Uma ideologia qualquer

Permitam-me, em jeito de discurso, cumprimentar os meus camaradas João Silva e Bernardo Blanco, com quem me estreio no Insurgente. Acompanho-os agora como acompanhei antes, no late Tempos Livres, um blog de liberais imberbes que ainda teve uma dose respeitável de likes e partilhas no Facebook – nada mau. Os imberbes, e falo agora sobre o João e o Bernardo, estão mais do que preparados para ser insurgentes graúdos, como se vê bem nas postas que linkei acima. Agora, neste momento Hello World, venho fazer valer a minha barba.

E não haverá melhor abertura para esta estreia do que afirmar que há alturas em que é melhor ficar calado. E há. Não é preciso ser governante, político, ”intelectual” ou um simples blogger para sentir a pulsão, que desconfio ter contornos existenciais em muitas cabeças, para se ter um forno industrial de opiniões prontas a sair sobre o assunto do dia. É na realidade uma tarefa simples, especialmente se tivermos inimigos bem identificados e se acharmos que algo de muito grave acontecerá – a queda do Ocidente, da UE, a vitória do marxismo cultural, do Islão, da islamofobia, do feminismo radical, do patriarcado ou do André Ventura – se o post não for publicado o mais depressa possível. É uma pulsão que se dá maioritariamente entre a saída do trabalho e o jantar, após breve consulta das notícias do dia, e, quem não estiver pronto a tomar uma posição heróica, peremptória e fundamental sobre seja que assunto for está, naturalmente, em apuros.

Os anos têm sido intensos em assunto e as disputas mais ou menos ideológicas à direita têm-se debruçado sobre temas que pouco dizem respeito à realidade indígena. Desde Brexit a Bolsonaro, alguma direita liberal ou conservadora tem-se obcecado sucessivamente em dar resposta a questões que não se colocam em Portugal; curiosamente, algumas clivagens revelam-se mais intensas quando se referem a assuntos externos. Quanto aos internos, reina uma rejeição epidérmica da Geringonça que parece ser suficiente para dar corpo a um discurso político. A minha humilde explicação para o fenómeno tem pouco de fenomenal: desde que o tema Sócrates foi delegado à justiça e o PSD\CDS se deixou traumatizar sob um programa de ajustamento que apoiava e abominava que, dentro e fora dos partidos, se está ainda a procurar dar corpo a um rumo novo. Dou o processo como natural, ainda que por vezes doloroso: o ciclo político nacional e internacional mudou bastante desde 2015 e ainda há muito por aprender sobre o que aí vem.

Continua a ser difícil, contudo, ser capaz de me pronunciar sobre todo o acto de governos aquém e além-mar sem antes exercer alguma reflexão sobre os meus valores. Ela levará, eventualmente, mais tempo, e a realidade dedica-se pouco a libertar-nos do incentivo a macaquear respostas feitas. As barreiras ideológicas que se esboçaram nas últimas décadas estão em movimento, e, ainda que muitos se limitem a ficar onde sempre estiveram, estes dão por si, pelo movimento do próprio chão, em pólos opostos. O desafio para quem entende, como este vosso amigo, que deverá ter um ou dois cêntimos a acrescentar sobre o que se passa por aí, não é trivial. As posições que tomamos também se formam a partir de aliados ou adversários cuja constância é assumida; a ideia de um ressurgimento da direita nacionalista por todo o mundo não era evidente há 10 anos atrás. Era relativamente fácil desenhar as ”linhas de falha” entre os blocos político-ideológicos, e o exercício de crítica e afirmação política era mais fácil. No entanto, surgem à direita e à esquerda novas divisões internas que, aparentemente, nos levam a ter de tomar decisões em cima da hora.

Sobre isto diria, à partida, que a ideia de que devemos sempre tomar posição sob pena de sermos vítimas de ‘fraqueza’ ou desânimo insustentável é uma gigantesca falácia. O recato é recomendável, principalmente quando alguns desejam interrompê-lo para construir narrativas baseadas na importação de fenómenos. Desde considerar o Observador como inequívoco bastião do populismo direitista até à divisão da direita nacional entre bolsonaristas e haddadistas, não faltaram desculpas para se desviar os debates nacionais para focos alienígenas. A culpa, como afirmei acima, prende-se com a falta de uma narrativa endógena à direita portuguesa. As consequências, contudo, estão à vista, e António Costa ameaça-nos com uma bela maioria absoluta em 2019.

Não é um dever ético alinhar em debates cujos termos estão enviesados à partida. De outra maneira, ficamos rendidos a todos os maioritarismos que a história nos empresta, sabendo o quão desastrosas podem ser as consequências destes. Para um liberal, o recato não será necessariamente irresponsável. Se lhe sobrar dever, será o de contestação dos termos do debate. E começará bem se contestar a sucessiva definição de todo o santo tema como ”civilizacional”. Não é só Graça Fonseca. Todos os debates sobre o clima internacional têm-se enquadrado como civilizacionais e absolutamente determinantes. Os dilemas estratégicos e ideológicos que a direita enfrenta não têm uma dimensão abaixo de metafísica: é tempo de grandes decisões, grandes protagonistas e grandes movimentos históricos.

A liberdade, no entanto, não foi feita para ser defendida à conta da providência de alguns. Já se inventaram, como se continuará a inventar, todos os artifícios possíveis para a limitar em seu nome. É uma ideia irresistível, mas não a devemos confundir com ”libertação”. A liberdade é um estado precioso, precário e normalmente temporário; um intervalo entre ”grandes decisões”, onde nos deixam tempo e espaço para nos dedicarmos às pequenas. Por isso, defendo os ultramontanos, os alienados, os incluídos, os cisgénero, os transgénero, os monogâmicos e os poligâmicos. É o único contexto onde podemos, confortavelmente, compreender cada um destes e outros grupos e, quando nos forem antipáticos, tolerá-los. Ela perde-se sim, quando estes se tornam em instrumentos políticos na cauda de movimentos profundos e ”transformadores”. Perde-se sim, no meio da jacobinice que sempre infectou a esquerda e agora alguma direita, sedenta de colocar as suas revisões da história à cabeça do Estado. Foi sim, em liberdade, que vimos o mundo crescer em prosperidade e diminuir em distância, que vimos modos de vida a multiplicar-se e a coexistir e vimos democracias surgirem e consolidar-se.

O sistema não é mau de todo não só porque permite uns e outros conviverem, mas porque me permite a mim duvidar sem medo de ser desleal às concepções favoritas da minha comunidade, do meu grupo ou do meu Estado. Defender e proteger esta liberdade da embriaguez da esquerda e de quem a imita também não basta. Ela não deixa de ser um projecto aspiracional e sempre promissor. É muito mais do que as caricaturas que se compram à esquerda e nalguns jornais arregimentados. É fonte de prosperidade e, surpresa, de ”civilização”.

Finalmente, devo dizer que desconfio de quem clama aceder à realidade apesar de todas as ideologias, sistemas de pensamento ou preconceitos de outra ordem qualquer. Desconfio de quem já entendeu isto tudo, de quem sabe para onde isto vai e de quem sabe como levar isto para lá. Naturalmente, desconfio de mim mesmo. Na dúvida, escolho a liberdade e deixo a irresponsabilidade para quem procura ”grandes decisões” – para quem procura, por fim, delegar num herói qualquer a persecução do Bem. Para isso serve uma ideologia qualquer. E a liberdade não paira aí.

3 pensamentos sobre “Uma ideologia qualquer

  1. mg42

    O Joaquim daria um grande piloto de aviação, quando fosse pra tomar decisões do que fazer à sua vida perante uma falha critica. Entre tomar uma decisão e divagar pelas “ideologias” dos manuais técnicos, a filosofia do posicionamento das manivelas e dos botões do painel de instrumentos, e a crise existencial em receber as instruções autoritárias da torre de controle a imiscuir-se nas suas multiplas perspectivas sobre o ângulo de queda do avião, a quantidade de combustivel, e o local de aterrar ou amarrar, de forma que não fosse do desagrado dos passageiros, de forma a poder ser “tolerante” e respeitar os desejos de todos os “ultramontanos, os alienados, os incluídos, os cisgénero, os transgénero, os monogâmicos e os poligâmicos.” de dentro do avião.
    Tendo consigo a inspiração e unica certeza da “liberdade”, liberdade” e mais “liberdade”. Tenho a certeza que tomaria a decisão certa, ao ser um moderado patológico racatado, desconfiando de si proprio e não fazer nada pelo risco de ser um “irresponsavel” ao ter que tomar “grandes decisões”. Isto é se realmente chegasse a alguma conclusão antes de se despenhar, dada a divagação reflexiva dos meandros e cogitações da existência humana. Patati patatá…

    Digo-lhe que foi bem escolhido , passou a insurgentinho com distinção . Parabéns, brinde com com de leite para festejar.

  2. mg42

    Peço desculpa o seu nome é Jorge . Pronto agora já pode ir tomar o copinho de leite descansado para brindar.

    Não tem de quê.

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