a martelo e à traição

Se há aspecto que tem de mudar em Portugal, por uma sociedade decente como agora é moda dizer, é o funcionamento do Estado que, hoje, com frequência se comporta como agente de terror. O exemplo que se segue, outros haverá, é apenas um exemplo que aqui trago à liça. Refiro-me em concreto à situação indefinida em que o Estado português mantém, há mais de um ano, 114 médicos internos a quem, ao abrigo de um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto (sendo o resolutivo incerto determinado pela conclusão da especialidade médica, que à data de assinatura dos contratos de trabalho era definido como “um acto único de formação médica especializada”), a administração pública virou costas. Pessoas a quem a administração pública, ainda no anterior Governo, sonegou direitos fundamentais, aplicando retroactivamente uma nova lei de internato médico, sob pressão corporativa da Ordem dos Médicos, e sem cuidar do que estava a fazer.

Já aqui expliquei como se processa a formação médica em Portugal. Também já aqui dei conta da grosseira manipulação das estatísticas que a Ordem dos Médicos tem vindo a promover, inquinando as políticas de saúde em Portugal. Naturalmente, todos temos direito à nossa opinião, na saúde como em tudo o mais, mas não aos nossos factos. De igual modo, poderemos concordar ou não se o Estado deve monopolizar a formação médica, e se deverá ou não facultar vagas de especialidade médica a todos os internos formandos. O que não podemos, no entanto, nem aceitar nem tolerar é que seja o Estado o primeiro a cometer a ilegalidade e o rasgar de contratos sem justa causa. Porque hoje é com aqueles, amanhã será connosco. É certo que é para estas situações que existe a justiça, se ao menos esta funcionasse. Mas a justiça não funciona no nosso país. E assim resta um enorme muro de silêncio. Resta ainda a incongruência de quem, tentando encobrir o crime, desajeitadamente contribui para se auto incriminar.

A propósito da situação daqueles médicos, o actual Governo abordou-a de forma muito particular no Orçamento do Estado para 2017, promulgado por Sua Excelência o Presidente da República, no qual lhe dedicou um artigo por completo (art. 38º). Nesse artigo, especialmente dedicado aos 114, postula que “[O] Governo, em articulação com a Ordem dos Médicos e as faculdades de Medicina, define as condições necessárias para que as vagas de ingresso na formação médica especializada assegurem o acesso a todos os médicos internos” desde que cumpridos os requisitos de idoneidade formativa definidos por órgão emanado da Ordem dos Médicos. O referido artigo do OE2017 é claro neste ponto, ainda que nos restantes configure uma trapalhada quase ininteligível. Quem escreve assim das duas uma: ou não sabe escrever, ou assim escreve para, no fundo, fazer de conta que alguma coisa escreveu. Ou ainda, para dar uma no cravo e outra na ferradura. Dividir para reinar.

Entretanto, com data de 20 de Dezembro passado, poucos dias antes da promulgação final do OE2017, o mesmo Governo, pela pena de Mário Centeno e Adalberto Campos Fernandes, aprovou um despacho (89/2017), hoje publicado em Diário da República, no qual se estipula que aqueles médicos “podem realizar a prova nacional de seriação de 2016, para escolha de vaga de formação específica, sem necessidade de rescisão prévia de contrato e, em caso de obtenção de vaga, iniciam a formação específica a 1 de julho de 2017”. Ou seja, para além de contraditório face aos termos definidos no artº 38º do OE2017, o despacho 89/2017 é caricato por um outro motivo: tendo sido publicado a 3 de Janeiro de 2017, e sendo datado de 20 de Dezembro de 2016, a prova nacional de seriação de 2016 à qual se refere ocorreu um mês antes a 17 de Novembro. Um despacho rebobinador! Cronologicamente inverosímil. De tão grotesco que é, dá vontade de perguntar ao senhor ministro da saúde se acaso sabe do que assinou? Porque se isto, consciente ou inconscientemente, não é um Estado de má fé, do pós-verdade ou do raio que o parta, então, vou ali e já venho. Hoje são estes, amanhã serão outros. A martelo e à traição. O estado a que chegámos. O da trafulhice institucionalizada.

5 pensamentos sobre “a martelo e à traição

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