Os juízes e a Justiça

Ouvi ontem Miguel Sousa Tavares dizer no noticiário da SIC que os juízes dos tribunais de trabalho tinham mentalidade de funcionários públicos e por isso, tantas vezes, decidiam contra o empregador. Embora seja de louvar a forma deslumbrada com que Sousa Tavares se referiu aos juízes, não tocou no ponto essencial. Parte dos problemas da Justiça vão além dos atrasos na decisão dos processos e ficam-se pelas más soluções tantas vezes impostas. Que o nosso sistema judicial peca por insensibilidade não é novidade para ninguém. As razões que conduzem a essa mesma insensibilidade é que são desconhecidas e nunca analisadas.

Em Portugal para se ser juiz é preciso ser-se admitido no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), uma escola de juízes. Os critérios de entrada são elevadíssimos e são muito poucos os que o conseguem. Acrescente-se que o curso é bastante exigente e poucos terão a possibilidade de dizer que os nosso juízes não são bons técnicos. Juridicamente falando, são excelentes. Infelizmente, para se ser juiz a técnica não basta. A profissão de juiz é das mais importantes numa sociedade. Das mais nobres que uma pessoa pode seguir. Trata-se de decidir sobre a vida das pessoas. Se perdem ou não o emprego; se pagam ou não uma dívida; se recebem ou não um crédito; se são presas, ou soltas; se quem destruiu as suas vidas é condenado ou absolvido.

Parte do problema está nesta preparação meramente técnica de quem se espera um conhecimento verdadeiro só conseguido com experiência. As profissões jurídicas encontram-se bastante fragmentadas. Barricaram-se de tal forma cada uma no seu feudo que um advogado muito dificilmente pode ser juiz, ou notário, ou conservador. O resultado é uma incompreensão mútua, latente e continuada entre todos. O diálogo que poderia nascer das experiências compartilhadas, não existe. É uma conversa de surdos que afecta o sistema e, no caso concreto dos juízes, os impede de conhecer os meandros da vida cá fora, antes de se fecharem num gabinete a aplicar as leis. É assim, relativamente ao mercado do trabalho, que é preciso flexibilizar as leis laborais. Mas, antes do tudo o mais, é urgente, flexibilizar o acesso às diversas profissões jurídicas. Não as compartimentar, reduzindo em virtude disso mesmo, os poderes das respectivas associações, sindicatos e ordem profissionais, e permitindo que quem queira ser juiz, possa ter uma formação o mais complementar, madura e abrangente possível. As boas decisões surgirão naturalmente.

7 pensamentos sobre “Os juízes e a Justiça

  1. Mas não será a formação do CEJ vagamente confessional?

    O que Sousa Tavares referiu é, porventura de forma casual, mais ou menos genericamente experimentado e – pasme-se – vagamente acessível em http://www.dgsi.pt

    Enquanto se formarem politólogos socialmente sensíveis que também sabem direito, ao invés de seleccionar juristas com capacidade técnica e sensibilidade social…

    O actual Bastonário pode não ajudar, mas não é a este que cabe seleccionar a bibliografia que os petizes são instados a ler. Há que olhar para dentro, mais do que procurar fora um oportuno culpado.

  2. Maria João Marques

    André, muito bom texto para a generalidade dos juízes. No entanto, para o caso específico dos tribunais do trabalho, o melhor dos juízes ou decide contra a lei ou, muitas vezes, decide contra a Justiça, o bom-senso,… A legislação laboral é um absurdo que leva a que uma relação laboral seja um campo de minas para uma empresa, que vão muito para além da – e são mais graves que a – mais que reconhecida inflexibilidade e dificuldade de despedir. Exemplo: eu faço negócios com outras empresas, inclusivé da UE, em que uma nota de encomenda e as referências de bancos e de outros clientes/fornecedores dessa empresa bastam para concretizar o negócio; contudo, se um funcionário da minha empresa e nós acordamos quaisquer condições diferentes temporárias, ou se são condições definitivas a pedido do trabalhador que vão contra a lei (por exemplo alguém que quer ter só 30 minutos para almoçar para depois sair mais cedo), nunca essa situação pode ficar-se pela confiança mútua na palavra de cada um; lá temos que pedir ao advogado para ver o acordo, tem que ficar tudo escritinho e explicado.

  3. henrique

    E o processo disciplinar? A lei laboral e, sobretudo, a jurisprudência fazem com que qualquer despedimento, ainda que com “justíssima” causa, seja terreno minado para a entidade empregadora – e não me estou a referir a excesso de garantias do trabalhador, que deve ter à sua disposição todas as formas de reagir às arbitrariedades. O que se verifica, na prática, é que os “patos bravos” vão vencendo e as empresas escrupulosas vêem-se na contingência de ter de negociar o que deveria ser inegociável, resignando-se por vezes à tremenda injustiça de manter “maçãs podres” ao seu serviço, com prejuízo para a sua competitividade e expectativas dos restantes trabalhadores.

  4. Filipe Marques

    Meu caro André:
    Apenas me custa ver que aprovas o comentário de um perito em generalidades e, sobretudo, em generalizações.
    Qual é a base para se dizer que um juiz é sempre parcial a favor de qualquer das partes?
    Ou também embarcas, como muitos, na célebre generalização de dizer que os juízes portugueses prendiam muito e que havia excesso de prisão preventiva (falácia que rapidamente caía quando comparados os números que o podiam ser: pois aqui no burgo contam-se como presos preventivos aqueles que aguardam o trânsito em julgado da sentença, enquanto noutros lugares se basta a sentença condenatória em primeira instância)? É que esses são os mesmos que, agora e após as mudanças da lei processual penal, dizem que afinal os juízes portugueses não prendem ninguém…
    Então se não mudaram os juízes, como explicar esta súbita mudança na opinião publicada?
    Talvez se deva encontrar a explicação das “tendências jurisprudenciais” na lei, não te parece?
    Mas, relativamente à lei, a porta a bater para pedir explicações é, certamente, outra…
    Ou será que entendes deverem os juízes (os novos juízes, que advogas) aplicar a lei com um sentido que ela não tem, a lei que deveria existir, mas não existe?

    Felicito-te, no entanto, pelo lançamento de uma excelente questão: o acesso à judicatura.
    Deixo-te, no entanto, uma provocação. Pensarás que alguém com competência e sucesso profissional o deixará em troca daquilo que se oferece a um juiz em início de carreira?
    É que me parece que terias surpresas com as pessoas que viriam para a função e lá iria o teu objectivo por água abaixo…
    Mas nisto, como em quase tudo, cada qual terá a melhor solução.

    Um abraço

  5. Maria João, concordo contigo que a lei laboral precisa de ser alterada, mas o que pretendo dizer neste texto é que isso não chega.

    Filipe, por ter sido uma generalidade de Miguel Sousa Tavares é que disse que ele não bateu no ponto. E o ponto é precisamente, como referes, o acesso à profissão de juiz. E o que digo, vai também contra a formação dos advogados que, como sabes, é a minha profissão.

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