Cumprindo a ancestral tradição portuguesa, o milimétrico rigor português surge em hora e momento particular, e em doses nunca inferiores ao prato a transbordar. Ao avião que se despenha, causando vítimas e destroços, urge apurar se o serviço de catering fora servido a tempo e horas, com a classe executiva sempre a preceder a turística, e o suminho da Compal a acompanhar a sande. Que o avião já vinha em rota descendente há muito, que havia escapado despenhar-se já por diversas vezes, detalhes de pérfida gente que quer julgamentos sumários em praça pública.
Em boa verdade, aos executivos nem compete morrer, excepto se crime de sangue em flagrante delito — que lesa-pátria ou corrupção é para a classe turística —, ou pelo menos assim entende João Soares. Já Clara Ferreira Alves, que se vê forçada a interromper o seu ganha-pão, o de decorar citações espúrias ao metro linear, critica o expediente escolhido para a detenção. Certamente que sim, José Sócrates deveria ter sido avisado de antemão para que pudesse remarcar o seu voo por forma a que a detenção não calhasse numa fatídica 6ª Feira à noite. E, justiça o permita, com estágio no Heron Castilho, não fosse o apartamento estar em pantanas e necessitar de uma limpeza prévia à visita dos inspectores, esses pulhas que estão a por a justiça e o regime em causa. Queixa-se também de Felícia Cabrita, recordando que se trata da biógrafa de Passos Coelho. Convém desde logo descredibilizar o mensageiro, e a pena de Felícia é o toque de Midas invertido. Ou seja, até prova em contrário, Sócrates é inocente, já o mesmo não devemos dizer de Felícia Cabrita e, já agora, de Passos Coelho, que convém desde já associar a potenciais violações do segredo de justiça.
E porque a angústia a impele, Clara Ferreira Alves afirma ainda que uma cadeia de televisão havia sido convidada. Dado que os outros três suspeitos tinham sido presos no dia anterior, certamente ocorrerá a alguém que Sócrates também possa ser detido assim que volte de Paris. Não poderá ter ocorrido a estes jornalistas? As fontes, Clara? A ética jornalística que falta a Felícia Cabrita? É uma pena que a ética, jornalística e não só, não venha com as citações coladas a cuspe. Clara Ferreira Alves seria um poço dela.
Com igual preocupação, Pedro Adão e Silva queixa-se da justiça destes últimos quatro anos. Três anos e cinco meses Pedro, que, em bom rigor, este Governo só tomou posse em Junho. E com toda a razão. Todos certamente nos recordamos dos tempos idos mas perfeitos de 2007, em que a justiça não andava, deslizava, com escutas anuladas por interferência dos irmãos-padroeiros de malhete, esquadro e avental. Bons velhos tempos, em que o nome de José Sócrates esquivava-se dos processos com precisão quântica. O tal rigor que nunca foi questionado então pelos que agora se indignam.
Que se indignam e que choram, porque é disso que se trata. Sanity checks à justiça podem e devem ser feitos com muita frequência, pilar fundamental de qualquer Estado de Direito. Que sejam feitas quando um amigo é detido, não confundamos as coisas, não é rigor, não é exigência, não é preocupação com o regime e com as instituições, é a mais primitiva das emoções humanas: o sofrimento gerado pela perda de alguém que nos é querido. O meu voto de pesar.