
O exercício de comentar trabalho alheio é-me caro, embora não desprazeroso. Ninguém excepto o próprio está ciente de tudo o que o possa ter condicionado e do que, entre acções, intenções e manipulação política, de facto foi resultado da sua vontade. Mas dado que o cargo era público, penso ser não apenas apropriado como consentâneo com o dever de cidadania a injusta tarefa de julgar.
De uma assentada: só ficaram desiludidos com o trabalho de Vítor Gaspar aqueles que reviam nele, ou em qualquer outra pessoa que ocupasse o cargo de Ministro das Finanças na República Portuguesa (e esta parte é importante), o salvador da pátria. A minha faceta de iconoclasta tem tendência a rejeitar a ideia de um paladino da nação, capaz de lhe devolver a glória e honra, outrora arrebatada. Até porque, da última vez que isso aconteceu, Hitler foi eleito.
Também não serve isto para desculpar a intempérie. As chuvas, isto é. Vítor Gaspar, dentro daquilo que o mainstream económico é capaz de gerar, fez o óbvio, mas ao contrário. Iniciou uma consolidação fiscal. Qualquer livro introdutório de macroeconomia sugeriria começar por um corte na despesa espúria e improdutiva e no investimento público inconsequente, corte que pode ter efeitos de crowding in do sector privado como se sucedeu na Letónia. Esse mesmo livro provavelmente advertiria contra uma subida de impostos — especialmente IRC e IRS —, pois reduz o rendimento disponível das famílias e, consequentemente, o investimento e ainda a capacidade de desalavancar (o consumo, propulsionado pelo crédito, era inevitável que não retraísse). O livro diria também que um corte abrupto, ou “cold-turkey”, tem geralmente uma recuperação mais rápida, mas com maiores riscos. Ou seja, teoricamente, Vítor Gaspar deveria ter começado por cortar na despesa e somente depois, se ainda necessário, considerar o aumento de impostos. Acredito que fosse esta a sua intenção. O resultado foi o contrário.
Politicamente, Gaspar fez aquilo que a Constituição, o Tribunal Constitucional, os sindicatos, as ordens e todo o poder instalado em Portugal permitiram que fizesse. Como foi bem patente, qualquer reforma profunda em Portugal é tarefa de nível hercúleo. Não sabemos para onde vamos, mas sabemos que não vamos por lado algum. Ora, se economicamente a via era óbvia, politicamente o caminho estava minado logo à partida. Duas provas sustentam esta posição. A primeira é lógica. Se fosse possível conduzir tais reformas, já teriam sido feitas. A Alemanha reformou o seu mercado laboral em 2004. A segunda foi observável. Na manutenção do sustentáculo do corporativismo, sindicatos e associações patronais associaram-se e tomaram posições conjuntas. Ninguém em Portugal quer deixar de viver à custa do Estado.
Assim sendo, as minhas expectativas para este ou para qualquer outro Ministro das Finanças não passam pelo que ele pode fazer, isto é, pela maximização do bem comum que ele pode alcançar, mas pelo menos que ele pode destruir, isto é, pela minimização dos danos causados pela sua ação. E, nessa perspectiva, Gaspar não esteve mal. As finanças públicas de Portugal de hoje são indubitavelmente melhores que as de ontem. Mas como o nosso fado é irredutível, melhores que as de amanhã. Como disse Teixeira dos Santos uma vez em aula, um Ministro das Finanças de Portugal não é mais do que um contabilista de livro de cheques em punho a ser mandatado para assinar cheques de projectos já vinculados. Gaspar conseguiu, ainda que temporariamente, mudar isso.
P.S. – Entretanto, Paulo Portas demite-se porque discorda da escolha para nova Ministra das Finanças, como se isso fosse assim tão importante. É a reiteração daquilo que aqui escrevo. Observando o pantanal que é a política portuguesa, Gaspar não esteve assim tão mal.