
Num plot que mais parece saído de um filme de David Lynch, o cineasta António-Pedro Vasconcelos organizou uma conferência na Fundação Calouste Gulbenkian intitulada “Quem ganha com as privatizações?”. Para acalentar o serôdio, o cineasta convidou quatro pessoas, para além do próprio, que nada percebem do assunto, onde se incluem Raquel Varela, Mariana Mortágua ou Paulo Morais, contando ainda com aparições inesperadas de outros grandes especialistas, como Garcia Pereira.
As duas horas estão recheadas de profuso e criativo disparate. De Paulo Morais, o costume. Acusações de conflito de interesse ou de corrupção disparadas em amplo espectro, como um míssil para matar uma mosca — matando tudo, eventualmente também acertará num alvo. De Raquel Varela nem vale a pena o esforço. De Mariana Mortágua é que estava à espera de mais. O seu trabalho na CPI que investigou o caso BES foi exemplar, demonstrando trabalho, afinco, rigor e responsabilidade, características que, por si só, a deveriam manter afastada do Parlamento. Elogiei-a e reitero o meu elogio pelo seu trabalho na CPI.
O debate começa com a típica falácia económica, eternizada por Almeida Garrett — que teve a habilidade de escrever «Viagens na minha terra», livro que nem o próprio deve ter conseguido ler —, e que consiste em ver a economia como um jogo de soma-zero. «Se alguém ganha nas privatizações, alguém tem de perder». Pois, mas a economia não é um jogo de soma-zero. Cada transacção é, ex-ante, win-win para ambas as partes, e o excedente económico aumenta para os dois. Caso contrário a transacção não ocorreria. Mas adiante.
Infelizmente, Mariana Mortágua não soube utilizar esse rigor e trabalho que lhe elogiei aqui. Entre muitas imprecisões, falsidades e mesmo ignomínias, destaco estas:
- «Não há um único investidor português nos CTT». Bom, os CTT têm a maior parte do seu capital disperso em bolsa (free float), pelo que é algo provável que haja portugueses com acções dos CTT. Conheço uns quantos. Vou-lhes perguntar se são mesmo portugueses.
- «Só a EDP vende electricidade em Portugal». Não sei se a Mariana tem um painel solar em casa para cozinhar um tofu com os seus amigos do Bloco, mas caso tenha, então também vende electricidade em Portugal. É uma micro-produtora paga a peso de ouro, fruto dos subsídios às renováveis. Mas para além de si existem muitas outras empresas produtoras e comercializadoras de energia, como é o caso da Iberdrola, da Endesa, da Galp Energia, etc.
- «Quem é o dono da EDP? Não é nenhum português». Voltamos ao argumento dos CTT. Neste momento não sou, mas pertencendo uma empresa aos seus accionistas, então posso-lhe confiar, em jeito de confidência, que já fui. Já fui portador de acções da EDP, embora não chegassem para comprar um portátil. Seja como for, e tanto quanto sei, sou português, pelo que reuno as duas condições.
- «Nenhum privado com o mínimo de racionalidade económica compra prejuízo». Esta é a minha preferida. Há gente que devia sair do gabinete e ir ver como é a economia real. E depois há gente que devia sair da economia real e ler um pouco. Mariana, uma parte significativa de empresas de private equity fazem precisamente isso — compram empresas em processos de falência e tentam recuperá-las. Algumas dão, outras não. Nos últimos anos e só nos EUA, cerca 30 milhares de milhões de USD foram investidos em quase 2 mil empresas que tinham declarado bancarrota, e que empregam mais de 250 mil pessoas.
Por fim, resta-me lamentar que, ao contrário da TAP, o pensamento destes senhores, que apresenta a consistência de um soufflé, não se reserve aos próprios, permanecendo assim privado. Mais um forte argumento a favor das privatizações, em particular aquelas que minorem a exposição pública da asneira.