#cpms – uma agenda

Sócrates afirmou hoje que a união civil registada é “uma discriminação ofensiva” pois “quase inútil nos seus efeitos práticos”, contrariamente ao projecto do PS que “repara, de facto, uma injustiça” e reconhece “direitos a cidadãos a quem eram negados”. Tendo em conta que a união civil registada confere a mesma protecção jurídica que o casamento entre pessoas do mesmo sexo (cpms) proposto pelo PS, Sócrates deve certamente estar a falar de outro tipo de ”direitos” quando se refere à discriminação que a união civil instaura. Sócrates e a esquerda em geral.

O tipo de críticas tecidas à proposta do PSD é apenas uma confirmação da intenção que guiou o debate sobre o cpms na comunicação social e na blogosfera. O que suporta as reivindicações dos que defenderam o alargamento da figura de casamento às pessoas do mesmo sexo não é, como foi publicitado, meramente a igualdade de apoio jurídico, o acesso a direitos que reconheçam uma plena comunhão de vida entre duas pessoas do mesmo sexo, em suma, a protecção do Estado (caso fosse esse o objectivo, não haveria razão para apontar o carácter discriminatório da união civil registada dado que esta nova figura jurídica resolve esses problemas). A luta não era por um estatuto jurídico, mas sim por um estatuto moral. Aceder ao simbolismo do casamento (ainda que, contra-senso, não à totalidade das suas implicações no que toca ao direito de filiação por adopção previsto na Constituição  – instaurando, aí sim, uma discriminação jurídica), é exigir, pela força da lei, que aquilo que é da esfera da moral se reduza à esfera do legal.

Esta diluição da sociedade no Estado explica também a aversão à ideia de que a questão pudesse ser referenciada: na lógica progressista a moral resume-se a um assunto sobre o qual cabe ao legislador decidir, não representando a sociedade civil mais do que um grande aluno que é preciso educar (e cujas convicções morais são desprezadas).

O problema é que, contrariamente ao que os defensores da lógica estadista pregam, o casamento enquanto instituição social não é meramente a possibilidade de união entre duas pessoas, mas sim uma união que goza de reconhecimento social, pelo simbolismo que acarreta, como fonte estruturante da unidade familiar que compõe as comunidades e, consequentemente, a sociedade. Em certo sentido, o casamento não é apenas um contrato entre duas pessoas mas sim entre um casal e a comunidade, ou a família alargada, numa lógica de protecção recíproca que serve a segurança da unidade familiar, sustentáculo da sociedade. No caso do casamento civil, o Estado apenas serve o propósito de assegurar que o contrato seja de facto cumprido. Assim sendo, legislar no sentido do Estado se imiscuir nas estruturas mais básicas que fundamentam essa instituição (erradicando a noção de família que se segue da possibilidade de filiação/adopção) é desvirtuar conceptual e moralmente a noção de casamento, transformando-a em algo que nunca foi: uma união solipsista.

O discurso de Sócrates na AR, que diz compreender e respeitar “os sentimentos de todos aqueles que não acompanham esta mudança. Mas quero assegurar aos que assim pensam que esta nova lei em nada prejudica os seus direitos, nem as suas crenças”, é mais um dos seus habituais exercícios de retórica falsamente sentimentalistas e essencialmente condescendente. Não é de todo verdade que as crenças dos portugueses ficam salvaguardadas pelo enfraquecimento da base conceptual que sustinha a ideia de casamento como associada à de família; e pode apenas interpretar-se como hipócrita o “respeito” que Sócrates nutre pela sociedade portuguesa, cujos “sentimentos” teriam ficado perfeitamente salvaguardados pela opção na criação de uma figura jurídica que solucionasse os problemas de direito e preservasse as crenças de moral.

4 pensamentos sobre “#cpms – uma agenda

  1. “Assim sendo, legislar no sentido do Estado se imiscuir nas estruturas mais básicas que fundamentam essa instituição (erradicando a noção de família que se segue da possibilidade de filiação/adopção) é desvirtuar conceptual e moralmente a noção de casamento, transformando-a em algo que nunca foi: uma união solipsista.”

    Foram essas tais “estruturas mais básicas” que imiscuíram o Estado nelas próprias – a partir do momento em que optaram por registar o seu casamento no registo civil (ou por o realizar numa instituição – como a Igreja Católica – que optou por registar automaticamente perante o Estado os casamentos nela realizados), decidiram que a diferença entre “viver respeitavelmente” e “viver em pecado” era a benção do Estado.

    Se não querem que o Estado se meta no seu casamento, que o fizessem na sociedade recreativa do bairro, ou perante algum padre dissidente anti-Concordata, ou coisa assim.

  2. CN

    Mas o casamento religioso sem o casamento civil na altura e até há pouco introduziria problemas. Hoje em dia menos.

  3. elisabetejoaquim

    Acho que não devemos confundir a opção de realizar casamento na Igreja e o facto de a Igreja ter registado a cerimónia no Estado (nem, por arrasto, dizer que a responsabilidade da fragilização das comunidades é das famílias, como se o fenómeno tivesse decorrido de uma vontade expressa por parte das mesmas). O ponto é que, partindo da evidência de que a imiscuidade do Estado numa instituição social já aconteceu (o que já em si é um atentado ao espírito da instituição), o Estado não tem legitimdade para alterar os fundamentos da instituição. Nem tão pouco se entende que o Estado tenha sequer essa pretensão já que existem no poder do legislador ferramentas suficientes para criar novos tipos de protecção para novos contratos (sendo que neste caso o governo assume que estamos perante um novo tipo de contrato, se assim não fosse não colocaria a reserva da adopção). Colocando a questão de outra maneira, não vejo nenhuma explicação convincente para o Estado usar uma figura jurídica já existente para albergar outra que assume ser de índole diferente (adopção está fora).

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