Realidade Real do BE vs a Realidade Virtual

Na sequência do meu post de ontem “VR (Virtual Reality) vs RR (Real Reality)” não resisto a sublinhar um dos pontos nele abordado e que se perdia no meio do texto.

Realidade Real = O BE aprovou na generalidade um orçamento do Estado que tal como Europa exigia diminui o déficit primário estrutural, ou seja na sua própria terminologia de 2015 aprovou um orçamento de austeridade.
E para compensar os seus eleitores que metem gasolina todos os dias usou da
Realidade virtual = colocando nas redes sociais um cartaz acerca de Jesus saciando assim a sede de escandalizar e distrair os média.

Dois erros numa só semana mostram um Bloco indeciso entre o poder e o contra poder . E já dizem que querem começar a falar do Orçamento de 2017. Será um OGE real ou um virtual?

Disponível para ceder

Há dias, o Público informava os potenciais interessados (presumo que um escasso número de pessoas) de que o dr. Passos Coelho estava disponível para fazer algumas “cedências” ao Governo na negociação do Orçamento de Estado. Não surpreende. Quantas vezes, desde que Passos Coelho chegou à liderança do PSD, é que o partido laranja “ameaçou” o PS de que iria derrubar o Governo? E quantas vezes é que realmente fez alguma coisa nesse sentido, ou obteve alguma cedência da parte do PS para o evitar? Desde que passou a ser “líder” da “oposição”, o dr. Passos Coelho só não tem mostrado disponibilidade para manter a palavra. Cedências, por outro lado, nem sequer é preciso pedir-lhe. Segundo o Público (e a propaganda “passista”), o líder do PSD fá-lo em nome do “interesse do país”. Na realidade, Passos Coelho fá-lo em nome de uma curiosa “estratégia” que pretende ao mesmo tempo mostrar que o PSD é “diferente” (através dos “ultimatos” e “ameaças” de derrube que faz a Sócrates) mas ao mesmo tempo “responsável” e “dialogante” (com as tais “cedências”). Para seu azar, e principalmente, para azar dos portugueses, a única coisa que consegue é manter o Governo no poder, e o país no lamaçal em que (mal) vai sobrevivendo.

Quanto menos dinheiro passar pelo Estado, melhor

Há dias, o dr. Silva Pereira disse que, com a sua proposta de revisão constitucional, o PSD estava a abrir uma “polémica artificial”. Por muito estranho que possa parecer (e por muito que me incomode), parece-me que o dr. Silva Pereira tem razão. Como o João Luís Pinto e a Maria João Marques têm procurado demonstrar, não só esta revisão terá poucas hipóteses de vir a ser posta em prática, como o espírito reformador de Passos Coelho que ela supostamente evidenciaria parece ser ilusório: estas propostas apenas viriam mudar alguma coisa para ficar tudo na mesma (ou pior).

Claro que, com o seu apreço pela berraria e a irrelevância, o PS não deixará, como não tem deixado, de contribuir para alimentar a tal “polémica artificial” que o PSD terá iniciado. Mas, apesar de artificial, a polémica tem os seus méritos: por entre os berros contra o “neoliberalismo” e a “injustiça social”, lá se vai ouvindo uma discussão, que há muito deveria estar a ser feita, acerca de como serviços como o da Saúde devem ser prestados e financiados.

Dos críticos da proposta do PSD que a levam a sério, vendo nela a ameaça do espectro neoliberal, argumenta-se que a “privatização da saúde” obrigaria uma série de pessoas que, até aqui, usufruem de serviços de saúde gratuitos, a passarem a pagar por eles, o que teria apenas a consequência de as empobrecer.

Ora, para muitas dessas pessoas (as que pagam impostos sobre os seus rendimentos), esses serviços não são gratuitos, antes pelo contrário: eles são pagos indirectamente através dos impostos que o Estado cobra e depois distribui de acordo com os seus critérios. Ao obrigar as pessoas a pagarem pelos serviços de saúde que usassem, e desde que introduzisse um corte nos impostos proporcional à diminuição de custos que o novo modelo de financiamento implicaria, o Estado estaria apenas a eliminar um intermediário: em vez do dinheiro que as pessoas atiram para o sistema ser entregue ao Estado (através dos impostos por este cobrados) e depois voltar às mesmas pessoas (no momento em que estes usam serviços como o da Saúde), seriam as pessoas, que usam esses serviços, a colocarem esse dinheiro directamente nos serviços a que recorressem.

Mas, pergunta o caro leitor: se, no modelo actual, o dinheiro que as pessoas entregam nos impostos acaba por, de forma indirectamente, regerssar a essas mesmas pessoas, que diferença fará se elas deixarem de o pagar em impostos e o pagarem como um preço pelos serviços que usam? Se os impostos já funcionam como preços indirectamente cobrados, onde estaria a diferença?

A diferença estaria na eficiência com que esse dinheiro é distribuído. Num modelo de financiamento da saúde que usa os impostos como preço indirectamente cobrado, o dinheiro é distribuído de acordo com os critérios dos políticos e funcionários que administram o sistema, e não de acordo com as necessidades das pessoas que recorrem a esses serviços. Se as pessoas pagarem directamente por esses serviços, esses terão de responder às suas necessidades, regulando a sua oferta de acordo com a procura dos pacientes, em vez dos objectivos traçados pelos políticos e burocratas.

Num modelo em que o dinheiro passa pelo Estado antes de voltar aos contribuintes, os serviços são maus, pois o “cliente” é o Estado que financia o hospital, e não o doente que a ele recorre; aqueles com mais posses, com maiores rendimentos, podem recorrer ao privado, mas como têm de pagar impostos na mesma, o facto de haver menos procura dos hospitais públicos (esses tais “ricos” que “vão ao privado”) não afecta o seu financiamento, o que faz com que eles não sintam a necessidade de adequar a sua “oferta” à procura realmente existente. Assim, nos hospitais públicos, há desperdício de dinheiro em algumas àreas, enquanto outras são obrigadas a realizar cortes significativos. A qualidade do serviço não melhora, mas como a sobrevivência do serviço não depende da qualidade deste, mas dos humores do Ministro da Saúde, também não há incentivo para este melhorar. Esqueça, caro leitor, a “artificialidade” da polémica constitucional de Passos Coelho: olhe para o SNS português, e facilmente perceberá como quanto menos dinheiro passar pelo Estado, e for directamente distribuído por si, melhor será. Para todos.

The Real São Bento

A vida política portuguesa anda estranha. Todos os dias, as figuras mais ou menos destacadas do PS e do PSD oferecem ao país uma versão portuguesa (e apesar de tudo, ligeiramente menos degradante) de um reality-show da MTV: zangam-se em frente às câmeras de televisão, para depois acabarem o dia aos abraços (qualquer pessoa que tenha tido a infelicidade de ver programas como Laguna Beach ou The Hills consegue ver a semelhança).

Quase todos os dias, o dr. Passos Coelho levanta-se do colo de Ângelo Correia e ataca toda e qualquer medida do Governo. De seguida, o “engenheiro” José Sócrates sai do caixão e, no seu melhor Armani, vem queixar-se da “irresponsabilidade do PSD” (no dia em que o Armani tenha sido particularmente bem engomado, ele até se entusiasma e fala “da direita” para juntar o dr. Portas à festa). Inevitavelmente, seguem-se-lhe o dr. Silva Pereira, sempre pronto a carregar a àgua do chefe, e, se as circunstâncias assim o exigirem, o dr. Santos Silva, uma espécie de Brother Mouzone do PS. Para acabar a festa, o PSD chama os seus especialistas em fingir oposição (e ninguém o faz tão bem como Miguel Relvas) para mostrarem a sua indignação e como o país não consegue viver com mais um único dia de Sócrates no poder. Com um cenário destes, seriam de esperar moções de censura diárias, visitas de emergência a Belém (onde impávido e sereno, Cavaco Silva preside às cerimónias fúnebres do país) e pancadaria no Parlamento.

No entanto, nada disso acontece. Pelo contrário, todas as medidas anunciadas pelo Governo, que Passos Coelho e restantes focas amestradas atacam vigorosamente no início da semana, chegam a sexta (ou Sábado, para melhor passarem despercebidas) aprovadas pelos dois partidos, que entretanto se parecem ter escapulido como adolescentes ardendo por um coito furtivo. Tal como normalmente acontece com esses adolescentes, a coisa não acaba bem (embora, em vez da criancinha que fará as alegrias desses adolescentes, o destino mais provável seja o empobrecimento dos portugueses). É claro que Sócrates e Passos Coelho até se podem sair bem com a brincadeira: Sócrates consegue (atacando o PSD) alegrar (no pun intended) o bom povo socialista, e ao mesmo tempo (assegurando o apoio do PSD para as suas medidas) prolongar a morte lenta que tem sido este Governo; Passos Coelho talvez consiga (atacando o PS) convencer alguns de que é “diferente” dos socialistas, e (apoiando o PS) mostrar o quão é “responsável”.

Restam dois problemas: em primeiro lugar, não podem ser os dois bem sucedidos ao mesmo tempo. Inevitavelmente, um deles acabará mal, e a seu tempo (que poderá ser longo, é certo), o outro não escapará a um destino semelhante. Em segundo lugar, acabarão por nos arrastar todos com eles. A violência da retórica com que se agridem, por um lado, e a manifesta hipocrisia com que actuam, por outro, não resulta noutra coisa que não no aumento da repulsa dos eleitores pela política e pelo “regime”. Com o espectáculo que nos andam a oferecer, PS e PSD não se limitam a estragar o seu futuro (por muito que demorem a fazê-lo): ao chafurdarem na lama, arrastam para ela a democracia portuguesa e as condições de vida dos portugueses. Nada que os preocupe.

Uma questão de palavras

Na sua última edição, a The Economist publicou um artigo argumentando que “fairness” é “uma má ideia”. No editorial, pode ler-se que, ao usar o argumento de que os cortes que tem promovido são “duros” mas “justos”, a coligação que governa o Reino Unido comete um grande erro. Segundo a revista, a palavra “fair” é demasiado vaga (“to one lot of people, fairness means establishing the same rules for everybody, playing by them, and letting the best man win and the winner take all. To another, it means making sure that everybody gets equal shares”), devendo ser preterido em prol de palavras que “dizem o que querem dizer”. No blog Tory Diary, Tim Montgomerie critica o argumento da The Economist, perguntando “why should Labour have all the best words?“:

“It’s fair enough for The Economist and the IEA to have their intellectual arguments but politicians need to live in the real world. Defining ourselves against social justice (as some Tory MPs have advised) or fairness is electorally stupid. Conservatives need to dominate the whole political stage and that means breaking Labour’s monopoly in certain policy areas – and also defining ourselves on new ways. Defending capitalism/ conservatism as efficient and empowering only persuades so many. Making the case that capitalism/ conservatism is also fair and socially just seems like common sense to me.”

Montgomerie, parece-me, tem toda a razão. Não é que a Economist esteja errada ao dizer que o termo “fairness” (como o termo português “justiça”) é demasiado vaga, que tem dois sentidos incompatíveis um com um outro, e que um desses sentidos (o de que “justiça” é haver pouca desigualdade) nada tem de justo. Mas argumentar que os políticos que queiram promover reformas liberais ou liberalizantes devem abdicar de usar palavras como “fairness” ou justiça demonstra uma profunda incompreensão acerca, não tanto de como a política, o jogo político, funciona, mas acerca de como o cérebro humano (dos eleitores) funciona.

Políticos e seus conselheiros tendem a ver o eleitorado como um corpo definido de opiniões: algumas pessoas inclinam-se para a “esquerda”, algumas para a “direita”, e depois há um número grande de eleitores “moderados”, que se situam no “centro” do espectro político. Cometem o erro de verem estes eleitores “centristas” como pessoas com opiniões políticas claramente definidas, embora “moderadas”. Pensam que os eleitores “centristas” estão tão certos das suas opiniões como os eleitores de “direita” e de “esquerda”, e que a única diferença entre estes diferentes tipos de eleitores é a de que os “centristas”, sendo menos “extremistas”, são “captáveis”, podem ser “ganhos” se os políticos forem ao encontro dos seus desejos e lhes oferecerem um conjunto de políticas que as sondagens lhes dizem que eles querem.

O problema está em que os eleitores “centristas” não são uma espécie de versão “intermédia” dos seus concidadãos mais “extremistas”: eles são realmente diferentes. Ao contrário destes últimos, os eleitores “centristas” não têm opiniões políticas firmemente definidas: no seu livro The Political Brain, Drew Westen mostra como os eleitores alinhados interpretam toda e qual informação à luz das suas crenças já definidas (mesmo que sejam contraditórias), e como os eleitores “voláteis” mudam a sua escolha política, não porque estejam “no meio” do espectro político e os partidos ajustem as suas políticas às suas preferências medianas, mas antes porque, não tendo um corpo rígido de convicções políticas, orientam as suas opções eleitorais de acordo com outros critérios, como a sua simpatia pelos líderes partidários, a percepção que têm da competência destes últimos, da sua honestidade, ou apenas e só porque acham que o “novo chefe” é “diferente” do “velho”.

As coisas tornam-se ainda mais complicadas pelo facto de esses eleitores volatéis nem sequer saberem o que querem: Malcom Gladwell conta a história de Howard Moskowitz, um psicofísico americano (ou seja, uma pessoa que estuda as respostas sensoriais a estímulos físicos) descobriu que o recurso a focus groups na indústria alimentar, em que as pessoas eram questionadas acerca de, por exemplo, qual o tipo de molho de tomate que preferiam, era contraproducente, pois as pessoas não sabiam dizer o que queriam antes de o provarem. Isto não acontece apenas na indústria alimentar: num dos seus livros, Gladwell mostra como uma boa razão para os homens não saberem o que as mulheres querem é que elas próprias também não sabem: Sheena Iyengar e Raymond Fisman, dois professores da Universidade de Columbia, nos EUA, realizaram um estudo acerca de como as descrições de mulheres acerca daquilo que procuravam num homem (ou seja, aquilo que elas pensam que procuram) não correspondia às características reais dos homens que “escolhiam”. E diversos estudos sobre comportamento eleitoral mostram como os eleitores exibem uma “polifasia cognitiva” ou seja, a capacidade de terem duas opiniões contraditórias entre si, sem terem noção disso.

Isto não quer dizer que as sondagens e os focus groups sejam irrelevantes. Apenas que o seu propósito deve ser outro que não o de escolher quais as políticas a apresentar ao eleitorado. E aqui voltamos ao argumento da The Economist: como demonstra o especialista em sondagens Frank Luntz, algumas palavras provocam respostas mais positivas e outras palavras respostas mais negativas, e a única forma de saber quais usar será testando-as. Se o “cérebro político” dos eleitores “voláteis” responde positivamente a palavras como “fairness” ou “justiça”, não faz sentido que os políticos não usem essas palavras. Políticos que queiram promover reformas liberais não devem abdicar de tais palavras só porque elas têm sido associadas a políticas “socialistas”. Antes devem procurar associá-las às suas ideias, fazendo as pessoas perceber que nada há de “fair” ou “justo” naquilo que os socialistas defendem. O uso de tais palvras não significa (ou não deve significar) que os políticos abandonem as suas convicções. Apenas deve ser o resultado de uma tentativa de tornar as suas ideias mais apelativas ao volátil cérebro político dos eleitores.

O problema de Cavaco

Como o país não tem problemas sérios com que se preocupar (o Primeiro-Ministro, esse símbolo da honestidade e franqueza, garante que Portugal está melhor preparado que qualquer outro para enfrentar a crise, e a sua palavra, claro, é o suficiente para acreditar que é verdade), a “inteligência” pátria dedica-se com particular sofreguidão a discutir as presidenciais. À “esquerda”, a novela em torno de Alegre, as birras de Soares, e as intenções mais ou menos escondidas de Sócrates têm animado os espíritos dos jornalistas, sempre arrebatados por este género de folhetins. Não querendo ficar para trás, a “direita” tratou de arranjar a sua própria polémica.

Tudo começou quando o Presidente decidiu não vetar a nova lei do “casamento gay”, ao mesmo tempo que anunciava não concordar com a lei. Os católicos logo se sentiram traídos pelo Presidente e, sentindo o cheiro a sangue, o dr. Santana Lopes regressou das catacumbas onde pacificamente jazia para dizer que seria necessário haver uma “alternativa” a Cavaco (o próprio “Pedro”, presume-se, estará disposto a fazer o sacríficio). E até o dr. Paulo Portas, sempre desejoso de se armar em “maquiavélico”, veio dizer que gostaria de apoiar Bagão Félix (para quem não conheça, um senhor que se destaca por ser adepto do Benfica). Incomodado (compreensivelmente) pelo espectáculo, Marques Mendes veio dizer que as declarações destes dois rapazes não passavam de disparates.

Marques Mendes, em parte, tem razão. Mas não por, como o ex-líder laranja pretende, Cavaco merecer ser defendido. Apenas porque criticar Cavaco Silva por causa do “casamento gay” mostra bem a falta de consciência da grave situação política que o país enfrenta e das responsabilidades de Cavaco Silva no agravamento da dita.

Nos últimos anos, a democracia portuguesa transformou-se num autêntico lamaçal. O uso despudorado da mentira por parte do Governo, a constante quebra de promessas eleitorais, a gestão irresponsável da coisa pública, os sucessivos casos em que a excelsa figura do Primeiro-Ministro se viu envolvida, tudo foi contribuindo para o aumento da desconfiança (para não dizer do nojo) que os portugueses sentem em relação, não apenas ao Governo, mas a todos os políticos. E a tudo isto o senhor Presidente da República foi assistindo, quase impávido e sereno, alertando por vezes contra este ou aquele excesso, mas sempre vindo dar a mão ao Governo quando este precisava, com medo que a “instabilidade” agravasse a situação.

Cavaco Silva não percebeu que a “estabilidade” deste Governo é a doença de que Portugal padece. Não percebeu que deixar as coisas continuarem como normalmente significa deixar o país apodrecer ainda mais. Como os leitores mais antigos e mais atentos saberão, sou tudo menos um defensor de um “presidencialismo”, e acho que o cargo de Presidente, pela sua natureza, dificilmente pode ser mais que irrelevante ou nocivo para o país. Mas, dada a situação do país, acho também que já há muito Cavaco deveria ter demitido o Governo, explicando que por muitos riscos que uma tal opção implique, o Presidente não poderia assistir passivamente a comportamentos que degradam a nossa democracia, e consequentemente, tornam cada vez mais difícil a realização das reformas de que o país precisa para sair do poço em que caíu.

Cavaco não o fez. Se o caso do “casamento gay” importa para alguma coisa, é apenas por mostrar que o próprio Cavaco reconhece a sua própria impotência para zelar por aquilo que considera importante. A “direita”, quer por estar genuinamente preocupada com as consequências da lei (os católicos) ou por se excitar com a oportunidade de armar confusão (Santana, Portas e os demais), apenas mostra a sua reconhecida estupidez, ao não perceber que o erro de Cavaco está em ter presidido à degradação do clima político de Portugal. Este sim, é o verdadeiro problema de Cavaco. E do país.

Ficar à espera da bola não chega

Certamente animado pelas imagens de confrontos nas ruas das cidades gregas, o Partido Comunista Português decidiu apresentar uma moção de censura ao Governo de José Sócrates. O Bloco de Esquerda, ultimamente muito incomodado com o “governo bicéfalo” (a mim parece-me mais acéfalo, mas talvez esteja enganado) dos “tangos” de Sócrates e Passos Coelho, já anunciou que apoiaria a iniciativa (como agora se diz). Já o CDS e o PSD preferem abster-se, condenando assim à partida a moção comunista.

Procurando justificar a posição laranja, Miguel Relvas, esse símbolo da dignidade e firmeza políticas, veio dizer que o PSD continuaria “a manter a censura ao Governo naquilo que ele merece, mas, enquanto se justificar, vamos continuar a exigir que o Governo governe e que assuma as suas responsabilidades, desde logo, a de retirar Portugal e os portugueses da situação em que os colocou”. É uma justificação que explica muito do pensamento (chamemos-lhe assim, hoje sinto-me generoso) da actual direcção do PSD, e faz temer que ela não vá muito longe, arrastando consigo o país.

O que Relvas, com a sofisticação intelectual que lhe é conhecida, está a dizer com “exigir que o Governo governe e que assuma as suas responsabilidades, desde logo, a de retirar Portugal e os portugueses da situação em que os colocou”, é que acha que, já que o PS fez asneira e governou mal, agora deve ser o PS a executar as medidas impopulares que a asneira anterior implica que sejam agora tomadas. É esta a “estratégia” delineada pelas cabeças em torno de Passos Coelho: já que o PS seguiu uma política de terra queimada, deixá-lo a tentar apagar o fogo, e quando forem apanhados por ele, chegar ao terreno já livre e, qual “especulador sem escrúpulos”, lucrar com ele. O PSD espera que seja o PS a sofrer as consequências de tomar medidas impopulares, facilitando o acesso ao poder, que consideram estar ainda demasiado longe nas actuais circunstâncias. Note-se, em primeiro lugar, como esta gente está disposta a deixar alegremente a situação política do país degradar-se, desde que isso facilite o seu acesso ao poder daqui a uns tempos. É sempre bom saber a qualidade dos “estadistas” que querem “mudar” o país. Em segundo lugar, tenho sérias dúvidas que o “desgaste” do PS seja suficiente para lançar o poder no colo do PSD, como imagina a liderança laranja.

Essa ideia de que o “cansaço” dos portugueses com Sócrates faz com que o PSD apenas precise de ficar sentado e esperar que “as coisas sigam o seu rumo” há muito que se instalou no PSD. No Congresso de Mafra, foi essa ideia que fez inúmeros oradores afirmarem que o partido estava a eleger “o próximo Primeiro-Ministro de Portugal”. Como fora essa ideia a levar os críticos de Manuela Ferreira Leite a dizerem que perante um Governo tão fragilizado por “casos” e desgastado pela “crise”, só mesmo a suposta inabilidade de Ferreira Leite pode explicar a sobrevivência do regime socrático. Mas, como já várias vezes escrevi, quanto mais apodrecido o Governo estiver, mais difícil será pô-lo no lixo.

Em primeiro lugar, porque nem a total describilização é suficiente para o Primeiro-Ministro deixar de se agarrar ao poder como eu gostaria de me agarrar a uma adolescente de qualidade estética superlativa. Como toda a sua história de vida demonstra, o cheiro de matéria fecal manifestamente não incomoda José Sócrates, que, como o outro senhor de The Wire prefere “to live in shit than to be seen to work a shovel”. Por muito que o seu regime apodreça, Sócrates nunca abdicará livremente do trono que ocupa, e de lá só poderá ser arrancado “à bomba”. “Bomba” essa que o Presidente da República, um senhor reconhecidamente pacífico, não quer largar, e longe vai o tempo (esperemos nós) em que os militares se entregavam a essas actividades. A única “bomba” que poderá ser usada será a dos eleitores nas urnas, mas temo que, quanto mais necessária ela se torne, menor seja a probabilidade deles estarem dispostos ao trabalho de a lançar.

Já antes das eleições de Setembro passado o escrevi: é precisamente o facto de vivermos num clima de “fim de regime” do PS que tornará as coisas mais difíceis para o PSD. Em primeiro lugar, a violência e degradação do debate “excita” os “fiéis”, que por muito desagradados que possam estar com Sócrates, não gostam de ver “um dos seus” ser atacado por “eles”. A podridão do regime fidelizará o PS, que tenderá, até à última hora, a proteger Sócrates como se de uma criança indefesa se tratasse (depois da última hora, a canção será outra).

Em segundo lugar, a demagogia reinante favorece os partidos de protesto, mas pequenos, o que estranhamente, acaba por favorecer o PS. O ódio a Sócrates não se traduz forçosamente no voto no PSD, podendo mais facilmente deslocar-se para o CDS ou até para o BE, partidos dados à berraria que faz o gosto do povo. É difícil a um partido que quer ser governo fazer oposição num ambiente político degradado, porque aquilo que pode motivar a conquista de votos (essa mesma degradação do regime do momento) é também aquilo que faz com que as pessoas tenham uma maior predisposição para votar em quem faz barulho, só por fazerem barulho. A degradação do Governo do PS acaba por retirar votos, não apenas ao PS, mas também ao PSD.

Até porque a podridão do Governo, arrastando consigo a desconfiança dos eleitores, traz também uma desconfiança não apenas em relação ao Governo, mas em relação à alternativa. Um Governo que mente, que manipula, que esconde e que parece corromper e estar corrompido, faz com que os eleitores, muito sabiamente, desconfiem de todo e qualquer político que lhes peça a sua confiança. Porquê confiar “nestes”, só porque nos dizem que vão ser diferentes? Os “outros” disseram “o mesmo”, e “foi o que se viu”. A desconfiança dos eleitores em relação a este Governo transforma-se, muito rapidamente, numa descrença na palavra de toda a classe política. Quanto pior o PS for, quanto mais degradado o Governo estiver, mais agreste será o clima político para aqueles que queiram promover uma alteração do estado das coisas (deixemos de lado a “mudança” obâmica, ela própria um produto e causa da podridão). Quanto menos as pessoas acreditarem no PS, menos acreditarão na possibilidade de “os outros” serem diferentes.

Os actuais responsáveis do PSD estão a seguir uma estratégia comum a alguns treinadores de futebol: tendo um ponta-de-lança alto e forte na equipa, deixam-no plantado junto à defensiva contrária, para que quando a equipa recuperar a bola, apanharem o adversário quando a sua defesa está desprotegida. O problema está em que jogar dessa forma implica o risco de, por se ter menos um jogador envolvido em tarefas defensivas (ou, no caso do PSD, por não fazer oposição e preferir queimar o PS lentamente), não ser capaz de recuperar a bola e portanto não ter oportunidades de atacar a baliza contrária. Não espero grandes tratados filosóficos de Relvas e companhia, mas um mínimo de bom senso permitir-lhes-ia perceber que, ao PSD, ficar plantado na àrea à espera da bola talvez não seja suficiente, e que ao fazê-lo o partido laranja talvez se arrisque a ser apanhado em fora-de-jogo. Mas, como já se viu, bom senso não é um bem em excesso por aqueles lados.

Do que é que precisamos: mais ou menos “Europa”?

Ontem, “celebrou-se” (por assim dizer) o “Dia da Europa”. Ao contrário do que os euroentusiastas mais excitadas gostariam, os tempos não estão para grandes festas, e as “celebrações” passaram ainda mais despercebidas dos “europeus” do que é usual. Preocupados em evitar que a Grécia rebente (ainda mais) e outros países apanhem com os estilhaços, nem mesmo os propagandistas do costume gastaram muito tempo a falar das maravilhas da “união”. No entanto, de forma mais ou menos envergonhada, lá aproveitaram as reuniões de emergência para o “salvamento” da Grécia para nos explicarem como todo o tumulto é a prova de que precisamos de “mais Europa”.

O raciocínio desta gente é simples: a crise actual mostra como “os problemas de hoje” são “problemas globais”. E, dizem-nos, “problemas globais” requerem “soluções globais”. As “complicações” (para ser generoso) enfrentadas pela Grécia (e, não esqueçamos, Portugal) mostram, continua o argumento, como nenhum país tem capacidade para enfrentar crises como a actual sozinho, e portanto, como “construções” como a União Europeia são indispensáveis no “mundo globalizado de hoje”.

Mas e se a actual crise, o que mostra, realmente, é que “soluções globais” são a pior opção possível? E se o que a crise mostra é como precisamos de menos “Europa”, em vez de uma “maior e mais profunda intergração”? Há algum tempo, no New York Times, David Brooks pegava na “gripe A” (ainda se lembra, caro leitor?) e colocava a mesma pergunta aos que, tal como os europeístas de hoje, procuram “soluções globais para problemas globais”: “a couple of years ago”, escreve Brooks, “G. John Ikenberry of Princeton wrote a superb paper making the case for the centralized response. He argued that America should help build a series of multinational institutions to address global problems. The great powers should construct an “infrastructure of international cooperation … creating shared capacities to respond to a wide variety of contingencies.” If you apply that logic to the swine flu, you could say that the world should beef up the World Health Organization to give it the power to analyze the spread of the disease, decide when and where quarantines are necessary and organize a single global response. If we had a body like that, we wouldn’t be seeing the sort of frictions that are emerging from today’s decentralized approach. Europe has offended the U.S. by warning its citizens not to travel across the Atlantic. Ukraine is restricting pork imports. Europe could hoard flu vaccines, leaving the U.S., which has only one manufacturing plant, high and dry. Fear of a pandemic could lead to a restrictionist race, as nations compete to curtail movement and build walls. Those dangers are all real. Yet, so far, that’s not the lesson of this crisis. The response to swine flu suggests that a decentralized approach is best. This crisis is only days old, yet we’ve already seen a bottom-up, highly aggressive response. In the first place, the decentralized approach is much faster. Mexico responded unilaterally and aggressively to close schools and cancel events. The U.S. has responded with astonishing speed, considering there are still few illnesses and just one hospitalization (…) A single global response would produce a uniform approach. A decentralized response fosters experimentation. The bottom line is that the swine flu crisis is two emergent problems piled on top of one another. At bottom, there is the dynamic network of the outbreak. It is fueled by complex feedback loops consisting of the virus itself, human mobility to spread it and environmental factors to make it potent. On top, there is the psychology of fear caused by the disease. It emerges from rumors, news reports, Tweets and expert warnings. The correct response to these dynamic, decentralized, emergent problems is to create dynamic, decentralized, emergent authorities: chains of local officials, state agencies, national governments and international bodies that are as flexible as the problem itself.”

Tal como a “gripe A”, a crise económica mostra como vivemos num mundo de imprevisibilidade e risco. E tal como Brooks, tenho sérias dúvidas que “respostas globais”, ou “europeias”, sejam a melhor forma de viver num mundo como o nosso. Não seria melhor termos uma diversidade de respostas aos problemas, em vez de caminharmos todos para o abismo? não deveríamos nós aceitar a natureza imprevisível, caótica, arriscada, do mundo globalizado de hoje, ee correr o menor número de riscos possível na configuração dos próprios arranjos políticos. Precisamente por os riscos de qualquer decisão serem enormes, não só para quem a toma como para todos os outros, deveremos limitar, não o número de pessoas que tomam decisões, mas o número de pessoas sujeitos a um só decisor: se eu e o meu vizinho fizermos duas apostas diferentes, pode acontecer que eu perca, mas que ele ganhe. E mesmo que o facto de eu perder possa ter impacto sobre o ganho dele, o que é verdade é que ele ganhou alguma coisa, minorando o impacto que a minha perda possa ter nele; se o “Grande Regulador” fizer uma aposta em nome dos dois, ambos vamos perder o mesmo, sem nada que sirva de almofada a qualquer um de nós. E sim, é verdade que a nossa tendência para copiarmos as respostas que os outros dão significa que, muitas vezes, estamos a copiar respostas erradas. Mas também significa que, outras vezes, estamos a copiar respostas certas. Se um “Grande Regulador” der as respostas por todos nós, ou decidir qual o leque de respostas admissíveis, todos beneficiaremos quando ele tiver razão, mas o impacto de uma resposta errada será também muito maior, porque todos estarão errados.

A “Europa”, como seria de esperar, não está a seguir por este caminho. De certa maneira, a opção europeia é inevitável: como explicava o Miguel Morgado há dias, a única forma de salvar o euro será através de maior “integração” (o termo em EUROSOC para “subordinação nacional a Bruxelas”). Mas como o próprio Miguel notava, o facto de uma política “salvar” o euro não significa que ela não crie outros problemas, eventualmente mais graves e mais dificeís de resolver. A “saída” europeia da crise corre o risco de ignorar a principal lição que se deveria tirar da dita crise: a imprevisibilidade do nosso mundo, e a irracionalidade de algumas das nossas decisões, são factores que não podemos dispensar ao pensarmos acerca de como deverão ser os nossos arranjos políticos. Mas devemos considerar ambos igualmente, e levá-los a sério: deveremos perceber que todos podemos fazer escolhas erradas, e perceber que qualquer escolha pode ter consequências imprevisíveis. E que por isso, será melhor que o processo de escolha seja o mais disseminado possível, para que ninguém possa escolher por todos, para que o impacto de uma escolha errada seja o menor possível. “Mais Europa” é precisamento um exemplo do que não precisamos.

O Governo finge que existe

Há uns dias, e depois de vários meses que os “passistas” passaram a avisar para o perigo do “regresso” do “Bloco Central” com Manuela Ferreira Leite, o seu “chefe” (o “jovem” que tudo ia “mudar” e fazer “verdadeira oposição”) foi a um beija-mão ao Sr. Primeiro-Ministro, garantir-lhe que o PSD iria ficar caladinho nos próximos tempos, enquanto o PS finge que resolve os problemas e, na realidade, os deixa tornarem-se cada vez mais graves. O Primeiro-Ministro, claro, agradeceu, e o país, como de costume, pagará caro.

As novas medidas “restritivas” da atribuição do subsídio de desemprego são um bom (salvo seja) exemplo desse preço. Essas medidas até parecem um bom exemplo de saudável pensamento económico: se o Estado pagar menos subsídio de desemprego aos desempregados, estes terão menos incentivos para continuarem desempregados. Mas, mais do que uma demonstração de inteligência e bom senso dos responsáveis socialistas, esta medida mostra apenas o quão intelectualmente cromagnon é o Governo.

Ao contrário do que Sócrates e os seus meninos (com o silencioso beneplácito de Passos Coelho e o seu malcriado guru Nogueira Leite), não consta que o problema do desemprego em Portugal se deva a uma chusma de preguiçosos que ficam sentados a sugarem os contribuintes enquanto os empregos florescem no mercado de trabalho. Pelo contrário. Os dois grandes problemas do desemprego devem-se, por um lado, à morte de certas actividades que, pura e simplesmente deixaram de ser rentáveis, e que lançam no desemprego uma série de pessoas que nunca de lá sairão, e por outro, à falta de flexibilidade do mercado de trabalho: é difícil despedir, o que faz com que seja difícil contratar, o que faz com que o problema do desemprego não seja um problema de falta de procura por parte dos desempregados, mas essencialmente de oferta de empregos.

Ser menos “generoso” na atribuição dos subsídios de desemprego, nestas circunstâncias, pouco ou nada fará para resolver o problema, pela simples razão de que o problema não está aí. Com tais medidas, o Governo (e Passos Coelho) apenas deixarão desempregados de longo prazo, que, devido à rigidez do mercado de trabalho, terão dificuldade em arranjar emprego por muito que o procurem, em maiores dificuldades. Como de costume, na sua ânsia de se mostrar “activo” e “actuante” (“in the parlance of our times”) perante a crise, Sócrates deixa imaculados os verdadeiros problemas, e cria outros como se o país já não tivesse os suficientes. Como se estas pérolas de “sensibilidade social” (algo que o PS sempre disse apreciar bastante, mas de que se esquece regularmente) não fossem suficientes, o Governo insiste (com protestos envergonhados do PSD) na necessidade de esbanjar dinheiro no TGV e restantes obras de “investimento público” (que, quando convém, são “de capital privado”. O “melhor” de dois mundos, portanto). O que mostra bem como não é só o TGV que precisa de ser suspenso, mas o próprio Governo (e a oposição) que deveria ser convenientemente dinamitado, antes que seja todo o país a rebentar.

Quanto mais apodrecido estiver o Governo, mais difícil será pô-lo no lixo

(publicado também aqui)

No exercício vagamente deprimente que foi o último Congresso do PSD, foi muito mencionada a ideia de que o partido laranja se prepara para escolher “o próximo Primeiro-Ministro de Portugal”. Apesar de, em parte, esta ser uma declaração mais ou menos de circunstância, típica de gente apostada em “animar as tropas”, mais indicadora da pobreza das cabecinhas que a emitem do que da realidade da cena política portuguesa (tal como a expressão “cena política portuguesa” indica a pobreza da minha), ela é também reflexo de um “estado de espírito” acerca do Governo e do seu futuro imediato: ela reflecte a ideia de que o Governo está como que “ferido de morte”, e que “cairá de podre” mais tarde ou mais cedo, entregando no doce regaço da pobre alma que estiver na presidência do PSD a tarefa de tirar Portugal do rosadinho buraco em que Sócrates e os seus aguadeiros nos afundaram.

Foi essa ideia (e claro, a possibilidade de castigar “aqueles que falam contra o partido”) que animou o Congresso de Mafra, tal como foi essa ideia que penalizou a avaliação do mandato de Ferreira Leite: por várias vezes, nos últimos meses, muito bom e mau analista achou por bem dizer que, perante um Governo tão fragilizado por “casos” e desgastado pela “crise”, só mesmo a suposta inabilidade de Ferreira Leite pode explicar a sobrevivência do regime socrático. A crer nestas “análises”, a solução para os problemas do PSD (e do país) seria fácil: bastaria encontrar um político “hábil”, ou seja, um mentiroso sem escrúpulos como Sócrates, e como políticos mentirosos e sem escrúpulos é o que não falta no PSD, a tempestade estaria próxima do fim.

Não querendo estragar a festa laranja (até porque o próprio partido se encarrega de o fazer), devo dizer que esta ideia de que a total descredibilização do PSD facilita a tarefa do PS é uma ideia profundamente errónea. Aliás, a derrota de Ferreira Leite parece-me ser precisamente uma prova disso. Ao contrário do que o PSD parece pensar, e do consenso generalizado da “inteligência” pátria, quanto mais apodrecido o Governo estiver, mais difícil será pô-lo no lixo.

Em primeiro lugar, porque nem a total describilização é suficiente para o Primeiro-Ministro deixar de se agarrar ao poder como eu gostaria de me agarrar a uma adolescente de qualidade estética superlativa (ou alguém capaz de disparar um bom insulto. Cheguei ao ponto em que já me contento com pouco). Como toda a sua história de vida demonstra, o cheiro de matéria fecal manifestamente não incomoda José Sócrates, que, como o outro senhor de The Wire prefere “to live in shit than to be seen to work a shovel”. Por muito que o seu regime apodreça, Sócrates nunca abdicará livremente do trono que ocupa, e de lá só poderá ser arrancado “à bomba”. “Bomba” essa que o Presidente da República, um senhor reconhecidamente pacífico, não quer largar, e longe vai o tempo (esperemos nós) em que os militares se entregavam a essas actividades. A única “bomba” que poderá ser usada será a dos eleitores nas urnas, mas temo que, quanto mais necessária ela se torne, menor seja a probabilidade deles estarem dispostos ao trabalho de a lançar.

antes das eleições de Setembro passado o escrevi: é precisamente o facto de vivermos num clima de “fim de regime” do PS que tornará as coisas mais difíceis para o PSD. Em primeiro lugar, a violência e degradação do debate “excita” os “fiéis”, que por muito desagradados que possam estar com Sócrates, não gostam de ver “um dos seus” ser atacado por “eles”. A podridão do regime fidelizará o PS, que tenderá, até à última hora, a proteger Sócrates como se de uma criança indefesa se tratasse (depois da última hora, a canção será outra).

Em segundo lugar, a demagogia reinante favorece os partidos de protesto, mas pequenos, o que estranhamente, acaba por favorecer o PS. O ódio a Sócrates não se traduz forçosamente no voto no PSD, podendo mais facilmente deslocar-se para o CDS ou até para o BE, partidos dados à berraria que faz o gosto do povo. É difícil a um partido que quer ser governo fazer oposição num ambiente político degradado, porque aquilo que pode motivar a conquista de votos (essa mesma degradação do regime do momento) é também aquilo que faz com que as pessoas tenham uma maior predisposição para votar em quem faz barulho, só por fazerem barulho. A degradação do Governo do PS acaba por retirar votos, não apenas ao PS, mas também ao PSD.

Até porque a podridão do Governo, arrastando consigo a desconfiança dos eleitores, traz também uma desconfiança não apenas em relação ao Governo, mas em relação à alternativa. Um Governo que mente, que manipula, que esconde e que parece corromper e estar corrompido, faz com que os eleitores, muito sabiamente, desconfiem de todo e qualquer político que lhes peça a sua confiança. Porquê confiar “nestes”, só porque nos dizem que vão ser diferentes? Os “outros” disseram “o mesmo”, e “foi o que se viu”. A desconfiança dos eleitores em relação a este Governo transforma-se, muito rapidamente, numa descrença na palavra de toda a classe política. Quanto pior o PS for, quanto mais degradado o Governo estiver, mais agreste será o clima político para aqueles que queiram promover uma alteração do estado das coisas (deixemos de lado a “mudança” obâmica, ela própria um produto e causa da podridão). Quanto menos as pessoas acreditarem no PS, menos acreditarão na possibilidade de “os outros” serem diferentes. Por muito que me custe, temo que o “próximo Primeiro-Ministro de Portugal” seja precisamente o que lá está hoje.