O mês de Setembro é invariavelmente o mês das depressões, da preguiça no trabalho, do desnorte meteorológico e do embate com a realidade, por vezes desagradável, que não foi apagada pela breve pausa sazonal. Não vale a pena ter ilusões; todos os anos sucede-se o mesmo desânimo por não se ter descansado o suficiente, por não ter todos os biscates e bricolage em ordem, por não se terem lido todos os livros reservados para o Verão, por não se terem feito as revisões antes do novo ano lectivo, entre outros clássicos de férias mal aproveitadas.
Mas as férias de Verão também podem servir para pensar no que se fez ou deixou de fazer ao longo do ano, podendo propiciar uma reflexão sobre os feitos, ou a falta destes, dos governos dos últimos 40 anos. E não há dúvida de que se existem pessoas que nos ajudam a lembrar que Setembro é o mês depressivo – aquela pausa existencial em que pensamos sobre a nossa inutilidade ou sobre a estupidez humana em geral – essas pessoas são António José Seguro e António Costa. Esta minha prosa vai ser longa mas, para alívio dos leitores, informo já que não será dedicada às duas individualidades mencionadas. Para além de longa, também poderá soar um tanto ou quanto arrogante, pelo que confesso também não estar imune ao problema que vou apontar e passar a explicar. E que problema é esse? Entre as muitas coisas penosas que se podem apontar à democracia portuguesa, vou referir-me aqui ao problema das alianças frágeis que são assentes nos problemas/inimigos que se combatem em comum. Dito desta forma, parecerá um problema demasiado genérico mas é mesmo essa a minha intenção. Por eu considerar que este problema se alastra aos mais diversos domínios, é que o aponto como um dos maiores entraves ao desenvolvimento, sobretudo político e intelectual, no nosso país.
Comecemos por algo muito óbvio e que nos toca a todos. A perpetuação e a força dos esquemas rentistas que dominam a política e economia portuguesas, só são possíveis graças ao prevalecente princípio que norteia esta oligarquia inabalável: o amigo do teu amigo, meu amigo é (ver exemplo da Sociedade Portuguesa de Autores que aplaude um governo de PSD e CDS quando as decisões lhe são favoráveis). Por outro lado, deve haver algum princípio prejudicial que contribui para enfraquecer a posição, já de si desfavorável, ocupada por todos aqueles que não usufruem deste domínio e manipulação públicos. A debilidade da sociedade civil e de potenciais elites de oposição – e sim, estou a pensar na Direita – explica-se, em grande medida, por um péssimo princípio que só conduz ao marasmo e à cobardia a longo prazo: o inimigo do meu inimigo, meu amigo é. Aceitamos estar sentados na roda de qualquer grupo que afirma combater algo que também queremos combater, mas nem nos incomodamos em tentar perceber primeiro quais são os ideais (se é que os tem) desses aliados. Muitos conseguem repetir frases já incontestadas, tais como “o socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros”, mas quantos destes estarão dispostos a perceber que a amizade que mantenho com o inimigo do meu inimigo dura até deixar de existir este inimigo comum? Não digo que não seja necessário, em certos momentos críticos, ceder em alianças temporárias com o propósito de combater um mal maior. O que torna tudo perigoso é deixar-se ficar inebriado ou conformado com esta cedência que pode implicar falta de programa próprio e de inibição da identidade própria; aqui estará parte da explicação para a mais que notória ausência de heterogeneidade de ideias e de atitudes características de quem tem governado.
É ilusório confiarmos que alguém pode ser nosso aliado simplesmente porque, por exemplo, também se indigna com o desmazelo municipal relativamente à conservação dos arbustos do Jardim da Praça do Império ou, noutro exemplo consensual, também concorda em punir “jovens” que perturbam a ordem pública em encontros como aquele que decorreu, no passado mês de Agosto, no centro comercial Vasco da Gama. E é ilusório confiar porque, ainda que possa haver coincidência de ideais quando se criticam temas deste género, as alianças de longo prazo não podem ficar limitadas ao comentário de episódios pontuais, de fácil repúdio, sem uma coerente doutrina de fundo e uma identidade distinta que se assuma publicamente. Não é confiável manter a confortável postura de dizermos ao que nos opomos, em vez de admitirmos o que nos move. Pegando nos mesmos dois exemplos: entre aqueles que defenderam a conservação dos tais arbustos, alguns estariam movidos pela sempre apetecível (e saudável) vontade de embirrar com António Costa, enquanto outros estariam movidos por patriotismo que costumam inculcar aos mais variados temas. Quanto ao incidente que decorreu no Vasco da Gama, existirão pessoas que encontram aqui mais uma razão para discutir problemas de imigração e de integração, enquanto outras reagem sem qualquer formulação de ideias mas com natural indignação.
Existem demasiadas pessoas a dizerem para onde não querem ir e a omitirem o destino que têm em vista. Não se soluciona a irrelevância europeia no palco internacional através da repetição exaustiva da lista de defeitos e ameaças da actual sanguessuga legislativa e fiscal; é preciso que cada um verbalize se defende, por exemplo, uma federação de Estados, orquestrada a partir do centro, ou um revigoramento das nações, compatível com uma desejável cooperação económica e comercial.
Aquela atitude (identidade por oposição) é um erro básico suficiente para ser-se humilhado, imaginemos, frente aos investidores do programa “Lago dos Tubarões”. Um empresário tem de definir com rigor para onde quer ir; se sabe que quer comercializar sabonetes, não pode tentar conquistar investimento de alguém, começando por dizer o que não quer fazer. Exemplificando o que acontece no domínio dos negócios, é fácil compreender a rapidez com que se seria esmagado ao escolher o caminho inconcebível de criar uma visão e uma missão que estivessem alicerçadas numa enumeração daquilo que não se quer fazer/criar/comercializar (aspiradores, brincos, batatas fritas, viagens, etc, etc, etc…). Infelizmente, no domínio das ideias parece não existir percepção tão imediata dos danos causados por essa atitude, daí que ela seja tão perpetuada.
Um corpo oco acaba por ceder à pressão exercida pelos outros. E, ao mesmo tempo em que se perdem de vista os ideais de referência, também se dá uma descida dos padrões de exigência na hora de distinguir o certo do errado. Nomeadamente, basta que alguém critique a elevada carga fiscal para se tornar em modelo máximo das virtudes. Nas palavras de Chesterton: “A única maneira de discutir o mal social, é obter primeiramente o ideal social. Todos vemos a loucura nacional. Mas o que é a sanidade nacional?” Voltando à ideia inicial das ilusórias alianças firmadas com o inimigo do nosso inimigo, parece-me útil lembrar que o actual governo de coligação ainda não teve tempo de empreender mudança alguma no que toca aos facilitismos no acesso ao aborto. Talvez porque a gestão das maiorias democráticas não é compatível com a existência de “coluna vertebral” e com a afirmação de princípios inabaláveis ao longo do tempo.
O problema das uniões sustentadas à conta de oposição a um inimigo comum é que se esgota com o desaparecimento deste. Quem insiste em fazer isto, – admita-se que todos nós, mais ou menos vezes, caímos nesta tentação – procura fugir aos seus próprios fantasmas, procura explorar formas de aceitação social ao construir pontes mas, sobretudo, procura esconder a alternativa em que acredita (ou partes mais problemáticas desta) de forma a não ser penalizado social e/ou profissionalmente. Não é só entre partidos políticos que se verificam estranhas cedências e alianças mantidas à conta de programas constituídos por slogans e palavras seguramente ambíguas. Também grande parte das crónicas de jornal são aquilo que a elite dominante quer que elas sejam: subsiste-se numa agenda de negação e de vazio. É tão fácil como começar a falar sobre o estado do tempo num elevador ou como dizer mal de alguém com as vizinhas; as vizinhas maldizentes detestariam-se mutuamente caso não existissem “podres alheios” a justificar muita conversa barata de conveniência.
Através de “identidades por oposição” (expressão inventada por mim às três pancadas) logra-se de uma ampla rede de contactos que podem simpatizar, conviver ou delegar-nos para a esfera da indiferença concedida aos irrelevantes, inofensivos ou banais. Contudo, há um enorme preço a pagar. Pode cair-se no risco de ceder à hipocrisia ou à omissão da verdade para gerir a larga audiência de contactos. Se a situação passa a gerar desconforto pessoal, fica-se sozinho entre a multidão de falsos aliados.
Para tentar facilitar o entendimento daquilo que tratei até aqui, vou terminar com uma tentativa esquemática que começa no ponto em que identifico este conformismo de identidades até ao ponto em que esse conformismo é esmagado pela sua própria inviabilidade:
Num primeiro momento, as ideias agregadoras são imprecisas e vagas, bastando encontrar consensos com base naquilo que se considera estar errado e a funcionar mal.
Num segundo momento já se poderá pressentir risco de cismas e desagregação face à possível extinção do ódio de estimação; vai deixando de se justificar a oposição a um inimigo comum que, enfim, desaparece…
Depois disto, ocorre a quebra do cimento que unia um grupo muito diverso. É o momento por excelência em que “se zangam as comadres e se sabem as verdades”.
Num quarto momento, todos enfrentam a desagregação e o desgaste de ideias. Abraçam-se confianças de base e há busca desesperada por ideais autênticos e crenças fortes. É a fase de reafirmação e de valorização em reacção ao vazio e aos fracassos anteriores.
Num quinto momento, já se poderão identificar unidades fortes e distintas com capacidade de defender as ideias que os fazem subsistir. A sociedade já não deixa esmorecer os valores que garantiram a sua revitalização.
Colocando a hipótese disto ser um ciclo inevitável, passado o fervor que valoriza as razões de saúde e consolidação da “pólis”, poderá haver uma banalização ou descuramento dos ideais numa tentativa de fuga a debates e conflitos desnecessários. À medida que se negligencia a prioridade dos ideais como bússola da sociedade e da política, voltará a ganhar espaço a cobardia da indiferenciação e o conformismo que se satisfaz com a crítica vazia, com a maledicência, propiciando a gradual vitória do Império do Nada. A minha esperança para Outubro de 2015 – e, até lá, teremos muitos oportunidades de sublinhar por que é que os vários partidos políticos estão na fase se esgotamento e de falta de identidade própria – é que haja uma desagregação fatal que ponha estas fraquezas em evidência. Por estas e por outras é que, no meu modesto entender, será estúpido ver pessoas inteligentes a fazerem campanha por Passos Coelho em oposição a qualquer um dos Antónios.