Na primeira vez que estive em Buenos Aires, em 2008, saí andando a esmo por Palermo e me deparei com uma bela casinha em estilo francês cujo letreiro dizia: “Museo Evita Perón”. Mesmo sem simpatias prévias pelo peronismo, entrei, e fiquei muito impressionado com o jornal do dia seguinte ao da morte de Evita, cuja manchete dizia: “Murió la Jefa Espiritual de la Nación”.
“Chefa Espiritual da Nação” não era simplesmente um epíteto que as massas deram a Eva Perón, mas um título que lhe foi concedido pelo congresso argentino. Naquele dia, lembro bem, fiquei contente ao pensar: nem o brasileiro mais insanamente pró-Lula pensaria em chamá-lo de “chefe espiritual da nação”.
Dez anos depois, me parece que a prisão de Lula começa a fazer as vezes de martírio, e, por tabela, operar sua canonização aos olhos de muitos brasileiros, incluindo muitos que admiro — são pessoas cujo trabalho editorial ou acadêmico é de primeira linha.
Recentemente, voltei ao Rio de uma temporada de seis meses na mesma Buenos Aires, e, tendo guardado certa distância da imprensa brasileira, fui descobrir o passo anterior dessa canonização. A esquerda brasileira já fala abertamente numa escalada do fascismo no Brasil, e todos os clichês — o ovo da serpente, etc. — são repetidos diariamente a respeito de todos aqueles que não estão carpindo a prisão de Lula.
Há cerca de vinte anos acompanho esses debates, e o ponto atingido agora é diferente de tudo o que já vi antes (não uso o clichê de Lula, “nunca antes na história deste país…” porque essa pretensão de originalidade parece ingênua).
As promessas de violência são explícitas, e, em ao menos um caso, foram cumpridas: uma pessoa que pediu a prisão de Lula na frente do Sindicato dos Metalúrgicos (onde Lula se resguardava da Polícia Federal) e devidamente empurrado contra um caminhão em movimento por um ex-vereador pró-Lula. No momento, o empresário está no hospital, com traumatismo craniano.
Assim, hoje, no Brasil, imaginar que um político que tenha sido condenado por um tribunal de primeira instância e por um tribunal de apelações no primeiro de seus nove processos de corrupção não está sofrendo perseguição política tornou-se “fascismo” na opinião de quem aparentemente não se importa com o fato de que seus correligionários jogam adversários políticos contra caminhões em movimento.
Dirão: ele é perseguido porque é o primeiro colocado nas pesquisas para a próxima eleição presidencial. Mas o que fazer? Isto agora é um salvo conduto para a justiça? Está-se concedendo foro privilegiado com base em pesquisas de opinião?
Os tempos no Brasil estão muito interessantes, argentinamente interessantes. Considerando as crenças que os partidários de Lula esperam que tenhamos, parece fácil imaginar que, além do título de doutor honoris causa que lhe foi dado por Coimbra e lhe será dado pós-prisão pela Universidad de Rosario, na Argentina, também queiram outorgar-lhe de uma vez o de “chefe espiritual da nação”.