Crises de identidade própria e falsas alianças de curto prazo

O mês de Setembro é invariavelmente o mês das depressões, da preguiça no trabalho, do desnorte meteorológico e do embate com a realidade, por vezes desagradável, que não foi apagada pela breve pausa sazonal. Não vale a pena ter ilusões; todos os anos sucede-se o mesmo desânimo por não se ter descansado o suficiente, por não ter todos os biscates e bricolage em ordem, por não se terem lido todos os livros reservados para o Verão, por não se terem feito as revisões antes do novo ano lectivo, entre outros clássicos de férias mal aproveitadas.

Mas as férias de Verão também podem servir para pensar no que se fez ou deixou de fazer ao longo do ano, podendo propiciar uma reflexão sobre os feitos, ou a falta destes, dos governos dos últimos 40 anos. E não há dúvida de que se existem pessoas que nos ajudam a lembrar que Setembro é o mês depressivo – aquela pausa existencial em que pensamos sobre a nossa inutilidade ou sobre a estupidez humana em geral – essas pessoas são António José Seguro e António Costa. Esta minha prosa vai ser longa mas, para alívio dos leitores, informo já que não será dedicada às duas individualidades mencionadas. Para além de longa, também poderá soar um tanto ou quanto arrogante, pelo que confesso também não estar imune ao problema que vou apontar e passar a explicar. E que problema é esse? Entre as muitas coisas penosas que se podem apontar à democracia portuguesa, vou referir-me aqui ao problema das alianças frágeis que são assentes nos problemas/inimigos que se combatem em comum. Dito desta forma, parecerá um problema demasiado genérico mas é mesmo essa a minha intenção. Por eu considerar que este problema se alastra aos mais diversos domínios, é que o aponto como um dos maiores entraves ao desenvolvimento, sobretudo político e intelectual, no nosso país.

Comecemos por algo muito óbvio e que nos toca a todos. A perpetuação e a força dos esquemas rentistas que dominam a política e economia portuguesas, só são possíveis graças ao prevalecente princípio que norteia esta oligarquia inabalável: o amigo do teu amigo, meu amigo é (ver exemplo da Sociedade Portuguesa de Autores que aplaude um governo de PSD e CDS quando as decisões lhe são favoráveis). Por outro lado, deve haver algum princípio prejudicial que contribui para enfraquecer a posição, já de si desfavorável, ocupada por todos aqueles que não usufruem deste domínio e manipulação públicos. A debilidade da sociedade civil e de potenciais elites de oposição – e sim, estou a pensar na Direita – explica-se, em grande medida, por um péssimo princípio que só conduz ao marasmo e à cobardia a longo prazo: o inimigo do meu inimigo, meu amigo é. Aceitamos estar sentados na roda de qualquer grupo que afirma combater algo que também queremos combater, mas nem nos incomodamos em tentar perceber primeiro quais são os ideais (se é que os tem) desses aliados. Muitos conseguem repetir frases já incontestadas, tais como “o socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros”, mas quantos destes estarão dispostos a perceber que a amizade que mantenho com o inimigo do meu inimigo dura até deixar de existir este inimigo comum? Não digo que não seja necessário, em certos momentos críticos, ceder em alianças temporárias com o propósito de combater um mal maior. O que torna tudo perigoso é deixar-se ficar inebriado ou conformado com esta cedência que pode implicar falta de programa próprio e de inibição da identidade própria; aqui estará parte da explicação para a mais que notória ausência de heterogeneidade de ideias e de atitudes características de quem tem governado.

É ilusório confiarmos que alguém pode ser nosso aliado simplesmente porque, por exemplo, também se indigna com o desmazelo municipal relativamente à conservação dos arbustos do Jardim da Praça do Império ou, noutro exemplo consensual, também concorda em punir “jovens” que perturbam a ordem pública em encontros como aquele que decorreu, no passado mês de Agosto, no centro comercial Vasco da Gama. E é ilusório confiar porque, ainda que possa haver coincidência de ideais quando se criticam temas deste género, as alianças de longo prazo não podem ficar limitadas ao comentário de episódios pontuais, de fácil repúdio, sem uma coerente doutrina de fundo e uma identidade distinta que se assuma publicamente. Não é confiável manter a confortável postura de dizermos ao que nos opomos, em vez de admitirmos o que nos move. Pegando nos mesmos dois exemplos: entre aqueles que defenderam a conservação dos tais arbustos, alguns estariam movidos pela sempre apetecível (e saudável) vontade de embirrar com António Costa, enquanto outros estariam movidos por patriotismo que costumam inculcar aos mais variados temas. Quanto ao incidente que decorreu no Vasco da Gama, existirão pessoas que encontram aqui mais uma razão para discutir problemas de imigração e de integração, enquanto outras reagem sem qualquer formulação de ideias mas com natural indignação.

Existem demasiadas pessoas a dizerem para onde não querem ir e a omitirem o destino que têm em vista. Não se soluciona a irrelevância europeia no palco internacional através da repetição exaustiva da lista de defeitos e ameaças da actual sanguessuga legislativa e fiscal; é preciso que cada um verbalize se defende, por exemplo, uma federação de Estados, orquestrada a partir do centro, ou um revigoramento das nações, compatível com uma desejável cooperação económica e comercial.

Aquela atitude (identidade por oposição) é um erro básico suficiente para ser-se humilhado, imaginemos, frente aos investidores do programa “Lago dos Tubarões”. Um empresário tem de definir com rigor para onde quer ir; se sabe que quer comercializar sabonetes, não pode tentar conquistar investimento de alguém, começando por dizer o que não quer fazer. Exemplificando o que acontece no domínio dos negócios, é fácil compreender a rapidez com que se seria esmagado ao escolher o caminho inconcebível de criar uma visão e uma missão que estivessem alicerçadas numa enumeração daquilo que não se quer fazer/criar/comercializar (aspiradores, brincos, batatas fritas, viagens, etc, etc, etc…). Infelizmente, no domínio das ideias parece não existir percepção tão imediata dos danos causados por essa atitude, daí que ela seja tão perpetuada.

Um corpo oco acaba por ceder à pressão exercida pelos outros. E, ao mesmo tempo em que se perdem de vista os ideais de referência, também se dá uma descida dos padrões de exigência na hora de distinguir o certo do errado. Nomeadamente, basta que alguém critique a elevada carga fiscal para se tornar em modelo máximo das virtudes. Nas palavras de Chesterton: “A única maneira de discutir o mal social, é obter primeiramente o ideal social. Todos vemos a loucura nacional. Mas o que é a sanidade nacional?” Voltando à ideia inicial das ilusórias alianças firmadas com o inimigo do nosso inimigo, parece-me útil lembrar que o actual governo de coligação ainda não teve tempo de empreender mudança alguma no que toca aos facilitismos no acesso ao aborto. Talvez porque a gestão das maiorias democráticas não é compatível com a existência de “coluna vertebral” e com a afirmação de princípios inabaláveis ao longo do tempo.

O problema das uniões sustentadas à conta de oposição a um inimigo comum é que se esgota com o desaparecimento deste. Quem insiste em fazer isto, – admita-se que todos nós, mais ou menos vezes, caímos nesta tentação – procura fugir aos seus próprios fantasmas, procura explorar formas de aceitação social ao construir pontes mas, sobretudo, procura esconder a alternativa em que acredita (ou partes mais problemáticas desta) de forma a não ser penalizado social e/ou profissionalmente. Não é só entre partidos políticos que se verificam estranhas cedências e alianças mantidas à conta de programas constituídos por slogans e palavras seguramente ambíguas. Também grande parte das crónicas de jornal são aquilo que a elite dominante quer que elas sejam: subsiste-se numa agenda de negação e de vazio. É tão fácil como começar a falar sobre o estado do tempo num elevador ou como dizer mal de alguém com as vizinhas; as vizinhas maldizentes detestariam-se mutuamente caso não existissem “podres alheios” a justificar muita conversa barata de conveniência.

Através de “identidades por oposição” (expressão inventada por mim às três pancadas) logra-se de uma ampla rede de contactos que podem simpatizar, conviver ou delegar-nos para a esfera da indiferença concedida aos irrelevantes, inofensivos ou banais. Contudo, há um enorme preço a pagar. Pode cair-se no risco de ceder à hipocrisia ou à omissão da verdade para gerir a larga audiência de contactos. Se a situação passa a gerar desconforto pessoal, fica-se sozinho entre a multidão de falsos aliados.

Para tentar facilitar o entendimento daquilo que tratei até aqui, vou terminar com uma tentativa esquemática que começa no ponto em que identifico este conformismo de identidades até ao ponto em que esse conformismo é esmagado pela sua própria inviabilidade:

Num primeiro momento, as ideias agregadoras são imprecisas e vagas, bastando encontrar consensos com base naquilo que se considera estar errado e a funcionar mal.

Num segundo momento já se poderá pressentir risco de cismas e desagregação face à possível extinção do ódio de estimação; vai deixando de se justificar a oposição a um inimigo comum que, enfim, desaparece…

Depois disto, ocorre a quebra do cimento que unia um grupo muito diverso. É o momento por excelência em que “se zangam as comadres e se sabem as verdades”.

Num quarto momento, todos enfrentam a desagregação e o desgaste de ideias. Abraçam-se confianças de base e há busca desesperada por ideais autênticos e crenças fortes. É a fase de reafirmação e de valorização em reacção ao vazio e aos fracassos anteriores.

Num quinto momento, já se poderão identificar unidades fortes e distintas com capacidade de defender as ideias que os fazem subsistir. A sociedade já não deixa esmorecer os valores que garantiram a sua revitalização.

Colocando a hipótese disto ser um ciclo inevitável, passado o fervor que valoriza as razões de saúde e consolidação da “pólis”, poderá haver uma banalização ou descuramento dos ideais numa tentativa de fuga a debates e conflitos desnecessários. À medida que se negligencia a prioridade dos ideais como bússola da sociedade e da política, voltará a ganhar espaço a cobardia da indiferenciação e o conformismo que se satisfaz com a crítica vazia, com a maledicência, propiciando a gradual vitória do Império do Nada. A minha esperança para Outubro de 2015 – e, até lá, teremos muitos oportunidades de sublinhar por que é que os vários partidos políticos estão na fase se esgotamento e de falta de identidade própria – é que haja uma desagregação fatal que ponha estas fraquezas em evidência. Por estas e por outras é que, no meu modesto entender, será estúpido ver pessoas inteligentes a fazerem campanha por Passos Coelho em oposição a qualquer um dos Antónios.

Ovelhas

Fica 15 dias à experiência ou segue para reparação

Algumas pessoas teimam em achar que as “barriga de aluguer” não acarretam grandes problemas e complexidades. Depois existem as outras pessoas sensatas que não ficam surpreendidas quando estas notícias aparecem. São as tristes cenas da sociedade do descartável. Destaco a situação em que ficou a mãe da criança depois de se ter visto envolvida nestes negócios por força das circunstâncias materiais adversas. Tendo em conta as actuais prioridades femininas no ocidente, creio que não existirá por aí nenhuma alminha ingénua a acreditar que são as mulheres da classe média ou alta que vão engrossar estas fileiras. 

Australian couple abandon surrogate twin with Down’s syndrome – but keep his sister

A Thai surrogate mother has received donations from across the world to provide medical treatment for her six-month-old boy, after an Australian couple refused to take the baby on learning he had Down syndrome.
Pattharamon Janbua, 21, was left to care for her critically ill son after the Australian couple who could not have a baby paid her about £6,400 to be a surrogate mother.
The son, named Gammy, was separated from his twin sister, who is healthy and was taken by the Australians.

“The agent told me: ‘We are going to make a glass tube baby,’ but I didn’t understand. My husband agreed because we didn’t have money to pay our debt and I didn’t need to have sex with another man.”

“Os nacionalistas das causas alheias”

Por Miguel Castelo Branco no blogue Combustões:

As últimas semanas tornaram notória a existência entre nós de um ardoroso nacionalismo de novo tipo: o nacionalismo das causas alheias. Exaltar Portugal, defender o seu ser e destinação, a sua liberdade, auto-determinação e independência é crime. Contudo, pelo que me apercebo – à esquerda, à direita e ao centro – é lícito, conveniente e angariador de bom nome terçar armas por outros. Pelo que também me é dado ver, há entre nós mais nacionalistas israelitas que patriotas portugueses, mais fedayin palestinos que lutadores por Portugal, mais estrénuos batalhadores pela União Europeia que orgulhosos portugueses. Eu compreendo que em tempos de crise muitos andem em busca de poiso, tudo fazendo para merecer umas migalhas caídas da mesa dos banqueteadores das causas milionárias. É tudo uma questão de bandeiras e de estipêndio. Curioso que no meio de tanta algazarra não me tenha apercebido de “luso-nacionalistas Curdos”, de “luso-nacionalistas Rohingya”, de “luso-nacionalistas malianos” ou de “luso-nacionalistas Caxemires”. Pois, não pinga nada dessas pobres causas. Defender Portugal acarreta problemas. É politicamente sensível. Onde estão os luso-nacionalistas das causas alheias insurgindo-se contra o tratamento de Estado-vassalo concedido pela UE a Portugal ? Onde estão os luso-nacionalistas das causas alheias rebelando-se contra os comissários europeus que aqui são recebidos com grinaldas, com o pão e o sal concedido aos governadores de uma província imperial ? Assim vai o povo português, frivolizado, confuso, tele-dirigido e indigno rumo à escravatura. Caladinhos, amedrontados, respeitadores do chicote, salivadores pela cenoura; assim fiquem, ardorosos portugueses, pois nada se espera de vós. Pois é, lá está o Miguel a dizer “coisas daquelas que tornam impossível metê-lo em qualquer grupo”.

Sinais dos tempos

Mudam-se os tempos, mudam-se as finalidades do património edificado. Se desejamos reunir indícios que nos ajudem a identificar as prioridades e valores de determinado grupo de pessoas num dado momento, é um bom começo conhecermos o destino dos seus maiores investimentos e sacrifícios. E porque não vale a pena voltar a inventar a roda, recorde-se que já as Escrituras diziam: “onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Da mesma forma, aprende-se muito ao observar em que é que um grupo não está minimamente disposto a perder dinheiro e tempo.

Compreende-se que em alguns países, como é o caso da Holanda, esteja na berra converter igrejas em museus, bares, bibliotecas… Compreende-se porque manifestações de beleza intemporal e arquitectura sublime e durável são raras nos tempos que correm e torna-se muito apetecível ir buscar essas obras ao passado espiritualmente fecundo em que foram criadas. Nem tudo é mau nestas sociedades desnorteadas; salva-se o bom gosto de quem escolhe estes espaços.

Mas enquanto os europeus continuam entretidos com o próprio umbigo, orgulhosos do pouco que são e envergonhados de tudo o que já existiu antes deles, insistem em brincar ao laicismo, ao pluralismo e à vontade da maioria, há quem revele quanto está disposto a pagar para erguer um bastião de espiritualidade na Europa. Conversão de património, mais uma vez. Obviamente, não estamos a falar de cristãos (a menos que Edir Macedo estivesse interessado em construir um templo a Mamon nas nossas terras). Ainda não chegou o dia em que venderemos o Mosteiro dos Jerónimos à Isabel dos Santos ou o Estádio de Leiria a um barão do petróleo mas, por agora, vamos tomando conhecimento que o emir do Qatar, Tamim Zani, tenciona que a praça de touros Monumental, em Barcelona, seja transformada numa Mesquita com um minarete de 300 metros e com capacidade para cerca de 40 mil pessoas. Fortes convicções justificam grandes espaços e grandes investimentos.

As igrejas convertidas em espaços de lazer e a antiga praça de touros de Barcelona têm algo em comum (para além de serem elementos vinculados às tradições locais que atravessam gerações): a inactividade. É preocupante que os europeus demonstrem tamanha indiferença – quando não é orgulho – à medida que perdem vantagem no domínio da religião e das tradições. Como se pode ver, se os europeus não querem, há quem queira.

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Sociedade civil subterrânea

Por muitas que sejam as fragilidades apontadas pelos críticos à velha dicotomia esquerda/direita, a sua utilidade rotineira continua a parecer imbatível nas nossas mais elementares reflexões diárias. Ainda assim, perante problemas contemporâneos mais intrincados que nos deixam com a sensação de ter as lentes embaciadas, nada nos impede de procurar inovar de uma forma mais informal para encontrar alguma ordem no meio do caos. E eis que a inspiração pode surgir, de forma bastante improvável e inesperada, através de um filme – e por falar em sociedade subterrânea… não, a inspiração não vem do Matrix. Mesmo correndo o risco de não ser levada a sério, que tal dividirmos a realidade social e política entre a “dominante/visível” e a “subterrânea”? Duas “classes”, digamos assim, que existem em simultâneo, embora só nos apercebamos da existência da primeira.

A realidade dominante/visível associo-a àquela que é totalmente orquestrada por determinada liderança política monopolista com a finalidade de realizar os respectivos objectivos, reeducar e arrebanhar culturalmente os súbditos (por vezes, redesenhando a própria ordem social) e, de um modo geral, recorrer às mais infames estratégias que lhe possibilitem conservar o domínio para continuar a alimentar toda a rede de interesses que daí vai tirando proveitos pessoais. A realidade subterrânea seria a realidade “bárbara”, não num sentido depreciativo, mas por ser uma realidade que é hostilizada, ou escondida e desvalorizada, por aqueles que detém o poder. De uma forma mais simples, podemos dizer que a primeira é uma realidade que conta com os holofotes e a segunda é uma realidade que acaba por ser esquecida mesmo que, na prática, represente a tendência maioritária de um dado grupo populacional.
Para quem quiser perceber melhor a ideia, a fonte de inspiração foi o Demolition Man (1993). 

É inevitável que estes filmes de ficção científica nos despertem entusiasmo e intensa vontade de metralhar os outros com as nossas próprias analogias feitas com factos do presente, mas não vos vou maçar com reflexões acerca da impossibilidade de John Spartan comprar um hambúrguer na sociedade higienizada e entediante de 2032, ou da emissão de multas por abusos verbais, ou ainda do total desarmamento da sociedade e das forças de segurança (desvirilizadas ao máximo). Teria a sua graça mas seria demasiado previsível. A actualidade está repleta de exemplos em que, aplicando aquela simples divisão, podemos passar a vislumbrar um novo sentido de interpretação da realidade onde antes só víamos confusão. Vamos atentar em dois breves exemplos.

Recuemos até às últimas eleições europeias e pensemos em como foi penoso ter de assistir, mais uma vez, a tantas demonstrações de inaptidão e de disfuncionalidade da parte de candidatos, comentadores e demais constituintes da realidade “dominante/visível”. Apesar dos elevados níveis de abstenção, dos vários sinais de eurocepticismo, e por mais flagrante que seja a inadequação das instituições europeias, a verdade é que nunca existem holofotes apontados para os indivíduos que compõem a realidade “subterrânea”, habilmente ignorada pela elite que prefere continuar a renegá-los para a clandestinidade como gente primitiva que não consegue assimilar a superioridade do projecto perfeito para um futuro brilhante. A meu ver, a complexidade dos desafios europeus é um bom exemplo de como pode ser relevante perceber a tensão existente entre a dominância de uma certa elite e as atitudes da sociedade civil subterrânea, em vez de reduzirmos as tensões à oposição entre esquerda e direita. Sobretudo quando sabemos que não será complicado encontrar alguns pontos de concordância entre representantes da esquerda e da direita, fazendo frente a imposições e intromissões europeias.

O segundo exemplo passa-se na nossa pátria amada e é um dos assuntos que vai continuar a fazer correr muita tinta: António Costa. O mediatismo que envolve este líder ávido de protagonismo e ansioso por ser investido de autoridade a nível nacional, demonstra claramente a desfasamento entre aquilo que são as orquestrações partidárias, orientadas sempre centralmente, e aquilo que é a realidade dos portugueses. Se já é complicado, para um lisboeta, apontar feitos notáveis que distingam este senhor, imagine-se o desapego dos restantes portugueses por esse país fora. Se as marchas populares puderem ser incluídas na realidade “dominante/visível”, eu posiciono-me orgulhosamente na realidade subterrânea. Ainda assim, aquilo é que o país se arrisca a ter de gramar nos próximos anos. Como se não bastasse termos acostumar ao marasmo total no que toca a progressos no domínio da devolução de poder ao longo do território, abre-se agora esta possibilidade de coroarmos a realidade “dominante/visível” com aquele que é o mais perfeito exemplo de mascote partidária, concebido e popularizado por Lisboa e para Lisboa. É bem possível que a realidade subterrânea se esteja perfeitamente a borrifar para a figura banal que António Costa representa. Em caso de avançar, só uma contínua campanha de lavagem cerebral ao longo de vários meses poderá atenuar essa falta de correspondência entre as duas realidades.

No filme Demolition Man o líder político mentia e ignorava a realidade subterrânea, contrariando as vontades e inclinações naturais das pessoas; não sei se a comparação é muito forçada, mas sou levada a crer que em Portugal e na UE também funciona assim.

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A mentalidade que mata…

A respeito deste assunto, leia-se o texto do Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada no jornal i:

Estes novos indignados, que parecem ser muito zelosos no que entendem ser a justiça social, esquecem o mandamento maior: a caridade. Em nome dos pobrezinhos, ofendem a honestidade, a rectidão e a competência de alguém que, entre outros méritos, tem o de ser um dos maiores empregadores do nosso país. É muito bonito dar esmolas aos pobrezinhos, sobretudo se as câmaras da televisão imortalizarem o caritativo gesto do gestor bonzinho, mas é muito mais importante dar trabalho a milhares de mulheres e de homens. Quem tenha feito mais e melhor, que atire a primeira pedra. 

Quando Maria, a irmã de Lázaro, ungiu os pés do Senhor com um perfume “colossal”, houve quem se indignasse: Judas Iscariotes. O evangelista João explica a razão do seu protesto: “não porque se preocupasse com os pobres, mas porque era ladrão”.

Mais um Domingo silencioso e cinzento

O fenómeno que ocorrerá no próximo Domingo é tão surreal e absurdo que, embora possa parecer inútil e penoso falar acerca dele, é imperdoável não o tentar fazer. No dia 25 de Maio, alguns portugueses sairão de casa com o propósito de atribuir votos, concentrando-os em torno de duas ou três candidaturas frívolas e indistinguíveis entre si, com base em nenhum debate de ideias para a Europa – que, por sua vez, também não existem, ou talvez não se revelem à descarada – protagonizado por figuras políticas híbridas e insossas, como manda a liberal-democracia, figuras estas que não nos representam efectivamente mas que ambicionam somente distribuir-se pelos 21 lugares, materialmente afortunados, mas politicamente insignificantes para os destinos da nação.

O surreal e absurdo não é a previsível abstenção, mas sim o ainda considerável número de eleitores que se sente motivado a votar nas actuais circunstâncias. Considerando os níveis de abstenção, perto de uns abençoados 70%, é tentador acreditar que as eleições europeias, grosso modo, contam sobretudo com a participação dos assíduos filiados que vão participando nas tímidas patuscadas regionais e que seriam assombrados por um pesado sentimento de culpa se não acorressem às urnas para cumprir os preceitos desta manobra de entretenimento colectivo e de débil legitimação.

O que interessa sublinhar nesta campanha não é ausência de debates entre os candidatos partidos nos meios de comunicação. O que salta à vista é que a pobreza de ideias que varrem os programas dos principais partidos não justificaria a realização de debates, já que os candidatos ficariam expostos ao ridículo das concordâncias moldadas além-fronteiras, quando questionados relativamente a assuntos europeus, e ao ridículo da intriga quando procurassem ocupar o tempo de antena com falsos antagonismos engendrados pela agenda político-partidária nacional. Silenciar qualquer réstia de esperança num confronto de ideias é a forma mais confortável de livrar os partidos do arco da governação desse tormento que seria ter de enfrentar partidos pequenos com algumas ideias palpáveis que tocam em pontos sensíveis. É mais simples seguir a via de mostrar actividade, mobilizando as claques partidárias para arraiais de pouca adesão popular e de muita encenação popularucha, do que deixar os candidatos “entre a espada e a parede” em matérias como política monetária, imigração, referendos, harmonização fiscal, “inverno demográfico”, segurança interna e segurança externa, etc.

Enquanto os mais votados, em Portugal, dispensam a tarefa maçadora de se posicionarem claramente em relação a estes e outros assuntos, os irremediavelmente enjeitados, condenados à irrelevância gráfica na noite eleitoral, esforçam-se por criar uma imagem demarcada na defesa de causas concretas. Ainda assim, é um esforço em vão; é como tentar consertar um candeeiro avariado numa localidade sem acesso a rede eléctrica. Se queremos mais uma prova de que aqueles que vão a votos no Domingo não conseguem fazer da Europa nada mais do que uma simples central distribuidora de fundos, indutora de dependências e de vícios, basta ler a propaganda eleitoral que nos invade a caixa do correio. Neste caso, atente-se num folheto da coligação Aliança Portugal: “Alguns tentam fazer esquecer que as creches, os lares, os hospitais, as escolas, as bolsas de estudo, a formação profissional, as estradas, o saneamento e até a água que bebemos, têm na sua grande maioria, financiamento de fundos europeus. Também por isso precisamos de estar na Europa, por Portugal.”

Agradeço o esforço de enumeração saloia de tantas conquistas, certamente inspirados pela “Life of Brian” dos Monty Python. Generalidades repetidas como uma espécie de chantagem que pretende deixar qualquer eurocéptico consciencializado da sua ingratidão e imaturidade por revelar tão ousada resistência e fraca empatia para com o Império-Benevolente-dos-Almoços-Grátis. Esta publicidade enganadora que acena com recompensas, reflecte bem quão oca é a ideia da Europa destes senhores.

Um processo de integração internacional pressupõe alguma transferência de lealdade de um centro de poder para outro, o que, por sua vez, pressupõe existência de interacção entre as unidades cooperantes. Ora, aquilo que se verifica é uma confiança excessiva na força das vantagens económicas que tenta construir algo desprovido de uma matriz civilizacional comum, agregadora dos naturais particularismos nacionais. Como afirma Nye, a propósito da necessidade de um sentido de identidade enquanto força de apoio à integração regional: “Quanto mais forte for o sentimento de permanência e maior o apelo à identidade, menor será a disposição dos grupos de oposição de atacar, frontalmente, um determinado mecanismo de integração.” (Nye, 1971, p. 73) Para tristeza daqueles burocratas que se lamentam por ainda não terem encontrado a receita para o sucesso, a autêntica confiança dos povos europeus não é coisa que se decrete. Não se enfrenta com a mesma leviandade com que se regulam autoclismos, rótulos de alimentos ou com que se fabricam frágeis estabilidades sociais de subúrbio ou ilusórios igualitarismos de “género”. A lealdade conquista-se e alimenta-se não só de necessidades comuns como também de elementos culturais e religiosos agregadores.

Este trilho em que a Europa avança não é apelativo para o comum dos mortais europeus, não só pela propensão federal que se afigura e pelo carácter nebuloso e labiríntico dos processos. Não é apelativo porque tornou-nos num continente órfão de lealdades de longo prazo, dominado por uma atitude de “nothing to kill or die for, and no religion too”, transformando-nos em bobo da corte no palco internacional. Somos uma Europa subserviente, receptiva à mutilação da sua identidade para servir silenciosamente as exigências daqueles que a sujeitam a uma transfiguração que vai aumentando o desfasamento entre a legislação e aquilo que são os hábitos e expectativas dos povos europeus. Sem esquecer que a dissolução das fronteiras nacionais tem desafiado a especificidade de cada um dos seus membros em lugar de se limitar a potenciar a profícua aproximação dos cidadãos europeus e a abertura e cooperação económica.

A abstenção é uma opção bastante racional e compreensível, considerando, por exemplo, as barreiras inultrapassáveis entre os europeus e o processo decisório, a frieza com que os eleitos se empenham em apunhalar, dia após dia, a herança cultural europeia, e o obscurantismo que vai edificando uma Babel cercada por intenso e permanente lobbying imbatível. Apesar de a abstenção ser, por si só, um importante sinal de apatia e indiferença geradas por todo este processo democrático grotesco, julgo que seria menos inútil (não consigo dizer «útil”) optarmos por enviar sinais mais expressivos que não se prestem a ser objecto de interpretações dúbias e aproveitamentos ideológicos ou didácticos, em tom tutorial, por parte dos comentadores habituais. Sinais mais expressivos passam por votar em partidos que vão no sentido da reacção ao que a União Europeia tem vindo a promover.

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Pensamento único e medo da descompressão

Passaram somente dois dias e parece que alguns portugueses já estão a sofrer com a potencial “descompressão” no domínio da comunicação social. Os típicos papagaios apáticos que descarregam opiniões a partir de títulos e subtítulos desonestos e que partilham rotineiramente as mais batidas crónicas incoerentes, sustentadas pelos jornais do costume, são os mesmos a cuspir para cima do trabalho daqueles que tentam destoar da mediocridade. Subitamente, muitos se interessarão por passar a pente fino os títulos, os entrevistados, o mérito dos colunistas ou as escolhas editoriais em geral.