Como mentir com estatística

Este é um exercício aplicado de como mentir com estatística. A tentativa vem de um dos últimos redutos do keynesianismo, o blogue “Naked Keynesianism”, e o objectivo era provar que não existe uma correlação entre défices orçamentais e taxas de juro das obrigações do tesouro norte-americano, ou seja, por esta forma mostrar que a política orçamental do Governo não afecta a percepção de risco por parte dos investidores. E, claro, para gáudio dessa indígena teoria económica apregoada por João Galamba, que prontamente partilhou o artigo no Twitter.

Para o fazer, o autor recorre ao seguinte gráfico:

Screen Shot 2015-02-12 at 21.42.21A regressão linear parece sugerir uma correlação perto de zero. Mas um olhar mais atento nota que em 52 pontos existem quatro claros outliers. Coincidentemente, ou não, esses quatro outliers alteram por completo a correlação. A versão corrigida sem esses outliers:

lie_with_statistics

Parece que ainda não é desta, João Galamba. Há que escavar um pouco mais para encontrar evidência de que a política orçamental e o seu potencial risco na sustentabilidade da dívida pública não são ponderados pelos investidores. Por outras palavras, que quem empresta dinheiro não considera se quem o recebe o vai poder pagar de volta nos termos acordados. Precisamente o que tem acontecido aos juros da Grécia desde que o Syriza começou a descolar nas sondagens, já agora.

Screen Shot 2015-02-12 at 22.03.30

14 pensamentos sobre “Como mentir com estatística

  1. Miguel Alves

    se no meu curso mete-se uma merda destas o professor nem corrigia o resto do exame.. onde está o r^2 daquela regressão linear? lolol

  2. Rodolfo

    E porque não existe 5 outliers (os acima de 5% de taxa de juro)? Antes que diga que não se afastam muito, note que a escala da taxa de juro está encolhida.

  3. Rodolfo

    Além disso, penso que as taxas de juro se relacionam com o histórico dos défices e não como o défice daquele ano em concreto. Just saying…

  4. Mesmo mudando o “apertar” da escala a diferença relativa continua a ser maior nos 4 pontos da esquerda. Além disso, não é coincidência que esses quatro pontos sejam os défices entre 2009 e 2012, altura em que o défice federal disparou, ao mesmo tempo em que houve uma “bolha” nas treasuries.
    Mas a análise em si mesma está errada à partida. A correlação entre juros e défice não pode ser simples, sem memória. Anos consecutivos de défice tenderiam a sobrecarregar o efeito de risco, enquanto défices pontuais deveriam ter menos efeito (o contrário também deveria ocorrer com superavits consecutivos ou pontuais). Esse efeito não é capturado numa regressão linear.

  5. Além disso o ajuste pelo CPI em títulos a 10 anos não calcula eficazmente a taxa de juro real esperada em cada momento, ignorando expectativas de inflação (tanto ascendentes como descendentes).

  6. Por fim, o próprio valor do défice deveria ter impacto variavel em função da inflação. Um défice de 3% com inflação de 2% não é de todo a mesma coisa que um défice de 3% com 6% de inflação.

  7. k.

    Noutras noticias, as taxas de juro a 10 anos dos EUA são superiores as taxas de juro a 10 anos da Espanha.

    Devemos por ai inferir que os mercados “acham” que a divida da Espanha é mais segura que a dos EUA. Sendo que espanha era candidata para um default até a uns anos.

    (tretas, o que as taxas de juro de longo prazo refletem é expectativas de inflação, não o risco da divida pública – a não ser que acreditem que a divida espanhola tem menos risco que a americana)

  8. k., com os EUA a fazerem tapering do QE e com a Europa a iniciar QE é perfeitamente natural que essa liquidez siga para títulos de dívida. É óbvio que as expectativas de inflação também têm impacto. O que importa reter deste exemplo é que a hipótese nula pode mesmo ser rejeitada (ou seja, é provável que exista uma correlação estatisticamente significativa entre taxas de juro e défices orçamentais), pelo que não é verdade, independentemente de tudo o resto, que défices orçamentais não tenham impacto nas taxas de juro.

  9. Os comentários do Miguel são muito relevantes. A própria análise tem erros metodológicos. Mas, seja como for, mesmo assumindo a metodologia como correcta, está mal aplicada. Não se faz uma regressão linear com 4 outliers em 52 com um enorme desvio para a média.

  10. k.

    “Mário Amorim Lopes em Fevereiro 13, 2015 às 09:59 disse: ”

    QE empurra o yield para baixo; Portanto se os EUA têm QE, deviam ter um Yield mais baixo que a Espanha (que só agora vai tendo QE).

    De qualquer forma, se seguindo o link do post original, sem ter esses outliers (essencialmente trabalho até o ano 2000), a relação (que fica com um slope positivo, por acaso) continua a ser bastante negligenciavel.

  11. Fica negligenciável? Calculou o R^2? QE empurra o yield para baixo, e o Fed iniciou agora o tapering do QE (ou seja, vai começar a secar a liquidez) e o BCE anunciou que a partir de Março inicia QE. Seja como for, isso é uma das variáveis que influencia taxa de juro.

  12. «QE empurra o yield para baixo; Portanto se os EUA têm QE, deviam ter um Yield mais baixo que a Espanha (que só agora vai tendo QE).»

    Mesmo assumindo que os casos são directamente comparáveis, o impacto do QE no yield pode ser anterior, por antecipação. Ou seja, a expectativa gerada pelo anúncio de QE pode ter um efeito imediato, tal como o anúncio de redução de QE pode ter o efeito contrário, apesar das impressoras continuarem a funcionar. Este género de coisas são imprevisíveis (ao nível temporal), o que só reforça a desadequação de uma regressão linear.

    De qualquer modo, os casos não são directamente comparáveis nos dados específicos (podem se-lo em termos de tendência). Se y=ax+b, assumindo a linearidade que desconfio não se aplique, o tanto “a” como “b” são provavelmente diferentes para dois paises diferentes. Isto é, a correlação e o ponto de partida são variáveis independentes relacionadas com o contexto específico de cada país.

  13. Querias

    Lição de estatística ao Rodolfo: correlação não depende da escala do gráfico, encolhido ou estendido….

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