Todos os partidos tentam ler os dados da maneira mais favorável aos seus argumentos. Com o PS de Sócrates, a manipulação foi levada a uma espécie de paroxismo. Com efeito, não se tratava já de argumentos, mas de «narrativas», como Sócrates, o mentiroso por antonomásia, gostava de dizer: o que ele dizia não eram aldrabices, eram as suas «narrativas», diferentes das «narrativas» dos seus adversários, que por seu turno não deveriam ser confundidas com verdades.
Neste quadro mental, a verdade é que é uma mentira. De facto, não há verdades nem mentiras. Há apenas narrativas que, porém, só têm uma hipótese de funcionar: é a de haver otários que acreditem que há verdades e mentiras, para poderem tomar uma narrativa pela verdade. Este bacanal de relativismo acaba mal, como se vê, não sem antes revelar toda a má-fé que o anima.
Vem tudo isto a propósito de uma das «narrativas» mais propaladas dos últimos anos: a austeridade aumentou muito a desigualdade.
O que eu penso ou deixo de pensar sobre a desigualdade, estando subentendido que nos estamos a referir à desigualdade na distribuição de rendimentos, deveria ser indiferente para o que se segue. Para que não sobrem equívocos, porém, e até mesmo porque não é excessivamente difícil de enunciar, aqui fica um primeiro princípio: nada tenho contra a desigualdade na distribuição de rendimentos, se ela corresponder à remuneração dos factores nas transações de mercado, isto é, se resultar da troca livremente consentida entre as partes, e tenho tudo, se resultar da extorsão ou de qualquer forma de apropriação ilícita, como é o caso da corrupção nos cargos públicos, bem ilustrado por um célebre primeiro-ministro do Partido Socialista, que aguarda em liberdade vigiada a formação da acusação. Era mais simples dizer que aquilo a que me oponho é à extorsão e a qualquer forma de apropriação ilícita, sendo óbvio que a sua prática institucionalizada tem como subproduto aquilo a que se chama desigualdade na distribuição dos rendimentos.
Mas a questão aqui é mesmo, deixando de lado a natureza da desigualdade, a de tentar saber se a «narrativa» que afirma que ela aumentou muito nos últimos anos, em resultado da austeridade, é verdadeira, como será levado a crer quem leia e ouça apenas as notícias e o que a esquerda toda em coro estentoricamente proclama, ou simplesmente mais uma «narrativa» dirigida a otários.
Googlando apanha-se logo uma orgia de notícias de jornalistas ultrajados com o aumento das desigualdades. Algumas são de antologia. Esta, por exemplo.

É do Diário de Notícias, do dia 25 de maio de 2015. O engraçado que é, uma notícia cujo título é imediatamente negado na entrada (lead).
Ou esta, com uma pedante qualquer no Expresso a dar lições de moral e estatística ao então primeiro-ministro Pedro Passos Coelhos, com direito a epígrafe erudita e tudo.

Trouxe ou não trouxe? A resposta não é nada fácil, ao contrário do que a veemência de grande parte dos jornalistas e da totalidade das esquerdas faria supor.
Os dados não são inequívocos. Há dois tipos de métricas comumente usadas para tratar a desigualdade na distribuição dos rendimentos. O primeiro tipo envolve a comparação entre extremos. Por exemplo: pega-se na quantidade total de rendimento anual dos 20% mais ricos e divide-se pela quantidade total de rendimento anual dos 20% mais pobres. O quociente do primeiro total sobre o segundo é uma medida padrão da desigualdade. Se é muito elevado, há grande desigualdade. Se aumenta, aumenta a desigualdade. Em Portugal é maior que a média europeia (5,2), mas está muito longe de ser o mais elevado. Além disso, aumentou em 2010, 2011, 2012 e 2013, tendo caído já em 2014, e previsivelmente terá caído também em 2015.

Aqui impõe-se um esclarecimento. Os dados são do INE. O INE tem o cuidado de informar em nota na página de onde eles são extraídos:
Os dados referentes ao ano n são recolhidos pelo ICOR realizado em n+1.
Já o Eurostat usa os dados do INE, mas refere-os ao ano da recolha de dados, isto é, a um ano sempre à frente do que está nas tabelas do INE. Naturalmente que esta diferença pode induzir erros de análise, tratando-se de uma série de dados no tempo. A série que reporto é a correta, do INE.
Em todo o caso, sim, os dados parecem sugerir que a desigualdade na distribuição de rendimentos aumentou pelo menos em parte dos anos de austeridade (2011, 2012,2013), embora tenha também aumentado no ano de orgia financeira de 2010.
Sucede que este tipo de métrica enferma de um defeito: generaliza para a totalidade da população a partir de uma observação que na realidade respeita apenas aos extremos dessa população, isto é, à relação entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres.
E porque esta medida está afetada pelos extremos, recorre-se quase sempre a uma métrica complementar, mais rigorosa, embora menos intuitiva: o Coeficiente de Gini.
O cálculo do Coeficiente de Gini mede a relação entre as todas as quotas acumuladas de população ordenada pela escala crescente do rendimento e as respetivos quotas de rendimento.
Quando se está a calcular o Coeficiente de Gini fica a saber-se, por exemplo, que percentagem de todo o rendimento vai para os 1% mais pobres, para os 10% mais pobres, para os 20% do meio da tabela ou para os 1% mais ricos; que percentagem de rendimento vai para qualquer segmento da população ordenada. Todos esses valores são dispostos numa curva – a curva de Lorenz – com esta forma.

Na horizontal, temos dispostas quotas acumuladas de população, que está, como se disse, toda ordenada segundo a escala crescente do rendimento: assim as percentagens devem ser lidas como os 0% mais pobres da população, os 25% mais pobres, os 50% de menores rendimentos, etc. Na vertical, está a respetiva percentagem do rendimento total.
No país da linha azul, reina a mais completa igualdade. Os 1% iniciais da população ordenada ficam com 1% do rendimento, os primeiros 2%, os primeiros 3%, os primeiros 4%, etc., ficam com idêntica porção de rendimento. Igualdade absoluta. É uma ideia a que só consigo associar sítios desconfortáveis para viver, como um cemitério, por exemplo.
Na linha um pouco mais abaixo, já não é bem assim. Enquanto por definição no país da igualdade absoluta 50% da população fica com 50% do rendimento, na linha laranja os primeiros 50% da população ordenada só recebem 26%. Na linha verde, a desigualdade rendimentos começa a ser gritante: os primeiros 50% da população, ou os 50% menos ricos, só recebem 7% do rendimento.
Mas o que vem a ser o misterioso Coeficiente de Gini? É um número que sintetiza toda a informação contida naquelas curvas. O número é igual à área que fica a baixo da reta da igualdade, até à curva que se quer medir, a dividir pela totalidade da área abaixo da reta da igualdade.
Parece muito artificioso, mas não é. Começa até a ser intuitivo, a partir daqui. O quociente que se obtém para a linha laranja é evidentemente menor do que o quociente que se obtém para a linha verde. Quanto mais distante for a linha da reta da igualdade maior será o quociente, quer dizer, o Coeficiente de Gini. Quando no extremo oposto da igualdade o rendimento vai todo para um só indivíduo e o resto da população tem conjuntamente um rendimento nulo, atingindo-se o máximo do Coeficiente de Gini, o valor só pode ser igual a 1, pois as duas áreas são rigorosamente idênticas. No ponto de partida da igualdade absoluta o valor só pode ser igual a zero, pois a área do numerador é igual a zero.
O país da linha laranja tem um Coeficiente de Gini igual a 0,392…, ou 39,2, se o exprimirmos numa escala de 0 a 100 em vez de 0 a 1. É um valor mais elevado mas ainda assim da ordem do português. De facto, é um valor bastante próximo do português em 2003. O país da linha verde tem um valor de 66,2. Um pouco superior, não muito mais, ao valor estimado para Angola, a África do Sul ou o Botswana.
Esta forma engenhosa de medir a distribuição do rendimento é mais exata do que a primeira, visto que sintetiza informação sobre o rendimento de toda a população, e não apenas de sub-grupos nos extremos, mas muito difícil de comunicar. Eu tive de me socorrer de 9 parágrafos e um diagrama. Muito longe da simplicidade da primeira métrica, que admite paráfrases curtas como: os 20% mais ricos recebem seis vezes mais do que os 20% mais pobres. E, porém, é uma medida mais completa e mais precisa.

Se recorrermos a ela, não, no final do ajustamento, no final do período de austeridade Portugal era um país mais igual do que antes.