Homicídio na 5ª Avenida

Donald Trump afirmou famosamente que “poderia estar no meio da 5ª Avenida e matar alguém, que não perderia eleitores”. Na passada sexta-feira pudemos constatar que o sentimento de impunidade e de irresponsabilidade que trespassa a Justiça e que anima os seus actores sustenta nestes a mesma maneira de pensar.

Depois do que sucedeu na sexta-feira passada, a leitura do despacho instrutório da Operação Marquês, não sobrou nenhum actor da Justiça que tivémos incólume.

Não sobreviveu o Ministério Público, consubstanciando-se a constatação de longa data de que este prepara más acusações, sustentadas com recurso a indícios de fraco valor probatório, adquiridos muitas vezes em violação e desrespeito consciente dos direitos dos arguidos, e aparentemente não esclarecido de que a sua maneira de proceder inquina à partida os processos em que se envolve. Um Ministério Público que se eterniza nos inquéritos, que se considera superior a prazos estabelecidos e cuja actuação, que supostamente é vocacionada para o “apuramento” da Verdade – o que lhe vale aliás a prerrogativa de se sentar na bancada do juiz em tribunal – se pauta mais por uma acção de bully virada para uma vocação adversarial, sem que para tal se submeta ao conjunto de regras que dessa maneira lhe deveria ser imposto. Urge esclarecer qual é afinal o carácter e a vocação do Ministério Público: se é a de um inquisidor virado para o apuramento da verdade, afinal aquele papel que supostamente deveria ter de acordo com o ordenamento português, ou se quer ter uma vocação adversarial – que faria mais sentido tendo em conta a sua actuação – e quais serão as novas regras a que se terá que submeter por esse facto.

Não sobreviveu o juiz de instrução durante o inquérito. Este, supostamente o provedor do arguido durante o inquérito, parece ter sido mais um garante de cobertura às acções do MP do que propriamente alguém preocupado com o cumprimento das regras do Código de Processo Penal (CPP) e com os meios que foram utilizados para os fins da aquisição de prova. Importa se calhar pensar nos efeitos que a proximidade entre juízes de instrução e procuradores tem sobre a acção destes, a começar pela proximidade física.

Essa proximidade física é um sinal de mais uma das vítimas do processo, o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), vulgo TICão. A existência de um tribunal de instrução vocacionada para um determinado conjunto de processos, caricaturalmente titulado por dois juízes de instrução, é um absurdo violador do princípio do juiz natural – com os seus brutalmente aleatórios sorteios entre duas pessoas – com os qual toda a estrutura da magistratura judicial parece conviver estranhamente bem. Toda não, já que os próprios juízes em causa parecem estar desavindos e particularmente empenhados em tomar iniciativas um contra o outro, nomeadamente através da sua participação nos processos.

Também não sobreviveu o juiz de Instrução Ivo Rosa. Não sobreviveu porque em primeiro lugar pareceu não compreender o papel que lhe é reservado pelo processo penal e não soube ocupar o seu devido lugar. A instrução, segundo o CPP, pressupõe uma análise da acusação numa fase em que a mesma se encontra sustentada por indícios – não por provas – , sendo que a produção destas últimas está reservada (a menos de excepções bem determinadas) para a audiência caso os arguidos sejam pronunciados. A instrução preocupa-se, ainda de acordo com o CPP, essencialmente em fazer um juízo probabilístico sobre se os indícios apurados poderão vir a redundar numa condenação em tribunal. O CPP nem sequer pressupõe que os indícios que são apresentados à instrução sejam completos, e tolera até um certo grau de erros e de vícios, sujeitos tão somente ao risco de não serem considerados suficientes para a pronúncia

Ora o Juiz de Instrução Ivo Rosa aparentemente entreteve-se durante os dois anos em que esteve a conduzir a instrução do processo e durante grande parte do próprio despacho de instrução a dissertar e a fazer uma análise substantiva da prova. Por alguma razão que com certeza lhe assiste ocupou-se a fazer uma análise dos indícios apresentados tal como se de prova se tratassem, julgando essa prova praticamente como se estivesse a analisar que factos é que eram segundo ele dados como provados ou não-provados. Para prova que teria que ser pela Lei feita novamente em audiência, e aí sim os factos dados como provados ou não e aferida a culpa dos arguidos, o juiz Ivo Rosa ocupou-se pelas suas razões a fazer um autêntico “pré-julgamento”, parecendo querer deixar somente para os seu colegas que viessem a julgar posteriormente o caso (por redundância) o tarefa de lavrarem a sentença. Entretanto, ocupou-se também durante o tempo em que demorou a instrução a alimentar as suas picardias pessoais com o seu colega de TCIC (como vimos, um de dois) e em aplicar na avaliação dos indícios, nomeadamente em termos de admissibilidade, critérios que revogavam decisões tomadas por tribunais superiores ou que já foram em situações passadas revertidos por estes em várias circunstâncias.

O que é comum a todos estes agentes? A total irresponsabilidade e impunidade em relação à sua actuação no processo no que toca às obrigações e ao papel que lhes é imputado pelo CPP. Pela legislação vigente, todos eles são inimputáveis pela qualidade e adequação das suas decisões e pela condução do processo, quer cível, quer disciplinarmente ou muito menos criminalmente. A latitude da sua intervenção é completa, sem nenhum meio que permita aos visados activá-los judicialmente pela sua conduta e pelos resultados desta. O Juiz Ivo Rosa e os procuradores do MP podem dormir com o descanso que somente está disponível aos que estão livres de qualquer responsabilidade no exercício da sua profissão.

Todos este processo e o seu presente estado obrigam inevitavelmente a repensar todo o sistema de Justiça. Obrigam a pensar sobre se faz algum sentido manter a instrução de processos quando os pressupostos que presidiram à sua criação já não parecem estar minimamente em vigor ou ser a razão para que existe. A pensar sobre se não faz sentido considerar prova a prova (nomeadamente a testemunhal) que é feita durante a investigação e o inquérito que é feita perante ou com a participação do juiz de instrução que acompanha o processo. Sobre quais são os tempos e os recursos disponíveis para os diversos incidentes processuais que podem ser levantados.

Estes problemas não se resolvem com petições absurdas como a que circula em relação ao juiz Ivo Rosa. Esse será mais um sintoma do que a solução. Um sintoma de que ou o estado faz por rever a Justiça de forma a torna-la entendível, eficiente e justa aos olhos do cidadão médio, ou corre-se seriamente o risco de que este comece a considerar mais “justa” a que é feita pelas suas próprias mãos e pelo entendimento da turba do que a que é outorgada ao estado para fazer em seu nome.

A Deus o que é de Deus

Na nossa memória colectiva não faltam exemplos, mesmo que remetendo-nos somente aos tempos mais próximos, do papel importante que a Igreja Católica desempenhou em momentos cruciais da Humanidade, quer como guia espiritual dos seus fiéis e baluarte Ético, quer por ter arregaçado as mangas e desempenhado em momentos chave as tarefas importantes que se impunham.

Não faltam exemplos quer na pandemia da gripe espanhola, ou na participação no esforço de guerra no apoio a doentes nas duas Grandes Guerras do século XX. E é essa memória que faz com que a Igreja Católica surja como uma das principais vítimas da presente pandemia. Para confrontar com essas memórias temos muito pouco, quer ao nível interno quer ao nível internacional mais alto da organização, o que poderá ter contribuído para o alheamento dos seus fiéis e para uma imagem pública de irrelevância.

Onde está a Igreja Católica?

Destas várias semanas de pandemia sobram para exemplo as imagens do um Papa Francisco em exibição sozinho em pleno Domingo de Páscoa, com ar meio perdido e de quem não sabe muito bem o que há-de dizer. Sobram a postura dócil e complacente de uma organização que viu impor-se-lhe e aos seus fiéis a proibição dos seus principais ritos: missas, celebrações pascais, casamentos e principalmente funerais foram proscritos do seu cerimonial religioso e participação sem uma qualquer reacção ou questionamento, sem qualquer mostra de indignação ou de dúvida e confronto em relação às decisões tomadas.

Enquanto isso, depois de ver canceladas na vigência do Estado de Emergência as cerimónias públicas pascais, faz-se representar ao mais alto nível pelo Cardeal Patriarca e líder da Conferência Episcopal Portuguesa nas pitorescas cerimónias passadas do 25 de Abril. Assiste tranquilamente, e obedece submissamente à proibição da participação de peregrinos nas cerimónias do 13 de Maio, sem criticar a inconstitucionalidade e ilegitimidade de o governo impedir ajuntamentos populares fora de uma proclamação de Estado de Emergência, enquanto assiste em silêncio a outras peregrinações – tuteladas ao mais alto nível – no dia primeiro de Maio.

Enquanto isso, coloca dioceses em lay off, por “falta de receitas”, estendendo-o aos próprios elementos do clero.

O que sobra da imagem pública da Igreja Católica deste período de pandemia? Da parte que se refere ao que ela própria acha em relação ao que está a suceder e aos seus contornos, da mensagem Ética que quer transmitir aos seus fiéis em relação aos valores em confronto e colocados em cima da mesa por esta questão? Um rotundo e estrondoso vazio.

O que sobra então? Uma organização com uma imagem pública depauperada, remetida de forma auto-infligida ao papel de uma mera IPSS dócil, bem comportada e complacente.

Hipocrisia é…

Secretário de Estado dos EUA é o mais alto representante do poder executivo norte-americano a visitar a cidade devastada pela bomba atómica. Ministros dos Negócios Estrangeiros do G7 reforçaram a importância de um mundo livre de armas nucleares.

… ser até ao presente o único utilizador de armas nucleares com fins militares – concretamente para submeter um adversário já vencido – fazer-se acompanhar do representante do país vitimado no local do memorial de uma das duas detonações, e simultaneamente fazer-se acompanhar do restante G7, que integra mais duas potências nucleares (a França e o Reino Unido) e mais dois membros (Alemanha e Itália) da partilha de armas nucleares no âmbito da NATO (todos naturalmente signatários do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares), enquanto vêm todos em coro apelar ao desarmamento e queixar-se das armas nucleares dos outros.

Um triste espectáculo

Estabelecida de uma vez para sempre a equívoca legitimidade de um governo e fragilidade do acordo entre o PS e o radicalismo, era precisa uma oposição séria. Ora chamar “usurpador”, “golpista” e “fraudulento” a Costa não é uma oposição séria. Nem propor uma revisão constitucional para repetir eleições imediata ou indefinidamente, como Bruxelas costuma fazer. Nem organizar reuniões com “reputados” constitucionalistas, politólogos, personalidades sem descrição exacta e um triste séquito partidário. Nem, sobretudo, permitir que lunáticos da seita continuem a destemperar na televisão e nos jornais, coisa que só beneficia António Costa e o autoriza a tomar, por contraste, o arzinho de estadista responsável e tranquilo, coisa que evidentemente impressiona o povo e o solidifica a ele.

Vasco Pulido Valente, no Público.

Um final de mandato com dignidade

No seguimento da sucessão de eventos recentes que bem se conhece, resta ao presidente da república uma margem relativamente estreita de cenários ao seu alcance, em torno daquela que muito provavelmente vai ser a última decisão relevante da sua carreira política.

No desfecho de um primeiro cenário, após mais ou menos faits divers cerimoniais em torno de uma eventual exigência (e uma recusa mais que provável, de forma mais ou ou menos declarada) de garantias adicionais ao partido socialista e apoiantes do seu governo, ficará para a história remetido ao legado de ser o presidente da republica que teve que engolir o grande sapo que já demonstrou ser para si o dar posse a um governo apoiado pela extrema esquerda parlamentar, condenado-se assim a conviver nos anos vindouros com a azia irreparável que herdará do facto.
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