No JN, saiu a notícia sobre um senhor americano que sobreviveu à Covid-19 que esteve internado cerca de dois meses, foi praticamente dado como morto, mas no fim resistiu e curou-se. A notícia não é a sua sobrevivência, no entanto. A notícia é a conta de 1,1 milhões de dólares que recebeu no final.
Até aqui tudo normal. É de facto um número que supreende e um caso “insólito” – como aparece no título dado pelo próprio jornal. Mas este episódio é na verdade um mero fundo decorativo para o exercício de propaganda da notícia, que só no final do texto admite que o senhor não tem de pagar a conta. Escreve o jornalista:
«(…) o bizarro sistema de saúde dos Estados Unidos da América que, ao contrário da Europa e da maioria do mundo civilizado, não possui um Serviço Nacional de Saúde, como existe há décadas em Portugal, que proteja os seus contribuintes, mas está antes orientado em sistemas de seguros privados que não existem para tratar da saúde como um bem universal e um direito primordial, mas para dar lucros abissais numa lógica puramente capitalista que rende milhões às grandes corporações.»
A quantidade de adjectivos torna evidente a ideologia por trás deste parágrafo. Até os cidadãos se vêem reduzidos ao papel de “contribuintes”. Mas o ponto mais grave é o erro factual de dizer que quase todo o mundo civilizado tem algo como o SNS. De uma penada só deixam de existir todos os sistemas de saúde não-beveridgeanos (genericamente onde os cuidados de saúde são prestados indistintamente por hospitais públicos ou privados com o custo sendo coberto maioritariamente por um seguro, que também pode ser público ou privado). Estes sistemas até são mais comuns que os beverigeanos (onde o estado opera e paga os serviços de saúde, financiados puramente com impostos), como o SNS português e o NHS britânico.
A ideia de “lucros abissais” numa “lógica puramente capitalista” para as “grandes corporações” também só serve para acicatar espíritos. A realidade é que dois terços dos hospitais americanos são instituições sem fins lucrativos e os restantes têm margens de lucro medíocres. O número 1,1 milhões deste caso impressiona, mas provavelmente tem a honestidade de reflectir a realidade que a saúde não é grátis. Há que pagar as máquinas, instalações, fármacos e recursos humanos.
Mas a cereja no topo do bolo vem quando o jornalista lá admite que o senhor não tem de pagar a conta. Está coberto pelo Medicare. Medicare é o seguro público que cobre os gastos de saúde de todos os americanos com mais de 65 anos e que o ignorante jornalista, que nem sequer se deu ao trabalho de pesquisar sobre o assunto, atribui a Barack Obama, rematando que é um sistema que «o atual presidente republicano Donald Trump ainda não conseguiu aniquilar.»
Obama será realmente uma pessoa excepcional se conseguiu criar o Medicare aos 5 anos de idade (o sistema foi criado em 1966).