Fernando Pessoa, num texto bastante conhecido e abundantemente reproduzido, sobretudo em blogs monárquicos, na blogosfera por estes dias (p. ex., aqui), publicado no livro Da República (Ática, 1979, pp. 149-151) diz o seguinte (destaques meus):
É alguém capaz de indicar um benefício, por leve que seja, que nos tenha advindo da proclamação da República? Não melhorámos em administração financeira , não melhorámos em administração geral, não temos mais paz, não temos sequer mais liberdade. Na Monarquia era possível insultar por escrito impresso o Rei; na República não era possível, porque era perigoso insultar até verbalmente o Sr. Afonso Costa.
Por muito ideais que a 1.ª República tivesse, na prática, a única coisa que os republicanos fizeram foi, após a tomada do poder, manterem-se nele por todas as formas, sendo para isso bons todos os meios: redução do universo eleitoral, redesenho à medida dos círculos eleitorais, intimidação violenta dos adversários, confronto violento com a Igreja (não estava em causa uma simples separação da Igreja do Estado), sendo que este último confronto foi particularmente negativo para a república, etc. Por isso estou com Vasco Pulido Valente quando escreveu no Público, na edição de 02/10/2010:
E , em 2010, a questão é esta: como é possível pedir aos partidos de uma democracia liberal que festejem uma ditadura terrorista em que reinavam “carbonários”, vigilantes de vário género e pêlo e a “formiga branca” do jacobinismo? Como é possível pedir a uma cultura política assente nos “direitos do homem e do cidadão” que preste homenagem oficial a uma cultura política que perseguia sem escrúpulos uma vasta e indeterminada multidão de “suspeitos” (anarquistas, anarco-sindicalistas, monárquicos, moderados e por aí fora)? Como é possível ao Estado da tolerância e da aceitação do “outro” mostrar agora o seu respeito por uma ideologia cuja essência era a erradicação do catolicismo? E, principalmente, como é possível ignorar que a Monarquia, apesar da sua decadência e da sua inoperância, fora um regime bem mais livre e legalista do que a grosseira cópia do pior radicalismo francês, que o “5 de Outubro” trouxe a Portugal?
Por isso, eu, que até sou republicano convicto (no sentido em que gosto mais da forma de governo “República”), não sinto vontade nenhuma em comemorar os cem anos da implantação da República, pois a 1.ª República que se lhe seguiu não foi, certamente, um regime democrático. Como diz Rui Ramos (“O dia dos equívocos” in Outra Opinião – Ensaios de História, O Independente, Lisboa, 2004, p. 14):
Porque é que uma democracia pluralista insiste em fazer feriado em memória de um regime que, pelos padrões do princípio do século XXI, não foi democrático nem pluralista?
Um mistério a que eu também não sei responder.