Autor: Filipe Faria
Da dissidência…
À medida que a situação em Portugal se vai agravando, mais as emoções tomam controlo em detrimento da lógica. Quem segue as opiniões em blogues, facebook e imprensa, já percebeu que há genericamente 2 facções:
1) A facção anti-austeridade/anti-troika/pró-default que é normalmente tomada por pessoas com pendor ideológico de esquerda, geralmente desinformadas em relação à situação política e que se querem livrar da austeridade pela via milagreira.
2) A facção pró-manifesto da troika, a favor do pagamento integral da dívida pública e a favor de um corte radical na despesa do Estado para que ganhemos a confiança dos investidores e possamos “regressar” aos mercados (de endividamento). Esta posição é vista como de direita.
Agora que os protestos e manifestações anti-troika estão a aumentar e irão continuar a aumentar, a tendência é para a facção pró-troika não só reforçar a sua defesa como também para aceitar acriticamente a sua própria posição apenas por oposição. Conhecendo a tendência humana tribal, isto não é surpreendente. O que me parece claro é que ambos os lados têm fragilidades argumentativas notórias.
A posição anti-troika é acusada de ser irresponsável e incoerente. Ou seja, querer que o Estado continue a gastar até ao infinito verbas que não tem e que já não consegue pedir emprestado é claramente surreal. Ademais, o facto de os mesmos que têm esta posição terem passado as últimas décadas a pedir mais despesa pública (e consequentemente mais endividamento) faz com que, agora que querem repudiar a dívida contraída, pareçam simples caloteiros irresponsáveis. Em suma, parece que ainda não saíram da infância cognitiva.
Porém, os que defendem a troika como forma de reduzir a despesa têm igualmente telhados de vidros. Alegam que a troika é necessária porque caso contrário o Estado entraria em bancarrota e deixaria de ter dinheiro para pagar os seus deveres. Isto, claro, não é verdade, ou pelo menos não é a verdade completa. O que aconteceria é que o Estado, não tendo já possibilidades de se endividar, repudiaria a dívida ou grande parte dela e para tal teria de sair do euro, desvalorizando a moeda como forma de pagar os seus encargos remanescentes. Não me parece que quem quer reduzir a despesa deva estar preocupado com esta solução, principalmente quando boa parte da despesa do Estado se prende com pagamentos de juros da dívida pública e a sua amortização.
Parece-me assim que a preocupação prende-se com a desvalorização da moeda. Contudo, pelo menos de um ponto de vista ético, não há uma grande diferença entre a desvalorização do escudo ou a actual desvalorização do euro pelo Banco Central Europeu. Sendo a principal diferença que quando o euro desvaloriza o custo recai sobre todos os países da zona euro (principalmente sobre os países responsáveis que não precisam de inflação) e no caso do escudo os custos seriam internalizados pela nação portuguesa. Por outras palavras, quem prefere a inevitável desvalorização do euro à do escudo o que está a defender é que os outros devem pagar as nossas contas ad aeternum. Esta realidade deveria afastar todos os que prezam valores como a responsabilidade, independência e autonomia.
Os que defendem a troika embarcaram nesta ilusão colectiva que perde o seu tempo a discutir se vamos ter um défice anual de 5.5% ou de 6.5%. Isto claro, ignora que mesmo que fossem aprovados limites ao défice, dificilmente iríamos ter superavits. Nunca tivemos um único superavit desde o 25 de Abril; como tal, o que é que faz os defensores da troika pensar que se no melhor dos cenários voltarmos aos mercados de endividamento (apenas porque o BCE compra a nossa dívida com dinheiro europeu), começamos a ter superavits para reduzir uma dívida pública que já ronda os 110% do PIB? Isto é tão provável como amanhã eu ganhar a lotaria; principalmente depois da década perdida do euro, onde Portugal apenas conseguiu um crescimento económico anémico e onde a generalidade da riqueza que atingiu deveu-se ao endividamento. Mesmo este governo que é obrigado a cortar na despesa, não sabe como nem onde cortar, preferindo a asfixia fiscal; e enquanto houver dinheiro da troika, continuará a não saber.
Outra dissonância argumentativa que se encontra nos defensores da troika e do pagamento integral da dívida é que muitos deles dizem-se eurocépticos ou contra a centralização europeia. Porém, ao defenderem a permanência no euro (que é um instrumento de centralização política), ao defenderem a entrega dos comandos do país ao supranacionalismo por um período que pode, em teoria, demorar décadas infindáveis, estão a aprovar de forma latente essa mesma centralização e formação do super Estado europeu. Assim, consciente ou não, a defesa do euro e da troika é uma forma encapotada de apoio à centralização de Bruxelas. Ao menos os euro-entusiastas assumidos como Paulo Rangel são coerentes quando defendem a troika.
Ademais, apesar dos comprovados maus resultados, alegar que podemos continuar no euro e que basta sacudirmos o socialismo do país para sermos tão produtivos como outros países europeus é um perfeito desconhecimento do impacto das culturas nacionais na economia. Quem tem experiência de morar na Alemanha ou Inglaterra sabe que Portugal não é mais socialista que o país médio europeu (cujos Estados gastam todos certa de 50% do PIB). Alguém acredita que se Portugal tivesse um governo composto por alemães tornar-se-ia tão produtivo como a Alemanha? Claro que não; mas isso não é necessariamente mau, porque as culturas, identidades e nações não se medem pelo número do PIB anual. O valor de algo não começa nem acaba no materialismo; e o bem estar que sentimos numa cultura e num determinado estilo de vida colectivo não se mede simplesmente em números.
Qual é o valor da autonomia de uma nação? Por quanto é que se vende a entidades externas? “O valor está na cabeça dos indivíduos” dizem os economistas da escola austríaca; e é por isso que os argumentos que lemos regularmente contra o reaver da autonomia portuguesa (e.g. se sairmos do euro o PIB decresce por “insira o número do modelo XPTO” e desvalorizaria por “insira o número do modelo XPTO2”) não respondem nunca à questão: por quanto se vende a autonomia nacional?
Tal como inúmeros economistas internacionais e nacionais revelam, a saída do euro e consequente desvalorização dependerá do grau de repudiação de dívida e dos acordos conseguidos. Apesar de existirem sempre riscos políticos , não tem de ser qualquer catástrofe e é certamente melhor do que escravizar a população durante os próximos 20 anos para pagar uma dívida impagável ou esperar que os alemães e demais europeus paguem essa dívida em troca de nos tornarmos uma colónia desprovida de valor identitário intrínseco. Tal como defendi há algum tempo no meu texto “A Ética do Default”, não considero que exista qualquer ética nesta austeridade forçada da população perante a actual dívida pública.
Desta forma, a minha posição é de dissidência perante estas duas posições dominantes no debate político actual. Esta posição poderá ser definida tal como Daniel Hannan a definiu: “Default, decouple and devalue” (renegociação de dívida, saída do euro e inevitável desvalorização).
Como a possibilidade do regresso ao padrão ouro é para já uma utopia política, Portugal precisa de uma moeda própria no mercado de câmbio capaz de representar a sua produção. Só assim, e não no euro desajustado, a nação poderá ultrapassar os actuais problemas respeitando a sua autonomia e cultura.
A saída da actual situação problemática envolve assim soluções que são defendidas à direita (redução da despesa) mas também algumas que são defendidas à esquerda (“default”). Ademais, o argumento de que basta desvalorizar o escudo para não fazer reformas não está correcto, pois havendo competição de câmbio monetário ninguém o pode fazer unilateralmente e sem quaisquer reformas sem destruir a sua economia. A diferença é que as reformas podem-se fazer sem choques sociais tremendos e acima de tudo podem-se fazer com crescimento económico (coisa que não existe na actual situação).
Não espero que amanhã aqueles que andam a defender a troika e o governo passem a defender a minha posição de dissidência, mas considero que a prazo esta posição se tornará inevitável e terá cada vez mais apoiantes. Até lá, pregarei com pouca, mas em boa companhia…
A União Europeia e o Fantasma da Guerra
Desde os seu primórdios ideológicos que a União Europeia teve como motivo principal acabar com a guerra. Fez-se com o espectro da guerra e diz viver para acabar com ela. Paradoxalmente, precisa deste mesmo espectro para sobreviver da mesma forma que Woody Allen parece precisar de Nova Iorque para fazer filmes memoráveis (ok, admito que o “Match Point” Londrino andou muito perto da excelência Nova Iorquina).
Tal como Robert Higgs mostrou no seu livro “Crisis and Leviathan”, o crescimento do poder do Estado e respectivas centralizações fazem-se sempre através da crise. Por outras palavras, o Estado não deixa uma boa crise passar sem se expandir e centralizar. Se tal não acontecer, desperdiçou uma boa oportunidade para o fazer, pois o desespero costuma convencer as pessoas a aceitarem o que nunca aceitariam em condições normais. Para os que almejam os Estados Unidos da Europa, esta crise é mais uma oportunidade para atingir o federalismo europeu e retirar de vez o que resta das soberanias nacionais.
Assim, para se legitimarem, eurocratas e eurófilos agitam o fantasma da guerra. De Durão Barroso a Herman Van Rompuy, o grito é por demais conhecido: “se não acabarmos de vez com as independências nacionais vamos ter guerra entre nações”.
Na mais recente edição da universidade de verão do PSD, o euro-entusiasta Paulo Rangel lançou de novo o repto, dizendo que só o federalismo irá salvar a Europa da guerra. Contudo, como me parece que a universidade do PSD não tem grande reputação intelectual, talvez seja importante ir buscar alguns dados académicos para se perceber se a solução eurocrata para terminar com a guerra faz sentido ou não.
Os eurófilos alegam que a guerra termina se juntarmos todos os povos europeus sob o mesmo Estado e que, se estes últimos puderem independentemente usar as suas afiliações étnicas para defenderem os seus interesses, terminaremos todos em guerras entre Estados nação. Esta é uma ideia sedutora que em última instância nos levaria ao governo mundial para garantir a paz eterna kantiana; esse sonho universalista.
Contudo, os dados históricos mais recentes revelam exactamente o contrário. Citando do livro “Politics in a Changing World” dos cientistas políticos Marcus E. Ethridge e Howard Handelman (tradução minha):
“Se olharmos para os últimos 60 anos desde o fim da segunda Guerra mundial, as mais frequentes arenas para conflitos violentos não foram guerras entre Estados soberanos, mas sim lutas internas devido a razões tribais, culturais, religiosas, e outras razões de carácter étnico. De acordo com uma estimativa recente, “sensivelmente dois terços de todos os conflitos armados no mundo incluem componentes de antagonismo étnico”. De facto, os conflitos étnicos têm quatro vezes mais probabilidades de se efectivarem do que os conflitos entre Estados soberanos. Estimativas do número de mortos são sempre difíceis de fazer de forma absoluta, mas de acordo com o reputado estudo dos cientistas políticos David Laitin e James Fearon “desde o fim da segunda guerra mundial, 16.5 milhões de pessoas morreram em conflitos internos de carácter essencialmente étnico, comparados com 3.3 milhões em guerras entre Estados soberanos”. Outras estimativas de conflitos étnicos colocam os números de mortos nos 20 milhões ou mais”.
É fácil de perceber que a solução que os eurófilos defendem está refutada pela observação histórica; isto é, a criação de um Estado que abranja diferentes grupos étnicos não é garantia de paz; muito pelo contrário, os Estados soberanos que representam nações parecem ter um registo mais pacífico. Isto claro, não quer dizer que as guerras entre Estados nação (que por norma também representam um grupo etno-cultural) não possam ser destruidoras e atingir altos níveis de mortalidade, mas alegar que basta colocar todos os grupos dentro do mesmo Estado para evitar a guerra é, do ponto de vista histórico, uma perfeita demagogia sem qualquer sentido.
No meu mais recente texto para o jornal “Diário Económico” defendi que o projecto federal europeu tem mais potencial para criar guerra interna do que para evitar qualquer conflito bélico. E a eurocracia tem “trabalhado” intensamente no sentido de gerar antagonismos: a criação de um euro falhado, uma PAC que destrói boa parte da produção interna, a promoção de imigração em massa vinda de fora de Europa para enfraquecer as coesões etno-culturais das nações, redistribuição em cada vez maior escala que cria ressentimentos financeiros, etc…
As fronteiras não existem historicamente por acaso, elas existem porque foram estabelecidas (de forma mais ou menos justa) para evitar que diferentes grupos com afiliações diferentes entrem em contacto antagónico no mesmo território. A União Europeia, como projecto de engenharia social que é, rompe com o senso comum e com as tradições milenares cujos fundamentos tentam ser ignorados; ou seja, ignora que tal como os direitos de propriedade bem definidos, as boas fronteiras têm um maior potencial para gerar bons vizinhos do que as más fronteiras ou do que a ausência delas.
Sustentabilidade da União
Aqui fica o meu artigo de hoje para o jornal Diário Económico sobre a (in)sustentabilidade da União Europeia: Sustentabilidade da União.
A Política do Inatismo
“The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion” é o mais recente livro do psicólogo social e evolutivo Jonathan Haidt. A premissa do livro é simples: através de uma perspectiva evolutiva, Haidt mostra através de inúmeros dados que as nossas escolhas políticas (socialista, conservador, liberal) são influenciadas decisivamente por características biológicas inatas. Isto claro, não significa que é a nossa pré-disposição natural que define em absoluto as nossas escolhas ideológicas; significa sim que, num dado contexto, perante a exposição a determinadas ideologias/mundividências, a nossa escolha será instintivamente passional e apenas racionalizada à posteriori.
Os indivíduos sentem os fenómenos de forma diferente. Uma pessoa que sente uma insuportável dor ao ver imagens de fome noutras partes do mundo tem mais probabilidades de escolher uma ideologia igualitária do que alguém que aceita o facto como natural e prefere antes agir localmente nos problemas da sua vida, família ou comunidade.
Haidt identificou algumas das tendências psicológicas centrais nos chamados “progressistas de esquerda”: entre outras, a abertura à experiência (amor por coisas desconhecidas, subversão do tradicional) e a fixação no valor da igualdade (uma aversão à hierarquia a que chamam de justiça social). Já nos conservadores e tradicionalistas ele identificou que o espírito tribal era assumido, isto é, que existia uma clara assunção do conceito de “nós” vs “eles” (família, genealogia, comunidade, nação), que a hierarquia era aceite como natural, inevitável e benéfica, e que o respeito pela autoridade do grupo era valorizado.
Naturalmente, as tendências que a esquerda apresenta são inversamente proporcionais às de direita, e tal deriva da forma como as pessoas “sentem” o mundo.
Ademais, Haidt revelou que os liberais clássicos/libertários estão muito mais próximos da esquerda do que da direita em termos sociais. Em boa parte isto advém do facto de verem o indivíduo como soberano e não como parte de um grupo, tal como a direita vê. Neste ponto as questões tornam-se confusas; então não é a esquerda que é suposto ser colectivista? Não necessariamente. A chamada esquerda liberal (new left) renega a existência de grupos porque paradoxalmente o seu grande cavalo de batalha são os chamados “grupos de vitimização” (mulheres, outras etnias, homossexuais, etc) e o objectivo final é o fim das diferenças entre grupos. Por outras palavras, o objectivo é a individualização igualitária, a atomização, o “todos iguais na diferença” e essa individualização terá de ser garantida pelo Estado (liberdade positiva).
Outra razão pela qual Haidt coloca os liberais clássicos/libertários na esquerda é que estes tendem a ser mais racionalistas e mais despegados de instintos tribais. Porém, acrescenta que eles tendem a votar na mesma linha dos conservadores porque ambos consideram que o Estado Social que a esquerda promove tem efeitos destrutivos. Para os libertários o Estado Social é destrutivo da liberdade individual e para conservadores/tradicionalistas é destrutivo de uma ordem comunitária tradicional e meritocrática.
No entanto, há uma razão bastante mais forte para colocar os liberais clássicos na direita: não estão enamorados pela igualdade. Independentemente dos seus benefícios, o resultado do mercado livre significará sempre desigualdade como reflexo das diferentes habilidades inatas humanas. Apesar de tudo, é possível argumentar que eles estão enamorados pela igualdade de direitos (propriedade, liberdade, etc) e este foco nos “direitos”, apesar de diferentes, é uma das bandeiras da esquerda. Sem “direitos” a esquerda não sobrevive ideologicamente. Já a direita tradicional baseia-se no que é melhor para o grupo, e o que é melhor para o grupo é a hierarquia natural, o respeito pelas normas sociais e não uma lógica de direitos. Na lógica de Edmund Burke ou de Oswald Spengler, a ordem hierárquica demorou séculos, talvez milénios, a ser formada pelo acomodar das diferentes habilidades humanas numa sociedade; qualquer revolução institucional de massas apenas traz o caos inutilmente, pois o processo começa de novo, provavelmente para se chegar ao mesmo ponto.
Desta forma, os liberais clássicos/libertários parecem operar na terra de ninguém no que diz respeito ao espectro político esquerda/direita.
Sendo estes arquétipos ideológicos imperfeitos quando praticados, cada um preenche as suas reivindicações puxando mais para a direita ou para esquerda em assuntos particulares. No caso dos liberais clássicos, há quem termine mais à direita e quem termine mais à esquerda. Os individualistas extremos estarão socialmente mais à esquerda, mas aqueles que, tal como F.A. Hayek, abraçaram a selecção de grupo, estarão mais à direita. Aliás, o facto de Hayek rejeitar “direitos” e basear-se em normas sociais e na selecção de grupo (onde tribos competem com tribos) ajudou em grande parte à sua receptividade pela direita.
Hayek, tal como E.O. Wilson, Charles Darwin, Elinor Ostrom e o próprio Jonathan Haidt, perceberam que a essência grupal dos seres humanos é um produto da evolução que nos faz competir não só dentro dos grupos mas principalmente entre grupos. Se existir liberdade, existirá competição grupal; e para que essa competição seja eficaz, todos os grupos se focam na punição dos “cheaters” ou “free riders”.
Sendo os mais honestos em relação a esta lógica grupal, o foco na coesão de grupo por parte de conservadores/tradicionalistas está por demais evidente na sua condenação moral de actos que vão contra essa coesão do colectivo como unidade adaptativa; entre muitos outros, é bem conhecida a contestação a actos de egoísmo puro (receber sem dar), anti-comunitarismo, práticas homossexuais, miscigenação, atitudes anti-família, atitudes anti-autoridade natural, etc…
Curiosamente, a esquerda progressiva rejeita a lógica grupal do “nós” contra “eles” (“in-group/out-group”) mas na prática são tão tribais como os demais humanos. Tal como Charles Murray documentou no seu último livro “Coming Apart”, apesar de toda a sua retórica de inclusão, os progressistas de esquerda vivem em famílias tradicionais, rodeados de pessoas tal como eles e em antagonismo constante contra o grupo da “direita”. Haidt explica o facto com a tendência humana para “sacralizar” valores de forma a unir o seu “grupo” contra o outro “grupo”. No caso da new left “frankfurtiana” a sacralização fez-se à volta dos supracitados “grupos de vitimização” que tinham de ser protegidos do homem ocidental e à direita a sacralização é feita abertamente à volta do seu próprio grupo.
Por fim, Haidt escreveu que foi um homem de esquerda durante boa parte da sua vida mas que por ser por natureza politicamente incorrecto nunca se sentiu totalmente “em casa”. Hoje diz-se centrista, mas não se coibiu de revelar que depois de todos os estudos que fez, não tem dúvidas de que os valores conservadores/tradicionalistas estão muito mais próximos da natureza humana do que todos os outros.
Leitura complementar: Selecção individual, selecção de grupo e liberalismo clássico
“O Homem Pode Fazer o que Quer, Mas Não Pode Querer o que Quer”
O meu último texto sobre os usos e abusos da falácia naturalista deu origem a uma crítica vinda do outro lado do atlântico escrita por Joel Pinheiro. Em suma, nessa crítica, o autor diz-se partidário da falácia naturalista e, concomitantemente, dá os argumentos “standard” a seu favor, criticando a minha posição naturalista.
Talvez por já os conhecer bem, muitos dos argumentos a favor da falácia naturalista já tinham sido antecipados no meu texto inicial, pelo que considero que muitas das críticas de Pinheiro estavam respondidas.
Tal como eu escrevi no meu texto original, a base da argumentação dos proponentes da falácia naturalista é uma profunda crença no valor da igualdade. Como tal, estabeleceram para si mesmo que os humanos são iguais e colocaram o ónus da prova nos que alegam que somos naturalmente e inatamente desiguais.
Curiosamente, a posição deles é a posição do mainstream político e do zeitgeist mediático, presente na força autoritária anti-conhecimento e anti-científica que é o politicamente correcto (PC). Contudo, a tradição popular há muito que sabe que os seres humanos são desiguais e é senso comum que assim seja. Desde sempre que as pessoas disseram e souberam que o X é mais inteligente que Y ou que W é mais forte e bonito que Z, independentemente do contexto.
Como a posição normal é assumir que os humanos são naturalmente desiguais, o ónus da prova devia recair sobre os igualitários que propõem que somos todos iguais ou que somos tábuas rasas prontas a serem moldadas pela educação (nurture). O grande mérito do PC (com origem nos académicos da Escola de Frankfurt) foi ter conseguido transformar a sua assumpção igualitária irrealista na posição standard e deixar o ónus da prova para os outros que discordam. Por outras palavras, os igualitaristas alegam “eu acredito que o Homem é igual, agora prova lá que não é”.
Os cientistas foram assim à procura dessas provas (pelo menos os que não foram despedidos pelo PC por trazerem notícias desagradáveis). Elas chegaram em abundância e continuam todos os dias a chegar à medida que os estudos de genética comportamental vão evoluindo. Os estudos “standard” são os que avaliam gémeos idênticos (partilham 100% do ADN) criados em ambientes distintos e os resultados são conhecidos: tal como Steven Pinker mostrou através de inúmeros estudos, os gémeos idênticos educados em ambientes diferentes são muito mais parecidos uns com os outros em QI (cerca de 80% de hereditariedade genética) , personalidade, interesses e aspecto físico do que as pessoas educadas no mesmo contexto que estejam genealogicamente menos relacionadas. Ou seja, gémeos idênticos criados em ambientes distintos são mais iguais entre si do que pessoas geneticamente menos relacionadas criadas no mesmo ambiente.
Acumularam-se as evidências: surgiram as evidências X, a Y, a Z, entre muitas outras, mas para os que pediam “provas” nada irá ser suficiente. O “pedir provas”, descobre-se agora, era apenas um truque de retórica. Mesmo quando o ADN puder ser sequenciado na perfeição já identificando os genes e mecanismos que contribuem para as capacidades cognitivas ou capacidades de qualquer outro tipo, a opinião destes dificilmente irá mudar. Esta frase de Joel Pinheiro representa na perfeição a sua geração igualitária:
“Aliás, é gritante a ingenuidade com que Faria aceita resultados altamente polêmicos sobre o comportamento humano, baseado em alguns estudos estatísticos.”
Na realidade, os resultados não são nada polémicos. Há imenso tempo que a comunidade científica envolvida nos estudos aceita que estes resultados são consistentes ao longo do tempo. Claro, a opinião da geração educada no igualitarismo militante dificilmente irá mudar, mas tal como disse Jonathan Haidt a David Sloan Wilson: “apesar de esta geração ter dificuldade em reconhecer a abundância de provas, as próximas gerações já irão olhar para os dados de forma mais desapaixonada reconhecendo-os como naturais e até banais”.
É óbvio que em última instância os igualitários irão apontar para o céu dizendo que a moralidade, como ética superior, não deve contemplar, nem levar em consideração a desigualdade e instintos naturais. Contudo, ignoram que até o nosso desejo pela racionalidade ética é uma pulsão biológica. Tal como Arthur Schopenhauer escreveu: “O homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”.
Mostrar uma natural preferência pela família e nação implica excluir boa parte da humanidade do nosso altruísmo preferencial, que é algo que os igualitários desdenham; e assim percebemos o fascínio contemporâneo do igualitarismo pelo homem universal, transnacional, da espécie humana. Mas não param aí, como a desigualdade natural não deve contar para estabelecer a moral, continuam a estender a sua moralidade igualitária aos animais e os seus direitos, ao planeta (medo do aquecimento global) e em última instância ao universo e alienígenas caso eles surjam.
Há igualmente algo de relevante a dizer do ponto de vista político. Joel Pinheiro diz que já participou brevemente no “O Insurgente”, pelo que é razoável especular que não se considera de esquerda. Contudo, se fosse de esquerda, o seu discurso tinha sido exactamente igual. Mesmo a parte onde se opõe à engenharia social seria corroborada pela esquerda (que nunca define o que faz como “engenharia social”).
Isto explica como a direita foi totalmente aniquilada pelo pensamento de esquerda (nomeadamente da new left). A vitória do pensamento igualitário de esquerda foi tão pronunciado que mesmo a direita não consegue fugir desse paradigma. Sem surpresas, por ter de jogar dentro das regras que a esquerda definiu e impôs, por ter de argumentar dentro de uma moldura (framework) igualitária, a direita está sempre a perder campo político porque não tem a força da coerência e persuasão; e perde de tal forma que se transforma em esquerda; tal como é possível de aferir pelo texto do Joel Pinheiro.
Ademais, Pinheiro acusa-me de ser complacente para com o “mau”. O que para além de ser uma acusação injusta, não é igualmente correcta. O que eu considero é que o desejável se faz dentro da realidade, a partir da realidade, principalmente porque tudo o que é supostamente bom pode ter implicações negativas e vice versa.
Friedrich Nietzsche, com quem terminei o meu último texto, escreveu que o “super-homem” (Übermensch) se fazia a partir do homem biológico, ou seja, a partir do corpo; como tal, qualquer melhoria humana terá de passar pelo próprio corpo, nunca passará por ignorá-lo.
Por fim, pelo menos eu e o Joel Pinheiro concordamos em algo, o cancelar de algumas limitações do homem passarão certamente pela evolução da tecnologia genética; o que não implica que neste campo o igualitarismo ético tenha de ser necessariamente aplicado.
Porém, no mundo onde habitamos, sem essas tecnologias futuristas e independentemente da moralidade igualitária, a desigualdade natural é destino.
Filipe Faria – Blog Pessoal
Aproveitando o sucesso do nosso “O Insurgente”, gostaria de divulgar aqui o meu novo blog pessoal onde tenciono reunir todos os meus textos espalhados pela internet, assim como o meu trabalho académico e recomendações literárias. Naturalmente, estão todos convidados a aparecer.
Os Usos e Abusos da Falácia Naturalista
Quantas vezes não vemos as pessoas rejeitarem à priori estudos, descobertas bio-sociais ou relatos históricos incómodos sobre a natureza humana simplesmente alegando que : “lá porque é assim não significa que tem de ser, podemos mudar se quisermos” ou “estudos há muitos, por isso não vou perder o meu tempo a olhar para esse em particular”.
Para um naturalista como eu que tende a estudar a natureza humana recorrendo à observação das capacidades, tendências e limites do ser humano como parte de um ecossistema em evolução, presenciar este tipo de reacções tornou-se já num lugar comum do meu quotidiano.
Os discordantes que estão academicamente mais informados sabem sempre o que dizer cada vez que um naturalista (sociobiólogo, psicólogo evolutivo, antropólogo, etc…) apresenta evidências desagradáveis sobre a natureza humana: “não podemos cair na falácia naturalista”, ou seja, dizem que não podemos cair na ideia de que lá porque algo é naturalmente assim, tal significa que tenha de ser aceite como regra. Os que não conhecem o conceito dizem exactamente o mesmo, apenas não reconhecem que estão a usar o argumento da falácia naturalista.
Isto, claro, é uma forma de negação dos factos para dar lugar ao sonho, à utopia confortante e, em última instância, à engenharia social.
A falácia naturalista advém do problema “ser-dever ser” (is-ought) que David Hume levantou, e concluiu que mesmo que algo seja factualmente natural não significa que daí se retire qualquer noção moral de bom ou mau. A partir daí, o filósofo George Edward Moore desenvolveu o conceito de falácia naturalista, que postula que o valor moral de algo não é definido pelo que é natural. O exemplo mais marcante usado por ele será porventura a alegação de que a direcção da evolução biológica não é moralmente boa apenas porque é a naturalidade da nossa existência.
A falácia naturalista tem alguma razão, mas em última instância é um argumento estéril. Importa assim perceber esta falácia em termos de organização política e de políticas públicas.
Quem está familiarizado com a sociobiologia e estudos no campo da biologia/genética/psicologia evolutiva, conhece já muitos dos resultados sólidos e consistentes que se acumularam ao longo dos anos: entre eles, que os seres humanos, individualmente e em grupo, variam consideravelmente ao nível do quociente de inteligência (QI), que o QI é, como os temperamentos e traços físicos, essencialmente hereditário, que o QI é dos mais fortes, senão o mais forte determinante do sucesso económico-social, que os seres humanos, tal como outros animais, são tribais, etnocêntricos, discriminatórios e nepotistas, que este etnocentrismo/nepotismo tem sido confirmado empiricamente sem grandes excepções e explicado em termos evolutivos como a defesa daqueles que partilham mais genes connosco de forma a propagá-los (Inclusive fitness), entre muitos outros resultados incómodos que poderiam ser referidos.
Em termos políticos, ninguém quer abraçar estas evidências e por isso o recorrer à falácia naturalista torna-se num refúgio lógico. À esquerda, usa-se a falácia naturalista como uma forma de reforço da tábua rasa, isto é, diz-se que estas evidências estão todas erradas ou que são insuficientes, que os seres humanos são todos basicamente iguais e formados pela educação e que “não há nada para ver aqui” e que no caso de serem verdade, a moralidade igualitária deve prevalecer sobre as evidências. Já no campo liberal optimista, a negação (quando não se baseia totalmente na tábua rasa Lockeana) passa por acreditar no poder da “cultura” e do slogan “não há tribos, nem colectivos, nem forças étnicas, só há o José, a Maria e o Manuel” e se ensinarmos isto às pessoas, se mudarmos a cultura, o mercado resolve os problemas. Neste caso, só os elementos mais cépticos, conservadores e tradicionalistas aceitam que qualquer sistema ou organização política tem de contar com estas tendências humanas naturais, independentemente dos sonhos dos que preferem jogar a carta da falácia naturalista. Políticas públicas que visam coordenar humanos que não existem na prática estão condenadas a falhar.
O erro cometido pelos que depositam uma fé infindável na cultura é considerarem que a cultura não é já de si bio-cultural. Quando dizem “sim, os humanos podem ser assim mas é possível civilizá-los” (i.e. apagar ou esconder essas tendências), estão a apelar para um desligar entre o biológico e o cultural, ou seja, para a divisão Cartesiana do corpo e mente, esquecendo-se que a razão é também um produto biológico, (e.g. se o cérebro se danificar fisicamente o mesmo acontece com a “razão”) tal como António Damásio apontou no livro “O Erro de Descartes”.
Na realidade, se não quisermos viver totalmente isolados, o nosso ambiente é essencialmente formado pelos genes e tendências comportamentais dos outros que nos rodeiam. É precisamente por isso que se diz que quando queremos comprar casa os 3 critérios devem ser “localização, localização, localização”. Desta forma, a questão “podemos ser quem já não somos de base?” torna-se pertinente quando se trata de avaliar a fé na cultura redentora.
Uma cultura só pode conter elementos que a biologia permita. Por exemplo, nenhuma norma social que implique dar 50 piruetas no ar em vez de dar um aperto de mão irá surgir numa cultura, simplesmente porque os humanos não estão preparados biologicamente para tal. Este é um exemplo hiperbólico, mas o mesmo é válido para os que depositam a fé na educação e consequente desaparecimento dessas tendências naturais observadas através do uso da razão e de uma moralidade racionalmente desenhada.
Dito isto, dentro das possibilidades bio-culturais, a cultura e as normas sociais produzidas na mesma podem ter efeitos que em termos funcionalistas podem ajudar ou prejudicar uma sociedade, e até uma civilização. Por outras palavras, um determinado grupo civilizacional pode extinguir-se devido a práticas culturais mal-adaptativas (alguém lembre o ocidente desta verdade).
Assim, o argumento da falácia naturalista tornou-se no melhor amigo do zeitgeist das massas, igualitário e politicamente correcto em que vivemos. Um contexto onde a ideologia da igualdade se sobrepõe à realidade, à ciência, ao conhecimento e inclusivamente ao senso comum.
A falácia naturalista tornou-se sinónimo de “eu irei ignorar qualquer evidência que me revelem para que a realidade não se entreponha entre mim e a minha moralidade igualitária pré-estabelecida”. Parafraseando Friedrich Nietzsche:
“A doutrina da igualdade! Não há nada mais venenoso pois parece que é pregado pela justiça ela mesma, quando na realidade representa o fim da justiça. “Igual ao igual, desigual ao desigual” este é um verdadeiro princípio de justiça, e o seu corolário é: “Nunca se tente transformar em igual o que é desigual”. – Nietzsche (em O Crepúsculo dos Ídolos)
O “Fim das Nações” Sai à Rua
Há algumas semanas escrevi um artigo onde abordava o fenómeno contemporâneo a que chamei de “ideologia anti-nação”. Resumidamente, escrevi que esta ideologia se traduzia pelo amor de grande parte das elites europeias pelo supranacionalismo e que este, para ser exequível, implica a destruição do sentimento popular de nação que impede a centralização política ao nível da União Europeia ou até, em última instância e num cenário futurista, ao nível da ONU. Como instrumentos económicos de centralização (e.g. o euro) prejudicam economicamente mas não alteram o sentimento nacional do grupo, o método usado para atingir este fim foi a imigração em massa: trazendo milhões de migrantes não-europeus para a Europa dá-se passos largos para o fim das nações europeias actuais. E é isto que tem sido feito desde o pós guerra, período em que as elites pensantes “decidiram” que as nações são hediondas e perigosas e que são para abolir se possível.
Na altura, alguns comentários interrogavam se este fenómeno que descrevi é uma ideologia ou uma conspiração. Na realidade, não acredito que uma conspiração a um nível tão elevado se pudesse sustentar tanto tempo devido a problemas evidentes de acção colectiva; como tal, a cola que vai sustentando este processo é de carácter ideológico. No entanto, isto não significa que os interesses individuais dentro desta moldura ideológica não sejam um forte motor motivacional para se jogar o jogo.
Ademais, aquilo que antes era uma evidência factual mas que raramente era verbalizado por agentes políticos foi agora colocado em público: Peter Sutherland, responsável da ONU por questões migratórias, disse abertamente que as nações europeias ainda sentem um sentimento de pertença aos seus, que ainda possuem considerável homogeneidade nacional, que ainda se sentem diferentes em relação a outros povos e que se a União Europeia quiser sobreviver terá de fazer o melhor que puder para acabar com essa homogeneidade pela via da imigração em massa. Ele dá o exemplo do Reino Unido como estando na vanguarda desse processo. E as estatísticas reveladas recentemente por um investigador do King’s College London confirmam-no:
Professor Hamnett says: “London as a whole now has an ethnic minority dominated secondary school system, akin to that of many large US cities, and the figure reaches 67 per cent in inner London. “This is also true of a small number of other towns and cities with large ethnic minorities, notably Slough (64 per cent), Leicester (58 per cent), Birmingham (52 per cent) and Luton (51 per cent). Manchester and Bradford are not far behind with 43 per cent.”
Como é óbvio, Peter Sutherland está a prescrever uma receita para o futuro da União Europeia sabendo que esta tem sido já perseguida desde o pós-guerra. Sutherland não é uma pessoa qualquer, tem já um currículo invejável constituído por prémios e posições profissionais de topo. Para além da sua actual posição na ONU, é também “chairman” da London School of Economics, já foi comissário europeu e director da “Organização Mundial de Comércio”, ocupou posições milionárias em algumas das maiores empresas do mundo como a BP ou a Goldman Sachs e pertence ao famigerado grupo Bilderberg.
Este é um senhor que representa a sua classe e pretende uma União Europeia como Estado “gestor” e “educativo” em todo o seu esplendor, mas claro, onde não irão viver muitos europeus. Por outras palavras, ao querer que a União Europeia acabe com a Portugalidade, com a “Englishness” e com as demais identidades nacionais, o que é pretendido é uma Europa cujo território não é nada mais do que um conjunto de indivíduos atomizados e sem ligações familiares/comunitárias que olharão para o grande Estado europeu como gestor das suas vidas. Estado este que Sutherland magnifica com o epíteto “o projecto mais nobre dos últimos 1000 anos”.
As elites que Sutherland tão bem representa estão equivocadas. A união imperialista que tanto ambicionam é uma utopia. Tal como eu deixei escrito no meu artigo, devido ao tribalismo e nepotismo inatos no ser humano, o que eles vão conseguir com esta engenharia social motivada por um sentido de construção imperialista é uma redefinição das nações europeias, com todos os custos que irão advir dos conflitos territoriais e civis.
Agora que as intenções destas elites são mais claras do que nunca (principalmente para quem ainda não tinha prestado atenção), resta esperar que o euro e este destrutivo projecto europeu sejam colocados rapidamente na prateleira histórica antes que os problemas em curso se acumulem de forma irreversível.
Leitura complementar: O Fim das Nações?
O Adeus a Elinor Ostrom e Algumas Reflexões Sobre o seu Legado
Morreu Elinor Ostrom. Ainda há umas semanas atrás tive a oportunidade de a ver ao vivo em Londres numa conferência do Institute of Economic Affairs e ela já me parecia algo debilitada, apesar de manter uma vitalidade intelectual notável até ao fim. O André Azevedo Alves escreveu um texto (aqui) que é um excelente resumo da importância de Elinor para o pensamento político e que merece ser lido para se perceber o trabalho dela. Gostava no entanto de fazer algumas observações em relação ao legado da vencedora do prémio Nóbel da economia.
Elinor revelou-nos que a melhor forma de lidar com problemas de uso de recursos comuns é deixar as comunidades, os grupos humanos, encontrarem a melhor forma de resolução dos problemas de externalidades e da tragédia dos comuns através das normas sociais específicas de cada contexto. Isto é, ela demonstrou que não existem soluções normativas universais que se apliquem a todos os contextos. Cada grupo humano tem as suas especificidades comportamentais e interage num espaço geográfico distinto, o que leva a diferentes soluções para cada caso. Isto leva naturalmente a que ela tenha advogado uma descentralização policêntrica onde cada grupo humano tem a capacidade de criar naturalmente as suas normas, tal como David Hume propôs no seu “Tratado da Natureza Humana”.
Contudo, o que me parece realmente importante no trabalho de Ostrom é que ela obrigou muitos liberais a repensarem o significado das suas reivindicações. Ao revelar que a liberdade está na autonomia dos grupos para criarem as próprias regras, mesmo que estas não passem pela propriedade privada ou pelo mercado, ela deu a entender que os grupos geograficamente localizados actuam como unidades orgânicas com regras comunitárias que impedem o egoísmo de se alastrar de forma prejudicial ao grupo (resolvendo assim a tragédia dos comuns). Tal como notou o biólogo evolutivo David Sloan Wilson, famoso pela sua concepção de selecção multi-nível que inclui a selecção de grupo, esta foi a forma “natural” com que os humanos evoluíram em tribos, e por isso não é surpreendente que esta forma de organização grupal seja a que está mais de acordo com as pré-disposições humanas.
Assim, Ostrom mostrou que o mercado é apenas parte das escolhas que os indivíduos fazem para se auto-organizarem; tal como Hayek revelou, são as normas sociais criadas por determinados grupos que impelem os indivíduos dentro deles a agirem de determinada forma, mas mais por imitação do que por decisões racionais e autónomas.
Em termos metafísicos, o que se pode retirar do trabalho de Elinor Ostrom é que uma possível liberdade passa essencialmente pela descentralização e autonomia grupal, mas dentro desse grupo, as normas poderão variar tanto como indo de um sistema puramente de mercado e propriedade privada como para um sistema mais igualitário/redistributivo ou para um sistema hierárquico. Desta forma, por tentativa e erro, cada grupo define as suas normas e a competição inter-grupal e intra-grupal define a evolução humana.
Elinor Ostrom estará certamente entre os melhores economistas e cientistas políticos contemporâneos. Como tal, o seu trabalho será sempre lembrado.
Leitura complementar: Selecção Individual, Selecção de Grupo e Liberalismo Clássico