André Azevedo Alves e Rodrigo Adão da Fonseca: Liberdade em Pandemia?

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Na sequência dos artigos publicados no Observador*, os insurgentes André Azevedo Alves e Rodrigo Adão da Fonseca vêem juntar-se numa conversa online com os Students for Liberty Portugal numa conversa sobre como não perder a cabeça no meio desta crise.

Podem encontrar o link de registo aqui ou o evento do Facebook, que terá também um live, aqui.

A não perder, já amanhã pelas 22h.

*O COVID-19 e a nova normalidade: um apelo à ponderação

O vírus não deve dominar as nossas mentes

Não, Sr. Presidente, o Estado de Emergência não é um ”sinal democrático”

É também um sinal democrático. Democrático, pela convergência dos vários poderes do Estado. (…) Não é uma interrupção da democracia. É a democracia a tentar impedir uma interrupção irreparável na vida das pessoas.

A decisão é legal e legítima, certo. Mas continua a ser, por definição, uma ”interrupção da democracia”, e por isso constitucionalmente delimitada e com a duração de quinze dias. A ”convergência dos vários poderes do Estado” pode afigurar-se como um sonho da cabeça de alguns, mas não é nem nunca foi democrática. Os Estados de Emergência são excepcionais porque são o sinal primeiro da nossa impotência: de um momento para o outro, com a aprovação de todos os poderes do Estado, a liberdade é suspensa com um coro de obrigados. Mas como temos vindo a ver, não faltam retóricas a exigir ”emergências” a toda a hora e convém, pelo menos àqueles que (ainda) se dizem liberais, começar a fazer o exercício de separar o mito da realidade. A tentação em tempos como este, para além dos discursos em largo epidíctico e das declarações várias de guerra, é a de resvalar para doublespeaks salvadores.

No entanto, as ”convergências” no seio do Estado tendem a ser opacas e opõem o Estado ao regime, pelo que nenhuma democracia resiste a uma unanimidade prolongada entre os poderes do Estado. A democracia, mobilizada contra um inimigo invisível e pouco óbvio e à beira de uma crise económica de que não há memória ficará, durante este período, sob fogo. Marcelo eventualmente sonhará com o dia em que declarará, sorridente, que ”saímos mais fortes”. Mas esse dia é por enquanto uma miragem. Por agora, resta a esperança de que a suspensão potencial, durante mais de um mês, do direito de deslocação e fixação, da propriedade e iniciativa económica privadas, dos direitos dos trabalhadores, da circulação internacional, do direito de reunião e de manifestação, da liberdade de culto na sua dimensão colectiva e do direito de resistência, resultem sem violência ou colapso social. Depois de tudo isso, poderemos voltar a falar de democracia outra vez.

Até lá, façam o melhor que podem e a população aguentará e acatará enquanto entender que é o melhor que pode fazer. Num clima que exige a maior das franquezas por parte de quem governa, não pode haver espaço para lapsos. Este é o momento em que nos encontramos mais indefesos, onde pouco mais nos sobra que a linguagem. É bem possível que este Estado de Emergência seja necessário, mas não me venham dizer que é democracia, porque liberal já não é.

O Lugar da Liberdade

Escrever, para um partido antigo, um novo programa eleitoral não é verter sobre o papel um outro amanhã. Pelo contrário, é um processo de diálogo constante com o passado e o futuro desse partido; a conciliação, a reconfiguração e a renovação de velhas alianças geracionais, sociais, profissionais e geográficas que, em virtude de um país tão desigual, nem sempre se encontram nos seus interesses.

Na realidade, e provavelmente por defeito da nossa democracia, é fundamentalmente nos partidos políticos – se quisermos excluir daqui o futebol – que podemos encontrar essas coligações sociais. Mais do que a manifestação de uma ideologia maioritária e minoritária, são a congregação de uma enorme diversidade de pontos de vista em torno de um conjunto de ideias centrais e, evidentemente, contrárias à cultura do poder estabelecido.

Os grandes partidos de centro-direita assumiram, desde a sua matriz, esta ambição. É por isso que, com ou sem liberal no nome, com ou sem conservador no nome, assumiram sempre as funções complementares de estancar e reformar os excessos do socialismo e da social-democracia, por um lado, impedindo, por outro, rupturas sociais que comprometem a própria possibilidade de reformar o país. Independentemente da consistência teórica desta postura, que tem sido cada vez mais colocada em questão tanto por uns como por outros, ela tem sido a chave do sucesso à direita ao longo das décadas do pós-guerra.

Um largo contrato, não-socialista, socialmente agregador e mobilizador, que foi resolvendo as suas tensões internas por via da própria acção política. A experiência é boa professora: quando há uma educação monolítica e centralizada, uma saúde desastrosa e subfinanciada, um Estado açambarcador, ineficiente e distante e uma regulação económica que prejudica todos excepto os que já ganharam, e quando sabemos explicá-lo, ganhamos com isso.

Ninguém sabe medir ao certo a dose de liberalismo, conservadorismo ou democracia-cristã do último governo PSD\CDS. Todos sabemos, no entanto, que fez o necessário na circunstância necessária. Foi chamado a servir e, não agradando a todos, serviu o país. Este diálogo nem sempre é fácil e é um processo constante da vida partidária. É isso que fazem os grandes partidos, e foi por isso que passei na minha experiência de escrita do programa eleitoral do CDS. Percebi que o lugar da liberdade, se quisermos que ela seja compreendida para além dos que já foram convencidos, é precisamente nesse diálogo.

E é por tudo isto que quando me perguntam sobre o suposto liberalismo do programa do CDS, ou se é ”um programa liberal”, prefiro responder que é um programa CDS. Porque um programa CDS é isto: um contrato reformista entre profissões, geografias e idades.

Sempre passou por aí, e foi sempre quando os liberais se predispuseram a participar na construção desse contrato que ambos conseguiram maior sucesso. Foi isto que permitiu uma PàF. E é isto que nos permitirá no futuro, mais uma vez, construir uma alternativa ao socialismo.

O lugar da Liberdade mora na construção dessa alternativa. Desse futuro.

Que nos interessa se Greta é doente?

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As teorias sobre os supostos problemas mentais de Greta Thunberg, às quais se acrescem sucessivas demonstrações de condescendência perante uma ”criança de 16 anos” – idade na qual muitos pensam melhor que, say, André Silva – pouco acrescentam à explicação do fenómeno que corre em veias mais fundas e que precisava apenas de uma desculpa para se manifestar: uma certa culpa burguesa, vazia e amarga, perante a abundância, um mundo em transformação e uma imensa incerteza relativamente ao futuro é agora preenchida por uma causa milenarista e apocalíptica para a qual todos podemos, mais uma vez, mover-nos enquanto espécie.

Um olhar de relance para as reivindicações destes ”meros” estudantes, organizados pelo mundo fora a sensibilizar os povos, dá-nos uma fotografia bem clara do que procuram estes jovens, que pouco tem que ver com as alterações climáticas.

Trata-se de recalibrar toda a sociedade em função do Estado e das suas prioridades – as destes ”meros” estudantes – com a agenda climática à cabeça, matando o comércio, forçando populações urbanas a tornar à agricultura, acabando com a mobilidade internacional e com todas as formas e sinais de abundância civilizacional alguma, montando, agora sim, uma economia de guerra voltada contra o Clima; esse é o significado do ”Green New Deal”, que mais não é do que uma repetição dos excessos autoritários da primeira metade do século passado, dos quais Roosevelt não é nenhum inocente.

A agenda está aí. Estes ”meros” estudantes ”autistas”, ”birrentos” e ”chorões” sabem muito bem aquilo que querem, e sabem muito bem o que significam os ”Estados de Emergência” enquanto atentados à liberdade que tendem a prolongar-se para bel-prazer de tiranos.

Tal como os seus rivais na extrema-direita, são mais um grupelho enfadado com a democracia liberal, com as liberdades económicas, cívicas e sociais e com a tremenda, horrenda ideia de que vivemos num mundo onde, cada vez mais, não podemos decretar pela lei a mudança ou o seu fim.

Eles estão-se nas tintas para o clima. O que há para fazer sobre o combate às alterações climáticas e pela mitigação dos seus efeitos não passa, como não pode passar, pelo fim da liberdade.

E se chegarmos à conclusão de que passa por aí, então deixará de valer a pena.

Uma Declaração de Voto Como Deve de Ser

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No dia em que os socialistas, os liberais europeus e os verdes se preparam para uma grande coligação a favor de um federalismo embriagado, só uma força assumidamente não-federalista pode merecer o voto da direita. Essa força é o CDS.

Poucos ainda se dão ao trabalho de assistir aos debates entre os putativos candidatos à Comissão Europeia. Confesso que não os acompanhei na íntegra, mas a conclusão a que cheguei não é feliz: Vestager, ”liberal”, insiste na sua sanha contra os gigantes digitais, Weber apresenta-se como um bípede incógnito e resta-nos Jan Zahradil, a única candidatura com um módico de bom senso sobre os próximos passos: Europa, sim, mas está na altura de travar a ameaça de um grande salto em frente. O ECR de Zahradil, estando amaldiçoado por uma forte ala do Lei e Justiça polaco, e, com o desaparecimento dos conservadores ingleses, está destinado ao fracasso; por outro lado, cabe ao PPE, enquanto maior família política do centro-direita Europeu, tomar uma posição em nome tanto dos Estados como da Europa. Nos dias que correm, percorrer a ténue linha entre o populismo primário e um cepticismo responsável é um exercício tragicamente complexo mas, mais do que nunca, necessário, sobretudo dentro do PPE: tem sido esse o discurso do CDS.

É necessário, sim, focarmo-nos na importância de completar o mercado interno, especialmente o digital, de intensificar o trabalho sobre os tratados comerciais, uma política de convergência justa – e sim, os fundos europeus importam, e importa que Portugal esteja a ser penalizado por incompetência socialista que corre o risco de ser recompensada.

Estas eleições servirão também para clarificar os posicionamentos das diferentes facções ideológicas dentro da União Europeia. Temos conhecido, até agora, uma incompreensível reacção do centro a uma onda de desagrado em relação à UE que se encontra cada vez mais institucionalizada. Ora, só se justificaria uma surpresa na eventualidade desta não surgirem a propósito de três crises tão graves: Euro, Migrações e Brexit. A insistência do centro – PPE, ALDE e S&D – em classificar de eurocéptico tudo o que saísse da sua esfera de consenso redundou num preço bem caro para a Europa, transformada agora numa verdadeira panela de pressão. As forças ”eurocépticas” ou eurocalmas, que não têm de ser nem são necessariamente populistas, precisam de um lugar à mesa. Aplicar o epípeto de céptico a Farage é uma ofensa aos cépticos. Farage não passa um nacional-populista, movimento que anda na moda e pouco deve à respeitável tradição céptica.

Não encontrei nenhum outro partido que fosse tão claro nestas prioridades; e quem não as encontrou ou foi porque não procurou ou, infelizmente, porque a comunicação social não quis saber. Foi o CDS que exigiu um pacto entre todas as forças políticas que levasse à Assembleia da República a criação de impostos europeus. Foi o único que disse claramente não ser federalista deste a primeira hora. Não anda a pedir uma expansão maciça da burocracia europeia – como faz a IL, ao pedir iniciativa legislativa  para o Parlamento Europeu. Defende a unanimidade em matéria fiscal, pois o seu fim só contribuiria para o clima de tensão já existente, para não falar do óbvio: quem fala de impostos são os parlamentos. Ponto.

Defende a Europa onde ela faz sentido, como na proteção civil, no mercado único, na política de fronteiras e nos tratados comerciais. É o que se precisa. E no fim do dia, precisamos de eleger – mesmo – eurodeputados que não estejam desertos de se juntar a Costa e Macron por um admirável mundo novo. Para mim, é motivo que baste.

 

A paz pobre

A incapacidade genética, pontuada apenas por momentos de crise aguda nas últimas décadas, que a nossa moderníssima democracia tem em levar a cabo um debate político digno  – a perturbação derradeira – sobre quaisquer dos sistemas públicos, privados ou assim-assim dos quais depende o nosso ténue equilíbrio é a tremenda vitória da nossa social-democracia. O PS apresentou-se a eleições em 2015 sem qualquer projecto para o país para além da execução mais rápida das mesmas promessas redistributivas do PSD\CDS. Em 2015, onde tínhamos acabado de sair de uma das tais ”crises agudas”, estava-se num momento estupendo, diria qualquer criatura racional, para discutir um modo de evitar uma outra crise semelhante ou, simplesmente, de evitar uma exposição mortal às flutuações da economia internacional.

No entanto, a racionalidade política, por vezes oposta à das criaturas, decidiu que todas as discussões, feitas a quente e em crise, tinham bastado para os portugueses. Como um jogador bêbedo e endividado, lançámo-nos, mais uma vez, na roleta assim que nos caiu um emprego para pagar as contas. Nem uma palavra, para além da tradicional verborreia dos ”consensos” sobre reforma alguma para o país. O país inteligente entende, aliás, que por ‘reforma’ deve-se ler ”acordo entre o PS e o PSD”, um bocejo escrito e inócuo que não tirará o sono a absolutamente ninguém, ou ninguém que importe.

Ah, a contestação ao ”governo das esquerdas”! Confrontados com as forças inorgânicas de algum sindicalismo não estruturado por uma dialéctica qualquer, vêem a sua paz perturbada por uns indivíduos de má fé que, se não tiverem cuidado, ainda se vêm com a direita no poder. Nesse dia infame, voltará a ”crispação”, o ”radicalismo” e a ”cegueira”. A paz não é um estado de coisas, mas uma coisa da metafísica. É o substrato do nosso Governo, com ou sem contestação. Ela subsiste, paira acima e dentro de nós enquanto formos governados pelos nossos melhores; a contestação que pulula por aí não passa de um ”excesso de expectativas”, uma infantilidade, portanto, por parte de quem zela demasiado pela boa nova do PS.

A paz não é uma época, espírito ou modo de vida. É o novo fundamento da nossa prosperidade. Desde os suspiros pela ”descrispação” do Sr. Presidente até ao consolo da CGTP, qualquer coisa tem servido para, em nome da ”paz” – do silêncio de quem, por infortúnio, não integrou as corporações nacionais – criar a ”convergência social” para ”virar a página da austeridade”, trazendo crescimento, qualidade de vida, investimento, emprego, enfim, trinta por uma linha, rumo a um futuro grandioso. Fora desta glória paira o populismo, o desavergonhamento, o radicalismo, a manipulação do povo e dos sindicatos, a má fé e o ressentimento. É o princípio segundo o qual qualquer acção política deve começar ao jantar e acabar ao pequeno-almoço. Silenciosa, sorrateira e superficial. E no dia em que a paz nos correr mal, sempre nos salvará o deputado Negrão: ”respeitem os sindicatos!” Respeitaremos, Sr. Deputado. Não se perturbe com convicções. Trate de nos apaziguar e entenda-se com o Dr. César. Afinal de contas, não basta ser.

 

Uma ideologia qualquer

Permitam-me, em jeito de discurso, cumprimentar os meus camaradas João Silva e Bernardo Blanco, com quem me estreio no Insurgente. Acompanho-os agora como acompanhei antes, no late Tempos Livres, um blog de liberais imberbes que ainda teve uma dose respeitável de likes e partilhas no Facebook – nada mau. Os imberbes, e falo agora sobre o João e o Bernardo, estão mais do que preparados para ser insurgentes graúdos, como se vê bem nas postas que linkei acima. Agora, neste momento Hello World, venho fazer valer a minha barba.

E não haverá melhor abertura para esta estreia do que afirmar que há alturas em que é melhor ficar calado. E há. Não é preciso ser governante, político, ”intelectual” ou um simples blogger para sentir a pulsão, que desconfio ter contornos existenciais em muitas cabeças, para se ter um forno industrial de opiniões prontas a sair sobre o assunto do dia. É na realidade uma tarefa simples, especialmente se tivermos inimigos bem identificados e se acharmos que algo de muito grave acontecerá – a queda do Ocidente, da UE, a vitória do marxismo cultural, do Islão, da islamofobia, do feminismo radical, do patriarcado ou do André Ventura – se o post não for publicado o mais depressa possível. É uma pulsão que se dá maioritariamente entre a saída do trabalho e o jantar, após breve consulta das notícias do dia, e, quem não estiver pronto a tomar uma posição heróica, peremptória e fundamental sobre seja que assunto for está, naturalmente, em apuros.

Os anos têm sido intensos em assunto e as disputas mais ou menos ideológicas à direita têm-se debruçado sobre temas que pouco dizem respeito à realidade indígena. Desde Brexit a Bolsonaro, alguma direita liberal ou conservadora tem-se obcecado sucessivamente em dar resposta a questões que não se colocam em Portugal; curiosamente, algumas clivagens revelam-se mais intensas quando se referem a assuntos externos. Quanto aos internos, reina uma rejeição epidérmica da Geringonça que parece ser suficiente para dar corpo a um discurso político. A minha humilde explicação para o fenómeno tem pouco de fenomenal: desde que o tema Sócrates foi delegado à justiça e o PSD\CDS se deixou traumatizar sob um programa de ajustamento que apoiava e abominava que, dentro e fora dos partidos, se está ainda a procurar dar corpo a um rumo novo. Dou o processo como natural, ainda que por vezes doloroso: o ciclo político nacional e internacional mudou bastante desde 2015 e ainda há muito por aprender sobre o que aí vem.

Continua a ser difícil, contudo, ser capaz de me pronunciar sobre todo o acto de governos aquém e além-mar sem antes exercer alguma reflexão sobre os meus valores. Ela levará, eventualmente, mais tempo, e a realidade dedica-se pouco a libertar-nos do incentivo a macaquear respostas feitas. As barreiras ideológicas que se esboçaram nas últimas décadas estão em movimento, e, ainda que muitos se limitem a ficar onde sempre estiveram, estes dão por si, pelo movimento do próprio chão, em pólos opostos. O desafio para quem entende, como este vosso amigo, que deverá ter um ou dois cêntimos a acrescentar sobre o que se passa por aí, não é trivial. As posições que tomamos também se formam a partir de aliados ou adversários cuja constância é assumida; a ideia de um ressurgimento da direita nacionalista por todo o mundo não era evidente há 10 anos atrás. Era relativamente fácil desenhar as ”linhas de falha” entre os blocos político-ideológicos, e o exercício de crítica e afirmação política era mais fácil. No entanto, surgem à direita e à esquerda novas divisões internas que, aparentemente, nos levam a ter de tomar decisões em cima da hora.

Sobre isto diria, à partida, que a ideia de que devemos sempre tomar posição sob pena de sermos vítimas de ‘fraqueza’ ou desânimo insustentável é uma gigantesca falácia. O recato é recomendável, principalmente quando alguns desejam interrompê-lo para construir narrativas baseadas na importação de fenómenos. Desde considerar o Observador como inequívoco bastião do populismo direitista até à divisão da direita nacional entre bolsonaristas e haddadistas, não faltaram desculpas para se desviar os debates nacionais para focos alienígenas. A culpa, como afirmei acima, prende-se com a falta de uma narrativa endógena à direita portuguesa. As consequências, contudo, estão à vista, e António Costa ameaça-nos com uma bela maioria absoluta em 2019.

Não é um dever ético alinhar em debates cujos termos estão enviesados à partida. De outra maneira, ficamos rendidos a todos os maioritarismos que a história nos empresta, sabendo o quão desastrosas podem ser as consequências destes. Para um liberal, o recato não será necessariamente irresponsável. Se lhe sobrar dever, será o de contestação dos termos do debate. E começará bem se contestar a sucessiva definição de todo o santo tema como ”civilizacional”. Não é só Graça Fonseca. Todos os debates sobre o clima internacional têm-se enquadrado como civilizacionais e absolutamente determinantes. Os dilemas estratégicos e ideológicos que a direita enfrenta não têm uma dimensão abaixo de metafísica: é tempo de grandes decisões, grandes protagonistas e grandes movimentos históricos.

A liberdade, no entanto, não foi feita para ser defendida à conta da providência de alguns. Já se inventaram, como se continuará a inventar, todos os artifícios possíveis para a limitar em seu nome. É uma ideia irresistível, mas não a devemos confundir com ”libertação”. A liberdade é um estado precioso, precário e normalmente temporário; um intervalo entre ”grandes decisões”, onde nos deixam tempo e espaço para nos dedicarmos às pequenas. Por isso, defendo os ultramontanos, os alienados, os incluídos, os cisgénero, os transgénero, os monogâmicos e os poligâmicos. É o único contexto onde podemos, confortavelmente, compreender cada um destes e outros grupos e, quando nos forem antipáticos, tolerá-los. Ela perde-se sim, quando estes se tornam em instrumentos políticos na cauda de movimentos profundos e ”transformadores”. Perde-se sim, no meio da jacobinice que sempre infectou a esquerda e agora alguma direita, sedenta de colocar as suas revisões da história à cabeça do Estado. Foi sim, em liberdade, que vimos o mundo crescer em prosperidade e diminuir em distância, que vimos modos de vida a multiplicar-se e a coexistir e vimos democracias surgirem e consolidar-se.

O sistema não é mau de todo não só porque permite uns e outros conviverem, mas porque me permite a mim duvidar sem medo de ser desleal às concepções favoritas da minha comunidade, do meu grupo ou do meu Estado. Defender e proteger esta liberdade da embriaguez da esquerda e de quem a imita também não basta. Ela não deixa de ser um projecto aspiracional e sempre promissor. É muito mais do que as caricaturas que se compram à esquerda e nalguns jornais arregimentados. É fonte de prosperidade e, surpresa, de ”civilização”.

Finalmente, devo dizer que desconfio de quem clama aceder à realidade apesar de todas as ideologias, sistemas de pensamento ou preconceitos de outra ordem qualquer. Desconfio de quem já entendeu isto tudo, de quem sabe para onde isto vai e de quem sabe como levar isto para lá. Naturalmente, desconfio de mim mesmo. Na dúvida, escolho a liberdade e deixo a irresponsabilidade para quem procura ”grandes decisões” – para quem procura, por fim, delegar num herói qualquer a persecução do Bem. Para isso serve uma ideologia qualquer. E a liberdade não paira aí.