Normatividade e positividade encontram-se em oposição? Quando William H. Riker propôs uma ciência política positiva, ele realmente desejava que fosse totalmente objetiva e isenta de normatividade? Creio que o problema está com o termo “normativo”. Uma coisa é ser normativo no sentido de formular propostas de como as coisas “deveriam ser”. Isso é o que normalmente entende-se por normatividade. Outra coisa *bem distinta* é quando a normatividade nos diz o que devemos fazer SE desejamos atingir um certo objetivo E estamos dotados de uma certa quantidade de informações. É nesse segundo caso que se encontra a Teoria da Escolha Racional, uma teoria que é, por sinal, normativa – e que fornece a base para a ciência política positiva de Riker.
A normatividade, portanto, não implica em prescritividade. Além disso, mesmo que a objetividade absoluta seja impossível, mesmo que fatores “culturais”, “sociais” ou “intersubjetivos” (seja lá o que forem esses conceitos vagos e imprecisos, deixo esse debate para os parisienses e simpatizantes) participem da definição de temas e de agendas de investigação, eles não interferem conscientemente (ou, pelo menos, não deveriam interferir) nas atividades de pesquisa científica.
Quando os adeptos de uma corrente teórica afirmam-se contrários à “pretensão científica”, ou declaram orgulhosamente que“pessoas não são números”, ou rejeitam a importância de darem a cara aos tapas da falseabilidade, isso de início já mostra uma incompreensão básica do próprio conceito de modelo científico. Ou talvez seja porque ainda estão aferrados a um entendimento do que foi a ciência no século XIX.
“Ah, mas a Matemática é apriorística”. Sim. Concordo. Mas a Matemática *não é uma ciência* e nem pretende dizer, *por si só*, algo sobre o mundo. O único compromisso da Matemática é para com a coerência e consistência lógica de seus resultados. Matemáticos “puros”, por assim dizer, não se importam com a realidade. Logo, o teste experimental, a observação cuidadosa, a análise de hard cases… tudo isso não faz muito sentido para um matemático puro, pois o que importa é que os resultados digam algo acerca do mundo da matemática – e, ao seu lado, o mundo real não passa de uma grosseira caricatura.
Pode-se APLICAR a Matemática, ou partes dela, para tentar entender como a natureza ou a sociedade funcionam. É nesse caso – e somente nesse caso – que pode-se afirmar que a “Matemática é uma linguagem”. Mas a Matemática, em si, com todos os seus “apriorismos”, tem seu fim em si mesma. Portanto, ela *não é* uma linguagem, mesmo que possa ser instrumentalizada dessa maneira. Aí está a beleza da coisa (G. H. Hardy concordaria com isso, acredito). Tentar transferir de forma exata o apriorismo da matemática para o mundo real é incorrer na mesma ingenuidade dos velhos racionalistas continentais.
Quando a Matemática é *instrumentalizada como linguagem* para tentamos aprender algo sobre o mundo real, torna-se Matemática Aplicada: uma maneira poderosa de descrever processos e deduzir POSSÍVEIS resultados. Sim, essa é a tão famigerada “capacidade preditiva”: a dedução de estados do mundo a partir de como o mundo se nos apresenta hoje. Porém os resultados são sempre *possíveis* e não *certos*. Se alguém quer previsões que sejam absolutamente certas, recomendo que recorra a uma cartomante, e não a um matemático.
Áreas científicas (não a Matemática, que não é uma ciência) querem poder dizer algo a respeito do mundo real. Podem utilizar a Matemática (aí sim como linguagem), porque ela proporciona maior precisão a respeito do que é dito. Confiar nas linguagens naturais, além de inserir a indesejável imprecisão (que prejudica a objetividade científica), também abre as portas tanto para interpretações ideológicas perniciosas (que transformam o normativo em prescritivo), quanto para manipulações convenientes através da utilização hábil das ambiguidades naturais da linguagem corrente. A Matemática, então, *pode* servir à ciência, mesmo que isso não seja a sua principal função.
Uma teoria, para ser científica, não pode ser apenas um “palpite” acerca de como a realidade funciona. Tem que fazer sentido e ser logicamente consistente (é aí que a Matemática ajuda). Mas só isso não basta: ela tem que dizer algo acerca da realidade (e é aí que a Matemática, por si só, não ajuda). Lógica e evidências, portanto, formam os dois pilares sem qualquer um dos quais não conseguimos construir um edifício teórico. Somente a lógica, sem as evidências, leva à produção de pseudo-teorias que costumam ter muito mais valor apelativo do que científico. Somente evidências, sem sua organização em um arcabouço lógico, permite defender praticamente qualquer ideia ou ponto de vista.
A Estatística – que NÃO É, repito, NÃO É a mesma coisa que a Matemática, é uma coadjuvante nesse segundo pilar – o das evidências. Porque evidências têm que ser analisadas, catalogadas, avaliadas quanto a desvios do esperado, cuidadosamente mensuradas e assim por diante. Muitos pensam que, na Economia e na Política, todo o trabalho se resume a isso. Na verdade, essa é apenas uma parte. Incompleta e insatisfatória. É por isso que concordo com todas as críticas dos austríacos aos economistas que não fazem mais do que econometria e aplicação de métodos estatísticos. Contudo, dizer que isso é a mesma coisa que “Matemática”, é um problema conceitual. “Ah, mas a Estatística mexe com números e, por isso, pertence à Matemática”. Bom, a numerologia também mexe com números…
Admiro a Escola Austríaca de Economia. Ao longo das décadas, seus representantes têm nos agraciado com belíssimos insights para entender o funcionamento dos processos econômicos e sociais. No fundo, sua beleza reside na simplicidade… e a sua maior genialidade consiste em enxergar o óbvio que, por estar diante dos narizes de todos, passa despercebido.
Mas a Escola Austríaca *explica* alguma coisa? Precisamos de teorias científicas (lógica + evidências) para explicar fenômenos. E evidências não são apenas aspectos das realidade aos quais apontamos e exclamamos: “Olha, Zezinho, isso é uma evidência”. Evidências precisam ser adequadamente tratadas e lapidadas. São como diamantes brutos. Ao rejeitar não só a Matemática, mas também a sua prima de segundo grau, a Estatística, abre-se mão da capacidade de produzir explicações. Ao invés disso, o que se obtém são opiniões muito bem embasadas, em pressupostos não científicos, mas filosóficos e psicológicos, de como o mundo econômico “deveria” funcionar. Lamento, mas não se pode *confiar* em uma pretensa explicação apenas porque está de acordo com as ideias de um ou dois filósofos que morreram há três ou quatro séculos.
E quanto à capacidade de fazer previsões? Muitos consideram isso algo indesejável, por sua capacidade de orientar alguns governantes a utilizarem as previsões a seu favor e à realização de suas agendas malignas. É o medo do “Minority Report”.
Explicar o que já aconteceu é muito cômodo. Sem a qualidade preditiva, a ciência perde grande parte do seu valor. Mas predizer é adivinhar o futuro? Não. Predizer é orientar para onde se espera que o mundo caminhe *dado o que* sabemos hoje e levando em consideração tanto riscos (estimáveis) quanto incertezas (a respeito das quais quase nada podemos dizer). Se as previsões são utilizadas para fazer policy, o problema não é com as previsões: é com os policymakers e, o que é ainda mais grave, com os que elegem esses policymakers para seus cargos.
Ao rejeitar tanto a Matemática quanto a Estatística, a Escola Austríaca não consegue fazer previsões sobre o mundo real. Consegue, no máximo, produzir análises sobre o que já a aconteceu. Quanto ao futuro, ela consegue proporcionar excelentes intuições. Elas são acertadas, em grande parte das vezes, mas ainda assim não são fundamentadas em lógica E evidências, mas apenas em uma certa lógica e em evidências que não são tratadas como evidências, mas sim como exemplos que podem ou não estar de acordo com um certo conjunto de valores e princípios fundamentais. E isso implica em incorrer em um perigoso viés quando se trata de pesquisa científica.
É possível aprender MUITO a partir dos resultados e reflexões da Escola Austríaca. Ela está mais próxima do que a Matemática (como ideal) do que da Estatística. Digo Matemática como *ideal*, porque o apriorismo me faz lembrar daqueles velhos racionalistas continentais…
Precisamos desenvolver mais a Escola Austríaca e dar mais espaço às suas reflexões. Afinal de contas, seus insights acerca de como a economia funciona são fantásticos, e suas intuições sobre o futuro não devem ser desprezadas. Só devemos ter o cuidado de não abandonar a razão científica, a preocupação a um só tempo com a lógica e com as evidências. Temos diante de nós a escolha: podemos jogar mais tempo fora discutindo contra opositores ideologicamente orientados (e, nesse caso, não seremos muito diferentes deles), ou podemos utilizar nosso tempo para produzir resultados logicamente consistentes e empiricamente verificáveis, e assim *realmente* termos algo a dizer sobre o mundo.
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