A situação da Catalunha tem levado algumas pessoas a invocar o “direito à autodeterminação dos povos” para justificar a pretensão Catalã. Não sendo especialista no tema (e há, em Portugal, quem saiba muito disto, como é caso do atual ministro da defesa) gostava de explicar porque razão me parece que, neste momento, a pretensão da Catalunha não cabe no “direito à autodeterminação dos povos” tal como este vem sendo desenvolvido e discutido no âmbito do direito internacional. Sumariando: não tenho dúvidas de que este direito se desenvolveu de forma a abranger cada vez mais fenómenos “grupais” ou “comunitários” no conceito de “povo”. Ainda assim, o grau último de autodeterminação (a independência) é primariamente recusado por ser incompatível com a própria ideia de Estado como unidade territorial e política. A única situação em que se admite que uma parcela da população de um Estado unilateralmente se declare independente é se existir uma violação dos direitos básicos dessa parcela que dite uma impossibilidade de convivência entre os grupos que compõem o Estado.
A controvérsia em torno deste direito começa logo no que diz respeito à sua origem, havendo quem atribua a sua paternidade ao Presidente Wilson ou a Lenine. Nos dois casos, este instituto foi usado como instrumento de retórica política: por Lénine, em 1916, para quem a autodeterminação constituía um instrumento revolucionário suscetível de contribuir para a libertação dos povos oprimidos e consequente realização do socialismo no mundo; Woodrow Wilson, no período que se seguiu à primeira guerra mundial, entendia que a reestruturação dos Estados europeus deveria corresponder ao desejo das nações e que a livre disposição dos povos coloniais deveria concretizar-se no respeito pelos interesses dos povos colonizadores ocidentais. Neste sentido, Wilson reafirmava o princípio das nacionalidades, vigente no século XIX, conjugado com uma conceção democrática e com a ideia de livre escolha do governo pelo povo.
Foi sob a égide da ONU, designadamente em sucessivas resoluções da Assembleia Geral, que este direito adquiriu um relevo especial, associado a uma lógica de libertação dos povos sujeitos a dominação colonial e ocupação militar estrangeira. É o caso, por exemplo, das Resoluções 1514 (XV) e da Resolução n.º 2625 (XXV).
As dificuldades em apreciar e comprovar, na prática, a existência de um direito à autodeterminação de um povo nascem, sobretudo, do entendimento acerca de quem é o seu titular e de um comprovado alargamento da sua expressão a situações que transcendem os processos de descolonização. Isto é inequívoco: cada vez mais se discutem pretensões internas (ao Estado) sob a égide da “autodeterminação dos povos”. Noto que esta tendência é paradoxal, porque o “povo” é um dos elementos que constituem o ADN do modelo estadual enquanto forma de organização política. Esse alargamento estendeu-se, desde logo, aos casos em que se discutem os direitos das “minorias” e dos “povos indígenas”. Além destas situações, que por si refletem a dificuldade em precisar o conceito de “povo” enunciado neste direito, a elasticidade da autodeterminação incluiria também casos de vontade coletiva de um grupo se separar de uma entidade política estadual. Estas situações, comummente designadas de “direito de secessão”, implicam a criação de um novo Estado com base na autonomização de um território e de uma soberania, acompanhada de uma pretensão de reconhecimento internacional. Não há qualquer paralelismo com o domínio colonial ou com uma ocupação militar estrangeira, nem uma pretensão de incorporação ou associação a um outro Estado, nem mesmo um movimento rebelde para derrubar ou substituir o governo do Estado – o que se pretende é pura e simplesmente a independência impulsionada por uma vontade coletiva.
No que diz respeito às “minorias” e aos “povos indígenas” quando se invoca o direito à autodeterminação, o que se discute é, sobretudo, o reconhecimento de um direito de autonomia e não tanto um problema de independência, i. é, saber se os grupos no interior do Estado, em todas as circunstâncias ou pelo menos segundo certos pressupostos, têm o direito a reclamar, pela sua caraterística comunitária, um direito coletivo a formas de autonomia no interior do Estado, como meio particular de realização do direito de autodeterminação interna. Nestes casos, trata-se apenas de um problema de autonomia ou de governo próprio dentro de um Estado, mobilizando questões de representatividade e participação de comunidades dentro do Estado.
Caso diferente é a hipótese do direito de secessão que, por definição, implica a constituição de um novo Estado. Apesar do alargamento das discussões sobre a autodeterminação dos povos àquelas situações, há um consenso em torno da inexistência, no DIP, de um “reconhecimento primário” do direito de secessão. Esta conclusão é suportada pela Resolução n.º 2625 que previne derivas secessionistas e o desmembramento do Estado, estabelecendo uma cláusula de salvaguarda da unidade territorial e da segurança dos Estados. A secessão unilateral (sem previsão constitucional, negociação ou contra o governo central), que equivale a um processo de desmembramento unilateral do Estado, é uma solução apenas para certos casos que dependem da verificação de algumas condições: só é viável (inevitável) quando já não for possível a convivência entre o grupo secessionista e o resto das pessoas que compõem o Estado, i. é, a sua participação naquela comunidade política comum deixa de ser possível. Será sempre assim quando ocorra uma violação grave de direitos humanos que ameace a existência ou a identidade do grupo secessionista. A secessão emerge como hipótese apenas em casos de rutura política e social, um último recurso, para salvaguardar direitos humanos e preservar a paz. A contrario, pode-se dizer que o Estado tem o dever de tudo fazer para propiciar a plena integração, participação e representação do grupo, sob pena de legitimar a invocação do direito de secessão. Numa situação de normalidade, enquanto o Estado cumprir as suas obrigações, o DIP não reconhece qualquer direito de secessão unilateral.
Seja como for, por um lado a tendência de evolução da “comunidade internacional”, sobretudo na Europa, aponta para uma convivência de comunidades e uma sobreposição de espaços, de jurisdições e de soberanias que será necessária e inevitável na sociedade contemporânea. A União Europeia é disso um reflexo. Por outro lado – e este parece-me um argumento fundamental – o valor da estabilidade das fronteiras e a integridade territorial dos Estados são factores essenciais da ordem internacional, da sua preservação e segurança, o que dificilmente é compatível com uma “leitura plebiscitária” do direito de secessão e de autodeterminação, ancorada na vontade de um grupo ou dos residentes num território e independente da vontade dos cidadãos do território estadual no seu todo. Nesta perspetiva, de preservação da paz e ordem internacional, e tendo em conta que o Estado ainda ocupa no palco internacional um lugar central, a sua constituição não deverá depender apenas da manifestação de vontade de uma comunidade, da decisão de um grupo de pessoas que poderá, no limite, ser artificialmente criada e utilizada segundo uma lógica oportunista de combate ao governo central. Reconhecer isto desencadearia pretensões secessionistas ad absurdum, um processo que dificilmente deixara intactos muitos dos Estados hoje existentes, podendo o resultado ser caótico. Numa perspetiva mais prática do que propriamente jurídica, os riscos “sistémicos” destas pretensões não devem ser ignorados.
Isto dito, a Catalunha não se enquadra em nenhum dos casos em que tipicamente se discute o direito à autodeterminação dos povos. Pode, ainda assim, dar-se o caso de ser aplicável o direito de secessão numa situação sem retorno ou irreversível, como disse, a partir do momento em que não for possível o convívio pacífico entre os Catalães e o resto da Espanha. Mas não parece ser esse o rumo das coisas.