Reparo numa situação caricata. Vejo que se verifica, como em poucas vezes, um consenso relativamente à crítica aos pais que não vacinaram os miúdos. Mas a gravidade da situação está na hipocrisia patente em criticar a atitude, olvidando a ideologia. Se um casal de rednecks do Sul dos EUA deixasse – como muitos deixam – morrer uma criança por negligência de tratamento médico, atitude esta consequência do seu conjunto de valores, as redes sociais e os jornais estariam recheados de notícias e comentários contra o (suposto) tenebroso obscurantismo dos cristãos. Partir-se-ia, portanto, da atitude para a ideologia que -supostamente – a causa. Ora eu ainda não vi ninguém a expor o grau de demência dos hippies naturalistas que lançam vivas à homeopatia e outras formas de banha da cobra – só falta, tendo em conta os tempos, exigirem terapias de Reiki no SNS – e que preferem vacinar os cães em detrimento dos filhos. Talvez sejam os mesmos que enchem o facebook com máximas que nos explicam que os animais são preferíveis às pessoas. É a modernidade que, além de desumanizar, amplia nichos circenses, legitimados por leituras dignas do Prof. Mambo e pelos partidos e agremiações que conhecemos de outras festas, numa eterna batalha contra forças secretas e, acima de tudo, contra o Homem, essa criatura repelente.
O caro leitor já apanhou, certamente, sujeitos destes à mesa – se não apanhou, certamente tem sorte. Eles têm dietas que os imunizam das doenças, têm tratamentos “com milénios de história” que os curam delas – o que refuta o ponto anterior, mas quem falou em lógica? Eles amassam a sua com a autoridade moral de quem se libertou de todos os químicos que o capitalismo lhe enfiou pelo bucho e de todos os medicamentos – inúteis pela certa – que uma consipiração que começa na indústria farmaceutica e descamba nos Bilerberg o obriga a tomar. Você, caro leitor, é uma besta sem auto-consciência espiritual que se vai deixando levar pelos homens do poder. Essa dorzinha já os tipos na Babilónia sabiam curar. E se não for caso de médico chama-se um xamã. Eles sabem, pois. Leram uma vasta bibliografia de livros, panfletos e artigos da internet, foram a inúmeros colóquios, workshops e acampamentos, estando portanto bem mais habilitados que o vulgo – os médicos não contam, pois estão comprados – para dissertar sobre a saúde das massas. O mundo apelida-os de loucos – Matias Damásio é sempre apropriado nestas situações – mas loucos somos nós.
E, por meio desta loucura auto-infligida – choca-me a leviandade com que se lança no escárnio o sujeito que vai implorar ao Santo por ajuda, respeitando, ao mesmo tempo, gente que, além de prejudicar terceiros com o seu obscurantismo, ainda faz questão de tentar institucionalizar a coisa. E vem sempre um idiota útil – Lenine sempre teve uns apelidos porreiros para distribuir – pregar o respeito. Vamos lá ser coerentes. E além da coerência, sempre vital, admitir que tratamos de um problema de saúde pública, em que o suposto argumento da liberdade individual não escuda terceiros do potencial epidémico da questão da não-vacinação, nem protege as crianças à guarida desta gente, em questões como a de outros tratamentos ou na da nutrição. Evocar argumentos Rothbardianos sobre a legitimidade da negligência, além de suicídio assitido para o movimento liberal – assistido por Rothbard – em nada ajuda a um debate cada vez mais importante na sociedade actual e que não se pode guiar por teorias sem qualquer aplicação viável ao nosso mundo. Enquanto aguardo as vossas reacções vou ali ver se os meus orixás me tratam esta dor nas costas.
E depois é preciso perceber se o extremar das posições progressistas (sempre profundamente minoritárias, mas muito vocais) não nos conduzem elas ao extremar das soluções governamentais. E isto é o que me parece que está a acontecer, como ainda ontem ouvi representantes de médicos a defender a vacinação obrigatória. Ora, sou contra tal medida.
Entenda-se, não sou contra a vacinação. Muito antes pelo contrário. Mas mais uma vez oiço gente defender o aumento do estado. Precisamente o contrário do que defendo. Entendo que o papel do estado pode ser desempenhado com legislação específica e sem leis generalistas com cheirinho a despotismo. Porque não defender a inclusão da vacinação nos planos de emergência (que já existem) para a saúde pública? O Estado pode então decretar vacinação obrigatória caso a caso, consoante as necessidades do momento. E até reduzir a despesa em programas de vacinação que se poderiam provar prematuros num ambiente de vacinação obrigatória.
Hoje o Centro de Saúde estava cheio de mãezinhas hippies com os petizes de 5 a 9 anos. Tudo prá vacina, que as teorias são muito lindas mas morreu uma miúda, e agora é a sério.
> E além da coerência, sempre vital, admitir que tratamos de um problema de saúde pública, em que o suposto argumento da liberdade individual não escuda terceiros do potencial epidémico da questão da não-vacinação.
O que é engraçado é que a história da saúde publica é sempre desculpa para forçarmos outros a fazer qualquer coisa, neste caso vacinação, mas pode vir de outra forma qualquer e logo o pessoal de direita recorre a grandes argumentos a favor dos cuidados de saúde socializados. A questão seria muito mais simples se a vacinação fosse 100% eficaz(em que não haveria qualquer discussão) ou a vacinação não tivesse qualquer risco.
Mas isto tudo não passa de um não-assunto. É apenas um pequeno surto de sarampo, a taxa de mortalidade em populações bem nutridas é baixíssima (perto de 1 em 1 milhão).
David, os seus números das taxas de mortalidade estão um pouco desfasados dos que colhi em algumas publicações. Em crianças normais a mortalidade anda nos 1 a 2 casos por cada 1000 infectados, nas crianças subnutridas podemos ir para números mais elevados como 3%.
Fonte dos dados: https://doi.org/10.1086/377712