Filipa podia cobrar mais 100€ por mês. As escolas poderiam também aumentar o número de alunos por turma. A escola entre ir para Lisboa para uma turma de 35 alunos ou para a Damaia para uma turma de 20 seria mais equilibrada do que a actual.

  8. O Filipa e o Pedro Nunes não tem melhores nem piores professores ou funcionários que a média das outras escolas públicas de Lisboa, nem as suas instalações ou equipamentos são melhores que a média das escolas públicas de Lisboa. Por isso, convinha parar de dizer que os pais querem “inscrever os filhos nas melhores escolas públicas”. O que os pais querem é que metê-los em escolas gratuitas, mas em que não haja pobres, pretos e ciganos; só filhos de doutores e engenheiros, mas sem aquela maçada de ter de pagar propinas e de aturar padres. É, mais uma vez, o “estado social” ao serviço dos espertos e descarados.

  9. O problema das moradas falsas é assim tão difícil de resolver? As famílias não têm uma morada fiscal? Recibos de renda? Contas de água e luz? É difícil confirmar a morada do emprego? O grau de parentesco entre o aluno e quem vive na morada proposta?

  10. O problema das moradas não é dificil de resolver cartão de cidadão (leitura eletronica) e Declaração de IRS para saber em que Encarregado de Educação consta o NIF do educando. Não há é vontade de resolver a questão, o que remete para o paragrafo:
    “E enquanto os funcionários públicos do Ministério da Segurança Social, do INE e da CGD continuarem a poder inscrever os filhos nas melhores escolas públicas, enquanto, para todos os efeitos, tiverem direito aos seus colégios privados dentro da rede pública, ninguém mexerá uma palha para alterar o sistema e tirar incentivos à fraude.”
    Isto parte dentro, e a propria diretora do Filipa de Lencastre tambem tem tido atitudes execraveis, no entanto continua lá.

  11. Um ponto adicional é que as escolas (que são quem teria a possibilidade de ver se as moradas são falsas) não tem grande (ou nenhum) interesse em filtrar as falsas moradas – se calhar muito pelo contrário: pais que se dão ao trabalho de falsificar moradas para os filhos ficarem numa boa escola por regra são pais empenhados e preocupados, e muito provavelmente os seus filhos serão o tipo de alunos que as escolas até gostam de ter.

  12. Miguel Madeira, não duvido que essas escolas queiram esses alunos. Não por terem pais empenhados, mas por terem pais influentes. Vígaros e mentirosos e oligarcas, mas influentes. E essa influência deve traduzir-se em benesses para as escolas dos privilegiados, ou para quem lá manda.
    Porque, os que andam à pancada para colocar os seus filhos onde deviam estar, esses sim, são empenhados.
    Os DDTs que façam como a Sra. Secretária de Estado da Educação, ponham os filhos no ensino privado e paguem. Não façam é falsas escolas públicas, que só o são de nome.

  13. Luís Lavoura

    os funcionários públicos do Ministério da Segurança Social, do INE e da CGD continuarem a poder inscrever os filhos nas melhores escolas públicas

    (1) Os funcionários da CGD não são funcionários públicos.

    (2) Os professores do Instituto Superior Técnico são funcionários públicos, mas não podem inscrever os filhos no Filipa de Lencastre.

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