corporativismo no seu esplendor

“Ordem dos Médicos lamenta que 160 jovens fiquem sem acesso a especialidade. Ordem critica o elevado número de médicos formados em Portugal e volta a apelar a uma diminuição do numerus clausus.”, no Público 21/06/2016.

“Governo promete pagara horas extraordinárias aos médicos a 100%. O Ministro da Saúde comprometeu-se hoje a alterar o valor do pagamento das horas extraordinárias dos médicos, actualmente pagas a 50%, no próximo Orçamento do Estado”, no Económico 22/06/2016.

Se há ordem profissional com efectivo poder corporativo em Portugal, é a Ordem dos Médicos (OM). Ao longo dos anos, a OM boicotou sempre (e com sucesso) a abertura de cursos de Medicina no ensino superior privado, assim restringindo o número de potenciais médicos. E mais recentemente, conseguiu até, finalmente, vedar a formação de médicos especializados, restringindo o número de médicos especialistas. O próximo passo é fechar ainda mais o acesso à profissão, por via de uma eventual redução do “numerus clausus”.

A OM alega em sua defesa que há médicos a mais em Portugal. E, de facto, as estatísticas internacionais habitualmente produzidas para avaliar do número de médicos em cada país assim o indica. De acordo com a Economist (fonte: Pocket World in Figures 2016), que tem como fonte a OCDE, há em Portugal 4,1 médicos por cada 1000 habitantes, mais do que na Alemanha, em França ou no Reino Unido. O problema é que a fonte primária destas estatísticas é…a própria OM que, sendo o “gatekeeper” do sistema (nenhum médico em Portugal pode exercer sem a sua autorização), tem um interesse velado em sobre-estimar o número de profissionais em efectivo exercício em Portugal (ainda que eventualmente registados como membros). Além disso, sendo possível confirmar se um determinado médico está ou não habilitado ao exercício da profissão, a OM não faculta contudo uma lista pública de todos os médicos em exercício no nosso País. Esta situação aceitar-se-ia caso a OM não fosse a “gatekeeper” do sistema; mas ao assumir esse papel (de direito e de facto), e sobretudo sendo a fonte primária de todas as estatísticas internacionais sobre o assunto, exigir-se-ia outra transparência. Não sendo o caso fica sempre a dúvida.

Assim, a dúvida adensa-se quando sistematicamente ouvimos e lemos relatos de falta de médicos em Portugal. A dúvida adensa-se quando ouvimos a pretensão da OM em reduzir o numerus clausus no curso de medicina que, sendo apenas oferecido no ensino superior público, exibe uma média de entrada de 18 valores. A dúvida adensa-se e não me convencem do contrário. Ponto. Sobretudo num país onde a estrutura demográfica é das piores do mundo, que envelhecerá severamente nos próximos anos e décadas, e que naturalmente necessitará de médicos adicionais. Isto dito, não tem de ser o Estado a assegurar todas as necessidades formativas deste universo de novos médicos. Aliás, não deve nem pode ser o Estado o único garante do ensino de medicina neste país. Nem de medicina nem de outra coisa qualquer. Mas para que Portugal possa ter uma adequada oferta de médicos (procura não falta) terá de ser alterado o “statu quo” corporativo que hoje, por via do lóbi corporativo da OM, sequestrou a saúde neste País.

A OM boicota a formação de médicos por duas vias. Primeiro, exercendo um poder de lóbi que preveniu até hoje o ensino da medicina no privado. E porquê? Ninguém sabe. Jogadas de bastidores, naturalmente. É, aliás, este monopólio velado que conduz ao segundo poder de veto da OM e que se traduz na definição, no seio dos hospitais do SNS, dos Hospitais EPE e também dos poucos privados que podem formar especialistas, da capacidade e idoneidade formativa de médicos especialistas (isto é, dos médicos que, tendo concluído o curso de medicina e tendo entretanto completado também o ano de internato comum, querem depois fazer uma especialização). Por outras palavras, é a OM que define quais os serviços de saúde, públicos e privados, que têm ou não capacidade formativa dos médicos especialistas a formar. Este reconhecimento de idoneidade tem em conta a estrutura de meios e de profissionais de cada unidade, independentemente da avaliação realizada internamente pelas próprias unidades de saúde (e, presumo, pelos profissionais médicos, obrigatoriamente registados na OM, a quem esta reconhece idoneidade!). E é isto que justifica que no ano passado, segundo a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), para um total de 1730 candidatos a especialista, a OM apenas tenha reconhecido capacidade formativa à abertura de 1569 vagas (quando na realidade as unidades de saúde certificadas para formar médicos especialistas propuseram a abertura de 1664 vagas).

A fim de alterar o “statu quo” é necessário quebrar o poder da OM. É, também, necessário quebrar o monopólio do Estado no ensino da medicina e o quase monopólio na formação de médicos especialistas. Como? Abrindo o ensino da medicina ao ensino superior privado e retirando à OM o exercício exclusivo da avaliação de idoneidade formativa. Pela natureza sensível e altamente especializada do exercício da medicina, entenderia como aceitável a obrigatoriedade de ter médicos como responsáveis máximos dos cursos de ensino e formação. E, portanto, como solução de transição, seria aceitável que a OM tivesse uma palavra a dizer na acreditação dos colegas que viessem a exercer essas funções nas escolas e nos hospitais. Mas não mais do que isso. A afirmação de idoneidade deveria, pois, ser da responsabilidade dos próprios e dos estabelecimentos de saúde que os contratassem. Ponto final. Quanto à ACSS, que nesta matéria é hoje um simples “bystander”, deixaria de o ser, deixando aliás de ser necessária para o efeito (eventualmente para outros também). Com o tempo, teríamos um sistema de saúde com recursos (e números!) adequados, melhor distribuídos entre público e privado, melhor distribuídos entre regiões, mais responsável e mais próximo das reais necessidades dos utentes. Com mais médicos e menos horas extraordinárias – tudo aquilo que a OM não quer.

18 pensamentos sobre “corporativismo no seu esplendor

  1. lucklucky

    O que é que interessa se há médicos a mais? só se o objectivo for estar numa economia dirigida.

  2. Muito haveria a dizer sobre esse facínora que se encontra à frente da Ordem dos Médicos.
    No concurso do ano passado, os médicos que concluiram o Ano Comum e não tiveram vaga na formação específica poderão, única e exclusivamente, agradecer ao facínora que vetou a abertura das vagas propostas pela ACSS. Tudo isto pode ser constatado num comunicado feito pela ACSS ao qual o palhaço nunca respondeu.
    Foi mais uma das guerrinhas que o facínora criou com o anterior Governo.
    Felizmente agora temos a geringonça, o partido que o facínora não se coíbe de apoiar publicamente (podemos ver fotos dele no último congresso do PS no fb pessoal).

  3. Joao

    Várias razões por não haver mais idoniedades formativas e que explica haver poucas nos privados e que explica também não haver o ensino. Uma das razões é o número de especialistas e o ano que eles têm como especialistas. Como parece lógico para se orientar a especialidade de alguém convém que se seja há algum tempo. É uma daquelas profissões que ver muito ajuda. Depois o número de valências que um serviço realiza que obriga a que muitos aprendizes de especialidade saltem para outros hospitais públicos com essas valências para completarem a sua formação. Como deve calcular essas valências nunca encontrará no privado razão pela qual há especialidades que simplesmente nunca poderão ser aprendidas no privado. Porque embora a percepção seja muito bonita há coisas que o privado simplesmente nao faz porque não são lucro, porque os aparelhos não justificam o investimento ou porque as pessoas não têm dinheiro para tal tratamento. Presumo que não queira que os seus familiares sejam tratados por pessoas que só sabem tratar o que dá lucro. Eu não queria. E como as universidades têm que ter determinado corpo docente e ter um hospital minimamente decente para poderem ensinar nenhum dos projectos apresentados foi considerado de qualidade suficiente. Inclusive o público de Aveiro foi fechado por essa falta de qualidade. O Ricardo percebe dos números mas isto felizmente envolve mais que isso. E a ordem pode ter muitos defeitos mas ainda luta para que os nossos médicos tenham qualidade reconhecida em toda a europa e isso é bom

  4. antónio

    O problema das nações já é velho: São as guildas quando estas estão ao serviço de uma descarada ideologia. O actual chefe da guilda dos médicos está a favor do socialismo-comunismo-marxismo. Pobre Portugal onde só cá ficarão os velhos, os doentes e o país sem dinheiro para tratar estes últimos.

  5. Joao

    E só mais uma achega. As médias são altas porque os alunos com o seu trabalho (e não foi a ver grouxo Marx nem a ver e ler Ricardo Araújo Pereira) assim as fazem

  6. Ricardo Arroja

    “E como as universidades têm que ter determinado corpo docente e ter um hospital minimamente decente para poderem ensinar nenhum dos projectos apresentados foi considerado de qualidade suficiente.”

    Caro João.

    Quanto ao corpo docente, podem sempre contratar fora. Como aliás fazem muitas universidades em fase de arranque sempre que pretendem ganhar prestígio. Sendo privado, os respectivos investidores tratariam de avaliar da viabilidade económico-financeira.

    Quanto às valências não rentáveis no privado, imagino que não fosse difícil implementar um programa móvel de estágios em valências que fossem oferecidas nuns e não noutros, como aliás depreendo das suas palavras já existir.

    Quanto ao seu argumento “O Ricardo percebe dos números mas isto felizmente envolve mais que isso”, fico satisfeito por ter os números em ordem. É o primeiro passo para podermos ter um debate informado. Em relação ao resto, faz lembrar aquela que ficou célebre como primeira lei Arroja da concorrência: “A concorrência é boa e desejável em todos os sectores de actividade, excepto no nosso.”

  7. Ricardo Arroja

    “As médias são altas porque os alunos com o seu trabalho (e não foi a ver grouxo Marx nem a ver e ler Ricardo Araújo Pereira) assim as fazem”

    Caro João,

    Desculpa lá, mas está equivocado. As médias são altas porque há pouca oferta (de cursos) para demasiado procura (por parte de putativos alunos).

  8. Joao

    Ricardo a questão é que nenhum hospital privado em Portugal pode oferecer essas valências. Portanto ou a universidade privada se associa a algum hospital publico ou então nunca as irá cumprir. Temos exemplo da Cespu no porto que os manda para Madrid depois do terceiro ano ou pelo menos tentaram que assim o fosse. Aliás faça este raciocínio. Porque é que quando algumas coisas não correm tão bem no privado vao para ser tratada no público? Às vezes pelo mesmo profissional? Quem trata hepatites no privado? Sida? Etc etc. Outro dia falaram-me nos números do serviço de medicina intensiva de hospital privado que eram muito bons e o especialista de medicina intensiva, que já tinha muitos anos disto, dizia que eram números impossíveis e que estes números só assim o eram porque o serviço era usado como um serviço de recobro e não como um real serviço de medicina intensiva. E era de um hospital bem conhecido. Que raio de intensivista iria ali ser formado? Eu gostava muito de falar sobre economia mas sei as minhas limitações

  9. Ricardo Arroja

    “Ricardo a questão é que nenhum hospital privado em Portugal pode oferecer essas valências. Portanto ou a universidade privada se associa a algum hospital publico ou então nunca as irá cumprir. Temos exemplo da Cespu no porto que os manda para Madrid depois do terceiro ano ou pelo menos tentaram que assim o fosse”

    Caro João, enquanto tivermos um serviço de saúde estatizado é possível que não. Mas como o próprio João indica há alternativas, e esse tipo de associações (com o público ou com outros privados) poderiam ser no interesse tanto de que promove a formação de médicos como de quem a ministra.

  10. Fernand Personne

    “Ordem dos Médicos lamenta que 160 jovens fiquem sem acesso a especialidade.”

    Mas é a Ordem dos Médicos que estabelece quantas vagas abrem por especialidade, por isso, se 160 pessoas ficam sem acesso à especialidade, a culpa é da Ordem!

  11. NN

    Disclosure: sou médico. Trabalho no público e no privado. Acho que o privado faz cada vez mais e melhor.
    Mas enquanto o sistema de saúde estiver organizado como está, a formação no privado é simplesmente impossível em várias especialidades. Exemplo simples que rapidamente compreenderão. Quantos doentes politraumatizados (grandes acidentados) são tratados em privado? Zero. Como quer fazer a formação em anestesia, cuidados intensivos, traumatologia, etc sem passar por esta valência? E muitos outros poderíamos falar.
    Quanto ao excesso de médicos, também é fácil de fazer as contas. Todos os anos se estão a formar mais de 1500 medicos, a que se somam vários outros vindos do estrangeiro. Em meia dúzia de anos, mesmo com as reformas, vamos duplicar a população médica.
    Não seria mais inteligente exigir uma profunda alteração do sistema de saúde para maior eficiência dos recursos e deixar em paz o que está bem ou menos mal?

  12. Ricardo Arroja

    “Não seria mais inteligente exigir uma profunda alteração do sistema de saúde para maior eficiência dos recursos”

    Caro NN,

    Completamente de acordo. Uma das primeiras medidas seria uma efectiva diferenciação salarial a nível regional. Ou seja, criar incentivos e desincentivos salariais consideráveis (e não os tostões que existem hoje em dia) consoante as regiões exibam escassez e excesso de médicos por cada 1000 utentes (leia-se, face à média nacional, independentemente de discutirmos se essa média nacional é alta ou baixa). Porque uma das lacunas da saúde em Portugal é uma concentração relativa elevada de profissionais nas grandes cidades por oposição às restantes regiões do país dotadas de hospitais.

  13. Ricardo Arroja

    “Todos os anos se estão a formar mais de 1500 medicos, a que se somam vários outros vindos do estrangeiro. Em meia dúzia de anos, mesmo com as reformas, vamos duplicar a população médica.”

    Caro NN,

    A Pordata, que deverá recorrer aos números da OM, menciona a existência de 47 mil médicos em Portugal. Mesmo que uma parte considerável destes esteja já na situação de reforma e que outros tenham emigrado ou regressado aos seus países de origem, o que por si só reduziria com expressão o rácio de médicos por cada 1000 utentes, não estou a ver como é que em meia dúzia de anos (e estou a levá-lo, talvez indevidamente, à letra) se vai duplicar a população médica. Assumindo 1700 formandos por ano (os tais 1500, mais 15% de estrangeiros), em meia dúzia de anos teremos formado 10.200 novos médicos. E, atenção, muitos outros ter-se-ão reformado no período.

  14. Ricardo Arroja

    Caro NN,

    Há uma conta que tem de ser feita (e que eu inicialmente fiz no comentário anterior, mas que entretanto retirei por estar errada, e também por faltarem dados) e que trata de relacionar o número de utentes potenciais de serviços de saúde em Portugal daqui a meia dúzia de anos com o número de médicos então existentes. Ou seja, atender ao número efectivo de médicos em exercício então por comparação com o universo de potenciais utentes, sobretudo entre a população sénior.

  15. “A afirmação de idoneidade deveria, pois, ser da responsabilidade dos próprios e dos estabelecimentos de saúde que os contratassem. Ponto final. ”
    Caro Ricardo, leio e não acredito. Então começa o seu texto deitando um véu de suspeita sobre as verdadeiras intenções da OM ao definir/limitar as capacidades formativas e depois escreve esta pérola? Repare, acho legítimas as suas dúvidas sobre a, chamemos-lhe “honestidade” da OM ao atribuir as idoneidades para formação de especialistas (não que eu, pessoalmente, assim pense, note-se); tanto essas dúvidas são legítimas que o próprio ministro da saúde afirmou há poucas semanas que iria lançar uma “investigação” aos métodos que a OM usa para definir os números a que chega e isto com o acordo da própria OM. Mas, depois, face à sua “dúvida metódica”, estraga tudo ao entregar de bandeja essa responsabilidade a critérios definidos pelos interessados: mais juiz em causa própria do que isto, não conheço!
    Para terminar, deixe-me dizer-lhe uma coisa: sou médico e já fiz parte em tempos, do orgão técnico da minha especialidade que, ao nível da OM, define termos e avalia competências nos serviços, para formar especialistas, o chamado “colégio de especialidade”. Esses termos são discutidos e trabalhados em termos puramente técnicos e sempre, sempre com o objectivo de permitir que ocorra uma formação de mínima qualidade admissível (mínima e não máxima, repare) e depois são verificados no próprio local se as condições são efectivamente como os responsáveis as descreviam ou se havia discrepâncias. Nessa altura, as capacidades formativas dos serviços (nº definido pelo colégio da especialidade) excediam largamente o nº de internos admitidos (nº definido pelo ministério da saúde). Ultimamente, devido ao enorme aumento do nº de médicos a serem formados, a tendência inverteu-se. Aumentar a formação de especialistas sem melhoria das condições de formação, é prejudicar seriamente a qualidade da formação, com prejuízo na qualidade da assistência médica. É tão simples como isto, por muitas voltas que se dê.

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