Quando os 86 deputados pediram a fiscalização preventiva pelo Tribunal Constitucional da Lei n.º 38/2018, fui um dos que apoiei por ter sérias reservas quanto à possibilidade de isso ser usado como forma de doutrinação nas escolas. O problema volta a surgir com o Despacho n.º 7247/2019, que, se definido correctamente, poderia até ser uma boa iniciativa para zelar pelos interesses de crianças vulneráveis, que já estão a passar por sofrimento que chegue.
O Despacho n.º 7247/2019 tem várias ambiguidades e zonas cinzentas, mas talvez a mais crítica seja não fazer a destrinça entre sexo e género, e, como tal, não ficar claro qual é o sujeito aplicável à lei. Esta distinção ontológica é fundamental.
Sexo é, posto de uma forma extremamente simples, uma característica biológica. Homem tem um cromossoma X e um Y, mulher tem dois cromossomas X, e depois existem alguns casos mais complicados, como os transsexuais, que fogem a esta combinação simples. As explicações são complexas, oriundas geralmente da epigenética e das neurociências, e têm que ver com distúrbios nas hormonas sexuais, alterações no gene SRY ou com problemas nos receptores andróginos. Seja qual for a explicação, isto são casos reais de pessoas que nascem com um determinado sexo mas que se identificam com outro. São também casos que devem ser acompanhados com todo o cuidado e respeito. Muitas destas pessoas submetem-se a tratamentos hormonais e a cirurgias de mudança de sexo, que são intervenções extremamente dolorosas. A isto acresce o estigma social de perseguição destas pessoas.
Género é, como definiria um sociólogo construtivista, uma construção social, que resulta da complexidade das interacções entre agentes sociais. Isto é, não há nada de biológico ou imutável no género, apenas aquilo que resulta das interacções sociais e de um lastro histórico que definiu determinados papéis. É relativamente óbvio constatar que os «papéis de género» efectivamente existiram e existem. Nas sociedades mais patriarcais, o homem ia trabalhar, pois era essa a sua função, e a mulher ficava em casa a tratar da família, pois era essa a sua função. Até pode haver características biológicas que tornassem homens mais propensos a sair de casa (afinal, em tempos medievais tinha mesmo de ser a mulher a amamentar). Hoje, apenas uma réstia de pessoas acha que a mulher tem de estar confinada à lide doméstica e familiar, e não há qualquer restrição biológica a que assim seja.
A particularidade de o género ser uma construção social é que faz com que seja extremamente fluído e, no limite, atómico. Isto é, qualquer um pode definir o seu género (se é uma construção social, porque não?). O Facebook, por exemplo, permite escolher de uma lista de 58 géneros, que incluem coisas como Two-Spirit, Neutrois, Gender Variant ou Non-Binary).
Ocorre que a maior parte dos neurocientistas dirá que aquilo que nós somos enquanto homens ou mulheres é definido tanto pela natureza (biologia, sexo) como pela forma como somos criados e a cultura envolvente (sociedade, cultura, género). Determinadas escolhas que achamos que fazemos livremente são mormente condicionadas pela nossa biologia e outras serão condicionadas pelo meio envolvente. Como diria Ortega y Gasset, eu sou eu e as minhas circunstâncias. Existe, até certo ponto, uma sobreposição entre sexo e género, mas existem também questões em que aquilo que é entendido por género em nada resulta da biologia e é apenas uma mera questão social (o entendimento de que a mulher tinha de ficar em casa a tratar dos filhos é uma delas, mas há mais).
Nos últimos anos, têm-se desfeito alguns dos dogmas que eram nada mais do que uma limitação dos «papeis de género». E ainda bem. O problema surge quando alguns tentam negar por completo o peso da biologia na formação do nosso ser e nas subsequentes escolhas que fazemos, justificando-as exclusivamente com os eventuais preconceitos e estereótipos sociais impostos pela sociedade (daí o ardor em mudar a sociedade). Alguns dos «cientistas sociais» que estudam estes temas recusam mesmo que a biologia seja relevante a explicar diferenças entre homens e mulheres, excepto na parte em que ambos têm órgãos reprodutores sexuais diferentes (sobre isto, aconselho a visualização do documentário norueguês Hjernevask, elaborado por um sociológico, sobre a forma como muitos sociológicos e restantes cientistas analisam esta questão — este documentário levou a que a Suécia e a Noruega cortassem financiamento a um instituto de estudos de género).
O problema do despacho é justamente este: não fazer a devida aclaração do que se refere. O uso de termos omissos e ambíguos na redacção, como por exemplo «autodeterminação da identidade de género» ou ainda «transição social de género, conforme a sua identidade autoatribuída» levam a crer que o despacho não se refere apenas a casos de transsexuais — que, reitero, merecem todo o respeito, cuidado e solidariedade —, mas também a transgénero, domínio muito difuso e que requer uma abordagem completamente diferente. Até porque já é hoje possível alterar o género no cartão de cidadão sem que seja necessária qualquer validação médica, apenas por «autodeterminação de identidade de género». Se assim for, este despacho permite que qualquer criança, mesmo que não seja transsexual, peça a alteração do seu género (de forma análoga ao CC) e que esteja coberto, como tal, pelo que está definido.
Por fim, para quem possa achar que a ideologia de género não existe e é uma criação bolsonarista — depois de fascista, neoliberal e populista, este é o termo da moda —, recomendo a leitura deste artigo (disclaimer: é da minha autoria).