O défice estrutural (CAB – Cyclically Adjusted Balance) é, pese embora as ambiguidades a que dá origem, uma medida interessante. Permite abstrair as finanças públicas de todos os eventos únicos, irrepetíveis, irredimíveis, e perceber qual a posição financeira do país em condições normais. Esta métrica surge após os Estados-membros usarem receitas extraordinárias, como transferências de fundos de pensões, para empolar (leia-se: martelar) o saldo orçamental, assim reduzindo o défice — a inevitabilidade da lei de Campbell (mais tarde apropriada por Charles Goodhart), que vaticina que um indicador social ou económico deixa de ser útil assim que é usado para tomar decisões, pois começa a ser alvo de distorções. De marosca.
O défice estrutural procura assim limpar o défice orçamental destas medidas irrepetíveis. O que é irrepetível? A receita de uma privatização, por exemplo. Ou, do outro lado da moeda, o bailout a um banco. Dado que a receita da privatização ocorre apenas uma vez no tempo, é one-off, não serve para o Governo planear o seu orçamento — não pode contar com aquela receita ad eternum.
E medidas anunciadas como temporárias, mas que podem ser mantidas no tempo? Estas são, independentemente da mensagem ou intenção política, medidas que são repetíveis, redimíveis. Pensemos, por exemplo, na sobretaxa de IRS, na Contribuição Extraordinária de Solidariedade ou nos cortes nas pensões. Este é o entendimento das instituições europeias, e foi o entendimento do PS há 5 anos atrás, na altura do PEC IV.
No PEC IV, o PS considerou que medidas que anunciou como temporárias tinham um efeito estrutural, ou seja, que contavam com a despesa ou receita destas medidas durante um determinado período de tempo. Por exemplo, não considerou como medidas one-off, extraordinárias, temporárias:
- A CES, criada em 2010, para pensões mais elevadas
- O corte de 5% nos salários acima de 1500€ da função pública
- A extensão da CES, que iria integrar o próximo OE
Atente-se à nota (a) das estimativas dos saldos orçamentais, que constam no PEC IV: «Corrigido de efeitos cíclicos e de operações extraordinárias de 2010 (receita decorrente das responsabilidades com pensões da PT para o Estado e despesa extraordinária associada à entrega de material militar». Ou seja, o PS, em 2010, apenas considera one-off/temporário/extraordinário a transferência do fundo de pensões e a despesa militar (submarinos). E bem, porque estas são efectivamente one-off.
O porta-voz do PS afirma que isto se deve ao facto de o Tribunal Constitucional não ter ainda decretado nenhuma destas medidas como inconstitucionais, o que invalidaria torná-las definitivas. Este argumento até poderia funcionar, não fosse a sobretaxa de IRS não ter sido considerada inconstitucional, e ainda assim o PS acusar o anterior governo de a ter imputado como receita estrutural, para que agora possa argumentar que, bom, se eles fizeram nós também o podemos fazer. É fácil perceber que a medida não é one-off, pois não tinha caducidade e seria possível contar com essa receita ad eternum, o que claramente não acontece com uma privatização (note-se que nenhum juízo é feito sobre a desejabilidade de manter tal medida). Tanto não é temporária que o PS manteve-a no draft do Orçamento do Estado de 2016, ainda que tendo reduzido as taxas.
Uma redução ao absurdo ajuda a ilustrar o absurdo de tudo isto — se, no limite, todas as medidas futuras fossem anunciadas como temporárias, com caducidade em 1, 2, 5 ou 10 anos, então o défice estrutural nunca se alteraria, embora essas medidas representem uma despesa ou uma receita corrente. Como é óbvio, isto não faz qualquer sentido para a CE, para a UTAO, para o CFP, nem para ninguém, porque não tem qualquer sentido.
5 anos atrás em política é muito tempo…
Bom artigo, mas o mais importante de salientar nem é se as medidas deviam ou não ter sido consideradas “one-off” (claro que não são “one-off”!).
O importante é salientar que o que se está a querer fazer é que elas CONTINUEM A CONTAR para o orçamento depois de já terem sido ELIMINADAS!
É um disparate de tal ordem que até custa a perceber como é que alguém o pode sugerir…
Acho mesmo que é mais que motivo para despedimento por justa causa!!!
Sr Mario Amorim
Sem entrar na guerra quem la colocou as medidas , no seu artigo a algo que nao bate certo
“E medidas anunciadas como temporárias, mas que podem ser mantidas no tempo?” …
“medidas que são repetíveis, redimíveis.”
Se são temporárias logo tem um prazo para terminar a menos que não considere que o estado deva ser uma entidade de bem e por exemplo aplicar os cortes entre 2 de Janeiro a 30 Dezembro todos os anos e assim serem “repetíveis, redimíveis”, na mesma linha de pensamento as privatizações podem ser revertidas com nacionalizaçao e passados alguns anos novamente privatizadas passando a ser “repetíveis, redimíveis”.
Caro rrocha, nenhuma das medidas tinha data de término, pelo que podem ser sempre reinscritas no OE (excepto as que foram vetadas pelo TC). Já a receita de uma privatização, por muito que o Governo queira, não pode ser reinscrita, pois só ocorre efectivamente uma vez — é mesmo one-off.
Mas como conjuga “temporárias” com “ad eternum” ?
Quanto ao prazo o fim ja tinha sido anunciado em 2014
“Foi este o artigo que o Constitucional chumbou, não aceitando o prolongamento do corte além de 2015. Ou seja, no próximo ano ainda permite o corte, com uma reversão de 20%, mas não aceita que a partir de 2016, esse corte continue e que seja dependente das condições financeiras do país. Um problema que já ficará nas mãos do Governo que sairá das eleições legislativas do próximo ano.”
http://observador.pt/2014/08/14/constitucional-aprova-corte-nos-salarios-para-2015-e-chumba-pensoes/
Nao querendo abusar da sua boa vontade podia esclarecer se uma venda de uma concessão (portos;banda 4G;etc) por um determinado prazo (1ano,5anos,etc) e uma medida one-off?
O sofisma: Tornar ‘estrutural’ sinónimo de ‘definitivo’ – quando são conceitos dissimilares e independentes entre eles.
Há estruturas que são provisórias e estruturas que são definitivas!
Os sofismas são muito utilizado pelo Costa das Castas dominantes – e por estas tido por sagacidade política.
rrocha, isso está explicado no artigo. O PS quer colocar no OE como medidas temporárias/extraordinárias a baixa do IVA e a sobretaxa do IRS, que não foram declaradas inconstitucionais pelo TC. Logo, a questão do TC é acessória.
rrocha, é. Aquela receita da concessão só volta a entrar daí a 5 ou 10 anos, garantidamente. Já a CES ou a sobretaxa podem sempre vigorar.
“Estrutural” não é equivalente a “definitivo” e incompativel com “temporário”.
“Estruturalmente” a economia portuguesa não tem actualmente o “potencial” para sustentar um Estado com o custo que o nosso representa.
Por isso é que o nosso orçamento é “estruturalmente” negativo (independentemente da conjuntura envolvente, mais ou menos favorável, ou de despesas e receitas extraordinárias, que são pontuais e não se repetem).
Por isso é que, na falta de melhor, os cortes na despesa com o funcionalismo e com prestações e o aumento de taxas ou sobretaxas fiscais foram e são medidas “estruturantes” em termos das contas publicas.
Mesmo que sejam pensadas e programadas como medidas “temporárias” não deixam de ser “correntes” em termos orçamentais (dizem respeito a rúbricas permanentes, que se repetem todos os anos).
Dito isto, a situação “estrutural” pode evoluir e as coisas podem mudar.
Nada obsta a que, caso o “potencial” da economia aumente por um lado e as contas públicas globais sejam “estruturalmente” consolidadas pelo outro lado, a despesa com o funcionalismo possa voltar a aumentar e as taxas de IRS e outros impostos possam descer (eventualmente em resultado da alteração de outras rúbricas em termos absolutos e/ou relativos).
Não percebi esta parte. Podia estar mais clara:
“O porta-voz do PS afirma que isto se deve ao facto de o Tribunal Constitucional não ter ainda decretado nenhuma destas medidas como inconstitucionais, o que invalidaria torná-las definitivas.”