Andam por aí a fazer a ronda da internet dois vídeos que ilustram bem o estado actual do “debate” político em Portugal. Um deles, desenterrado por um jovem membro da JP (Juventude Portista), mostra António Costa, em 2009, a indignar-se com a possível formação de governos “pelos jogos partidários”. O outro, logo desencantado pelos industriosos internautas do Partido Socialista, mostra Paulo Portas, em debate com Passos Coelho em 2011, a falar da hipótese de PSD e CDS, mesmo ficando atrás do PS na contagem de votos nas legislativas, formarem governo se tivessem, em conjunto, uma maioria de deputados no parlamento. Como notou o André, enquanto Costa dá argumentos contra o “governo de esquerda” que hoje talvez esteja a congeminar, Portas dá argumentos a favor desse mesmo governo que pretende derrubá-lo.
Estes dois vídeos põem a nu, em primeiro lugar, o indiscutível facto de que a hipocrisia é uma característica que se encontra equitativamente distribuída pelos vários “lados” das guerrinhas políticas deste país: à “esquerda” e à “direita”, o que valia ontem não vale hoje, e o que ontem era vergonhoso é hoje essencial; as únicas constantes são o seu desprezo pela inteligência dos cidadãos, e o nulo crédito das palavras que emitem. Mas não é só a mendacidade de Costa e Portas que fica exposta à violência dos elementos pela divulgação destes dois vídeos: é também a natureza do comportamento dos respectivos fãs e adversários, que vilipendiam no opositor as mesmas malfeitorias que cegamente ignoram nos seus ídolos. Como os adeptos do Benfica ou do Sporting que chamam horrores a Bruno de Carvalho ou Luís Felipe Vieira consoante o lado da Segunda Circular em que gostam de ir assistir à bola, os “jotinhas” do CDS e os “jotinhas” do PS acusam Costa e Portas de uma ridícula falta de vergonha e coerência, como se o 1) o próprio objecto dos seus afectos não padecesse do mesmo mal, e 2) essa denúncia não desnudasse simultaneamente a sua própria hipocrisia ou incapacidade para o exercício do pensamento crítico.
Tornou-se hábito dizer-se que a política portuguesa está “radicalizada”, como se tivesse surgido do nada uma clivagem ideológica violentíssima entre dois lados absolutamente inconciliáveis nas suas ideias. Não é verdade: do CDS ao PS, passando pelo PSD, todos pensam mais ou menos o mesmo, ou seja, nada. A “radicalização” existe, sim, no comportamento tribal que norteia a acção dos chefes políticos, os seus aguadeiros e os respectivos simpatizantes. A “radicalização” não é ideológica, é “clubística”: como os adeptos dos clubes de futebol, os chefes políticos, os seus aguadeiros e os respectivos simpatizantes vêm “neles” a encarnação de todos os males e em “nós” a corporização do bem absoluto, sem que por um segundo sequer lhes ocorra que nuns e noutros se encontram exactamente os mesmos defeitos (entre eles essa incapacidade de os reconhecer em si próprios). Ao contrário da “radicalização” ideológica que as “classes conversadoras” erradamente descortinam na política portuguesa, a cegueira “clubística” que efectivamente a caracteriza não peca por impossibilitar um “consenso” entre as forças políticas, quanto mais não seja porque esse “consenso” traria mais complicações do que as que seria capaz de resolver. O problema da cegueira “clubística” no debate político português está em que impossibilita, isso sim, uma discussão racional dos problemas do país entre diferentes opiniões, divergentes mas passíveis de análise e comparação. E sem essa discussão racional, os eleitores “neutros” – os que não são chefes políticos, seus aguadeiros ou simpatizantes – olham para “eles” – todos, de um lado e de outro – e não podem senão achar que “eles” estão “sempre a dizer mal uns dos outros”, que “eles” são “todos mentirosos”, e acima de tudo, que eles “são todos iguais“. Não é assim de espantar que uma cada vez maior parte do país não confie em nenhum partido, e que nas eleições prefira ficar em casa a dar a sua confiança a qualquer um deles. A “opinião” em peso acha que isto é um problema de falta de espírito cívico dos abstencionistas; eu acho que é um problema dos partidos políticos, que recebem da parte desses abstencionistas o desprezo que cultivam na população em geral. E basta olhar para estes dois vídeos para o perceber.