CGD: a constitucionalidade dos sms de Centeno

Muitos deputados “geringonços” (PS/BE/PCP) andam a dizer que o acesso aos sms entre o ministro das Finanças Mário Centeno e o ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos (CGD) António Domingues violam a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o Artigo 34º:

Artigo 34.º Inviolabilidade do domicílio e da correspondência
1. O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis.

Voltem a ler esta parte do referido Artigo: «comunicação privada»! Ora, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à CGD não quer saber das mensagens em que Centeno elogiava o estilo cromático das gravatas de Domingues.

A investigação da CPI centra-se nas mensagens referentes a assuntos de Estado e, como tal, não podem ser consideradas comunicações privadas. O acesso às negociações sobre a não obrigatoriedade de apresentação, ao Tribunal Constitucional, de declaração de rendimentos/património dos administradores são necessárias para o escrutínio do Parlamento às acções do Governo. Sabem que, supostamente, existe separação de poderes entre os órgãos legislativo e executivo, certo? Especialmente, quando Centeno primeiro diz à CPI que aquela isenção não era o objectivo de alterar o Estatuto de Gestor Público e, depois de valente “bofetada” do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, afirma que tudo se tratou de «erro de percepção mútuo».

Aliás, convém ler o preâmbulo do decreto-lei nº 39/2016, de 28 de Julho (dias antes das férias parlamentares) ,que alterou o Estatuto de Gestor Público (meus destaques):

Impõe-se um ajustamento do estatuto dos titulares dos órgãos de administração que seja apto para alcançar o objetivo de maior competitividade das instituições de crédito públicas, sem perda de efetividade do controlo exercido sobre os respetivos administradores, preocupação que se encontra acautelada pela regulação hoje aplicável a qualquer instituição de crédito.

Da mesma forma, salienta-se que a designação dos membros dos órgãos de administração das instituições de crédito significativas com natureza pública continua a ser sujeita a um exigente escrutínio, estando obrigada ao cumprimento de rigorosos requisitos de adequação e idoneidade daqueles titulares, por forma a assegurar a solidez da governação da instituição. A este respeito, assumem especial relevância, para além do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, as regras respeitantes à avaliação e análise permanente da idoneidade dos membros dos órgãos de administração das instituições de crédito como «entidades supervisionadas significativas», nos termos do Regulamento (UE) n.º 468/2014, do Banco Central Europeu, de 16 de abril de 2014, que estabelece o quadro de cooperação, no âmbito do Mecanismo Único de Supervisão, entre o Banco Central Europeu e as autoridades nacionais competentes e com as autoridades nacionais designadas (Regulamento-Quadro do MUS).

«Continua a ser sujeita a um exigente escrutínio». Das instituições nomeadas não está lá o Tribunal Constitucional. Erro de percepção mútuo? Pois claro…

Justiça Constitucional e Poder Judicial – 3ª conferência do Observador

Tenho seguido o debate que o Observador tem vindo a promover a propósito da Constituição. Ontem foi a terceira e última conferência que decorreu no Porto, no polo de Direito da Universidade Católica, sobre “Justiça Constitucional e Poder Judicial”. Como relata hoje o próprio jornal a discussão centrou-se no papel mais ou menos interventivo do presidente da República na escolha dos juízes do Tribunal Constitucional (TC) e na politização do dito cujo, duas questões relacionadas, sobretudo, com a legitimidade dos juízes do TC, considerando o impacto que as suas decisões tiveram nas lides governativas e, por consequência, na vida das pessoas.

A iniciativa é, sem dúvida, de louvar, mas o teor da discussão, sobretudo desta terceira conferência, passou por cima de uma tema importante quando a conversa é o poder judicial e a justiça constitucional, nomeadamente a relação desse poder com outros poderes. Passo a explicar: contava ver ali discutida a relação entre o poder judicial, tal como ele vem configurado para o TC (apesar de não ser claro que o TC seja um verdadeiro tribunal, sobretudo se considerarmos o modo de designação dos juízes por um lado, e o próprio texto constitucional por outro, que, conjugando o artigo 209.º, n.º 1, com o título autónomo que dedica ao TC, parece sugerir que não é um tribunal no sentido mais rigoroso do termo), e o poder legislativo.

Este é um tema próximo de uma discussão teórica mais ampla que tem que ver com o ativismo judicial da justiça constitucional e os seus efeitos, de conformação e limitação, do exercício do poder legislativo, eleito democraticamente e por isso representativo de uma maioria que deve ser respeitada por refletir a vontade do povo. Este ativismo, associado a uma dogmática de interpretação da Constituição que pode redundar num critério meramente subjetivo, e por isso arbitrário, muitas vezes conjugado com o recurso a princípios, por natureza indeterminados e abstratos e facilmente moldáveis, na fundamentação das decisões, permite que um juiz “iluminado”, com legitimidade democrática indireta, interferindo no procedimento legislativo, declare a inconstitucionalidade de um diploma proveniente dos representantes do povo. E as perguntas são várias: haverá aqui uma transferência do mandato do legislador para o juiz que fere, segundo alguns – nomeadamente o americano Jeremy Waldron – a democracia representativa e maioritária? Haverá o perigo do TC usurpar aquelas que são as funções e valorações, atribuídas pela própria Constituição ao legislador? E quais são essas valorações, de natureza política (e, por isso distinta das jurídicas?) que não cabem no âmbito de controlo do TC? E se houver um uso disfuncional das competências de fiscalização do TC, como é responsabilizado?

Esta é uma discussão que dá pano para mangas e convoca outros temas: (i) o que se entende, por exemplo, por separação de poderes e até que ponto a interferência do TC, ao declarar a inconstitucionalidade, nomeadamente em sede de fiscalização preventiva, interfere com esse princípio?; (ii) qual é o entendimento de democracia que suporta a existência de um órgão com poderes cassatórios e de controlo do poder legislativo? Uma democracia em sentido formal, representativa, em que o ato eleitoral e o voto, os direitos de participação política, são os “direitos dos direitos”; ou uma democracia em sentido material, como propunha Ronald Dworkin, assente numa ideia de “justiça social” e tutela de direitos fundamentais – trunfos contra a maioria – a cargo de um TC? Talvez este segundo ponto tenha sido discutido na primeira conferência que não tive oportunidade, infelizmente, de seguir.

Sei que os organizadores da conferência (nomeadamente, os autores deste livro que, diga-se de passagem, é extremamente recomendável, e o próprio Gonçalo Almeida Ribeiro que já escreveu sobre isto, aqui e aqui) defendem uma opinião muito concreta sobre este assunto, mas teria sido útil ouvir, pessoas que, além de brilhantes, pertencem a uma geração mais apegada à atual Constituição, como Luísa Neto, a Filipa Calvão ou o Jorge Pereira da Silva a falar sobre o problema. Mesmo assim, os meus parabéns e obrigada.

P.S.: este é um assunto muito discutido no Brasil, sobretudo porque um dos grandes defensores do dito cujo ativismo judicial, Luís Roberto Barroso, é juiz do Supremo Tribunal Federal. O Rodrigo Constantino escreveu recentemente sobre o tema, aqui.

Isto não podia ser inventado

juiz
Como bom servo do Estado, não serve, serve-se.

O Tribunal Constitucional foi auditado pelo Tribunal de Contas, tendo-se apurado um conjunto vasto de ilegalidades. Em causa estão complementos de salário a mais, uso abusivo (uso pessoal) das viaturas do Estado, avaliação dos funcionários por fazer, etc. Laconicamente, o Tribunal Constitucional respondeu que não se tratam de ilegalidades, mas antes de uma «outra interpretação das leis em vigor». Derrida tomou o Palácio Ratton de assalto.

Isto não poderia ser inventado.

 

Recusado o pedido de aclaração

chupemprivados

O Tribunal Constitucional recusa-se a clarear, aclarar, clarificar, desofuscar, desnublar e desobscurecer o último acordão. Decisão sábia e hirta, feito a que o Tribunal Constitucional já nos habituara, aliás. A linguagem do último acordão é simples, directa, focada e esclarecedora, pelo que não necessita de qualquer esclarecimento adicional. Vejamos, por exemplo, este parágrafo que consta de um último aresto de 2013:

“Nenhum critério densificador do significado gradativo de tal diminuição quantitativa de dotação e da sua relação causal com o início do procedimento de requalificação no concreto e específico órgão ou serviço resulta da previsão legal, o que abre caminho evidente à imotivação”

Clarificar isto, para quê?

O rei vai nu

A constituição Portuguesa, com toda a sua extensão e complexidade dá um poder discricionário muito amplo aos vários orgãos de poder soberano.

De uma forma simplista podemos dizer que a Constituição não limita os poderes dos governantes, orienta-os. Ironicamente o limite aos poderes discricionários dos poderes legislativo e executivo é completamente limitado pelos poderes discricionários do tribunal constitucional. A segunda ironia é que nem governantes nem os juízes do tribunal constitucional são eleitos directamente. A qualidade de governantes e de juízes do tribunal constitucional depende da qualidade das escolhas dos partidos mais votados, esses sim, em eleições directas.

No fim da tragi-comédia que tem sido a sequência de Orçamentos Gerais do estado e chumbos do Tribunal constitucional podia o primeiro ministro chamar a atenção para estes pontos, e de outros, que explicam a desconexão entre eleitores e a política e partidos em Portugal. Em vez desta chamada de atenção, que não deveria deixar de levar para a necessidade de uma revisão profunda na constituição, colocou o ónus na qualidade dos juízes. É esta intransigente defesa no sistema que nos leva à ruína. O problema de fundo não são as pessoas. É o sistema que não permite que sejam colocadas em lugares de poder melhores pessoas. É um sistema que dá poderes com poucos limites a algumas pessoas.

Infelizmente não podemos contar com os partidos do “arco da governação” tenham uma contribuição para a reforma do sistema político. Defenderão o sistema porque dependem dele. Como aconteceu desta vez, colocarão em causa as pessoas, mas não o sistema. À esquerda querem outro sistema político, menos democrático, menos liberal. Resta-nos a nós, não representados nos partidos existentes dizer e voltar a dizer: Este Estado não nos serve. Esta Constituição nem aos nossos avós servia. Os Portugueses estão fartos. O rei vai nú.

 

Pela Mesma Lógica

Se aplicar cortes aos salários dos funcionários públicos e ao valor das pensões é inconstitucional porque viola o princípio da igualdade, pela mesma lógica, qualquer medida (por exemplo esta) que aumente os salários dos funcionários públicos ou das pensões também o é porque viola o mesmo princípio.