Enquanto jovem, sou um traidor de classe. Não sei bem de que classe mas sei que a traio. Isto porque “jovem” é uma daquelas palavras cuja elasticidade semântica permite os mais diversos malabarismos poéticos. O jovem tanto é aquele ser primitivo para o qual a bebedeira representa o mais elevado grau de existência, como é o agente do progresso e de um mundo melhor. A única coisa comum a todas as definições é que o “jovem” não pode ter mais de 30 anos. A partir dos 30, a bebedeira passa a ser sinal de “disfuncionalidade” e aqueles que acreditam que vão mudar o mundo viram, grosso modo, idiotas (consumandos, pelo menos).
Traio a classe porque permaneço impecavelmente abstémio no que toca à esbórnia e, de modo geral, apenas os encantos dionísiacos fariam com que algo como mudar o mundo me passasse pela cabeça. Para minha surpresa, pressionam-me mais para ser um agente da mudança do que para fumar um charro, coisa que me indigna. Se é para fazer algo, tem de ser feito em condições. Julgo-me perfeitamente capaz de fumar um charro mas não sei se sei, nem se quero, mudar o mundo.
Ajuda não me falta, contudo. A sapiência juvenil é reiterada aos pontapés e todos tem algo a dizer sobre o jovem enquanto agente da mudança. O discurso, por norma, resulta de uma curiosa mistura de retórica “web summit” com conteúdo digno do acampamento do Bloco. Usualmente, é proferido por seres que gostam de mascarar o seu ressentimento em eufemismos: não são jovens mas têm “espírito jovem”.
O mito fundador desta gente é o maio de 68. Pelo que entendo, foi uma espécie de Pentecostes herético. Se em 33 o Espírito Santo foi derramado sobre os discípulos pela primeira vez, em 1968 foi a vez do “espírito crítico” ser derramado sobre a juventude. Do nada, o jovem passou a ser portador de uma ímpar sabedoria. Até 2 de maio, drogado; depois de 2 de maio, salvator mundi.
O cristianismo primitivo assistiu a fenómenos como o de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que se apresentava como um dos convertidos por São Paulo mesmo tendo vivido no século V. O secularismo progressista também assiste a uma série de herdeiros de 68 cuja proximidade ao movimento faz com que o Areopagita pareça honesto. As viúvas de 68 narram apaixonadamente os feitos dos jovens empoderados, que entenderam as injustiças de uma sociedade que os aprisionava e, num ato de salutar rebeldia, saíram à rua para mudar o mundo.
O que as viúvas não conseguem entender é o repentino término da “revolução do desejo”. O que freiou o avanço dos jovens empoderados? Qual foi o empecilho civilizacional que impediu que as preces dos jovens franceses continuassem a ser ouvidas? Que revolução é esta que terminou no conforto do lar burguês? Bem, a minha hipótese é a seguinte: ficaram cansados. O mesmo tédio daquela vidinha chata de gente rica que está génese das manifestações serve para explicar o fim das mesmas. Afinal, brincar à “comuna de Paris” é giro mas cansa.
E é esse fenómeno que explica a própria viúva de 68, esse ser de “espírito jovem” que, entediado com a sua impotência, quer ensinar a rapaziada a salvar o mundo. Tudo isto cabe na fórmula mágica reiterada aos pontapés pelos pedagogos contemporâneos: “pensamento crítico”. O crítico funciona aqui como o social em “justiça social”: serve para negar o antecedente. “Pensamento crítico” é, essencialmente, um eufemismo usado para legitimar ativismos poucos informados.
A metodologia dos apologistas do “pensamento crítico” é peculiarmente curiosa: passa por desconstruir as ideias que os jovens ainda nem conhecem. Tive o prazer de assistir ao processo em tempo real quando dei por mim a ouvir uma abordagem crítica da Estética, abordagem esta que ia “abrir horizontes” e fazer com que pensássemos fora dos limites estabelecidos pelas análises históricas da disciplina. Não costumo confiar em pessoas que querem abrir horizontes, mas lá tentei entrar nessa de pensar fora da caixa. Resumindo: duas horas depois, eu era perfeitamente capaz de desconstruir a noção tradicional de experiência estética e, como brinde, de desvelar o racismo acobertado pelo chapéu de Malania Trump. Entretanto, não faço a mínima do que seja a noção tradicional de experiência estética.
O fenómeno tem-se repetido e a minha conclusão tem sido confirmada: “pensar criticamente” é apenas uma forma de justificar a substituição dos clássicos pelos autores que são mais simpáticos ao pedagogo. Essa coisa de entender o mundo implica um esforço que não está ao alcance do jovem. Para quê ler Aristóteles se pode ler a opinião de Judith Butler sobre Aristóteles? Como é que ia sobrar tempo para mudar o mundo se os jovens tivessem de se entregar à maçada de o entender? Afinal, uma análise crítica dos clássicos traz à tona o pensamento patriarcal, esclavagista e racista que serviu para para legitimar séculos de opressão e consolidação de estruturas de poder.
E é neste tom que se substitui a educação pela ideologia, o estudo pela indolência doutrinária e o pensamento pelo ruminar de chavões progressistas. E assim se formam os jovens que vão mudar o mundo. Jovens que nunca leram Aristóteles mas sabem pensar Aristóteles criticamente. Jovens que nunca leram Aquino mas sabem pensar Aquino criticamente. Jovens que nunca leram Kant mas sabem pensar Kant criticamente. Só não sabem pensar Foucault e Horkheimer criticamente.
andamos semprte meio século atrasados…
Isto era suposto ser um texto em contraposição do fútil pedantismo intelectualoide dos jovens inteligentinhos, certo, CERTO ?
Mais dos inteligentinhos que legitimam os jovens inteligentinhos
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