Histórias de um país com salário que se diz mínimo e nacional

O José e a Matilde casaram-se há 30 anos em Felgueiras. Conseguiram com esforço construir uma pequena casa num terreno dos pais dela. Os filhos, já casados, deixaram a casa. Ganham ambos o salário minimo numa fábrica de sapatos onde trabalham. Os 970 euros não dão para luxos, mas depois de pagar 300 euros de gasolina, de despesa com telemóveis, electricidade, água e internet ainda lhes sobra quase 700 euros para comer e outras despesas pessoais. Vão passear ao Porto aos domingos à tarde, participam nos passeios da paróquia e, perante os protestos dela, ele até subscreveu a Benfica TV. Volta e meia, dão 100€ a um filho mais enrascado. Se alguém lhes perguntar, dirão que pertencem à classe média. Ouvem a notícia do aumento do salário mínimo. “Olha Zé, vamos receber mais 40€ a partir do mês que vem”, “Coitado do nosso patrão, vai ter que pôr menos gasolina no mercedes!”. Passados 3 meses vem a má notícia: a secção de solas, onde o Zé trabalhava, vai fechar. Parece que agora passarão a importar as solas da Roménia. O Zé fica desolado. Com aquela idade já não conseguirá encontrar outro emprego. Ficam os dois a pensar que a vida decente que tinham com 970 euros já não poderão ter com 505. “Assim que se acabar o subsídio, acaba-se a Benfica TV”, desabafa a Matilde.

O senhor António tem um restaurante na Avenida há 30 anos. Com o tempo foi deixando de poder gerir a coisa sozinho com a mulher. Contratou a Rosa para cozinheira. Paga-lhe o salário mínimo, sobre o qual faz todos os descontos e dá-lhe mais 200€ por fora. “Parece que o salário mínimo vai aumentar”, diz a Rosa. “Pois, mais descontos para fazer. A coisa está difícil, vou ter que dar menos dinheiro por fora. amanhã pergunto ao contabilista como é e depois falamos”. “Que chatice, bem podia ter deixado as coisas como estão”, suspira a Rosa.

A Natacha engravidou pela primeira vez aos 17 anos. O namorado, de 16, não quis saber. Aos 23 já tinha 3 filhos. Quando os pais morreram ela deixou de ter quem a ajudasse. Agora, sozinha, recebe o salário mínimo nacional, que mal dá para a renda de casa em Lisboa. A verdade é que com 3 filhos, nem 800€ lhe chegariam. A Natacha tem bom aspecto e vai tendo namorados, mas nenhum se quer casar com uma mãe de três filhos. Um dia, ao passar pelas páginas do Correio da Manhã, surge-lhe uma ideia sobre como dar a volta à sua vida. Avança sem pensar duas vezes. Passados 6 meses, já com algumas poupanças, aluga um T2 para a família e um estúdio para receber os clientes. Numa dessas noites, antes de receber um cliente, liga a televisão e fica a saber que o salário mínimo nacional aumentou 20€. “Que miséria, não percebo como pode alguém sobreviver em Lisboa com esse dinheiro”, pensa enquanto se prepara para o próximo cliente.

A Ana não gosta muito de café, mas precisa dele para aguentar o trabalho chato. Tem por hábito colocar apenas uma colher de açúcar para evitar engordar. Um dia resolve colocar mais meia colher para dar sabor ao café. No final da semana, pesa-se: nem mais uma grama. Acha que até perdeu qualquer coisa. No mês seguinte resolve pôr duas colheres. No final da semana, continua sem ganhar peso. Bem, acho que descobri o segredo: se aumentar apenas meia colher de açúcar no café por mês, o açúcar não engorda. Ao fim de 6 meses já coloca 5 colheres de açúcar no café. “Assim, sim, vale a pena tomar café”. A Ana começa a ficar redondinha. “Tenho que começar a cortar na fruta do pequeno-almoço”, pensa depois de colocar a quinta colher de açúcar no café.

22 pensamentos sobre “Histórias de um país com salário que se diz mínimo e nacional

  1. Gil

    O primeiro exemplo é excelente. Reflecte um tempo em que a indústria do calçado era conhecida pelos Ferraris dos patrões (sim, nada de empresários) e pela miséria dos trabalhadores. Nessa altura, os modelos podiam ser copiados (isso mesmo) de qualquer parte e os materiais, idem. Essa indústria foi ao fundo.e não deixa saudades. Hoje, a indústria do calçado que se afirmou, é altamente especializada e não brinca em serviço. Na matéria-prima, no design, no serviço. Ordenados mínimos? Que é isso?

  2. daniel ferreira

    Por mais que se reconheça que o aumento do salário minimo pode trazer problemas de tesouraria a algumas empresas, penso que se deve olhar sector a sector, e de forma comparativa: se para o mesmo sector há empresas que pagam acima do SMN, e outras que não, alegando dificuldades de tesouraria, penso que estas deixarão de ter lugar no sector, mais dia menos dia. Uma empresa que não consegue pagar 500€ por mês, aposta nos baixos salários, não na mais valia de produto/serviço. Isto pode trazer aumento do desemprego? Pode, a curto prazo, mas também traz competitividade, entre empresas e entre trabalhadores. A mais longo prazo, a tendencia será de as empresas reterem os melhores empregados, aumentando a produção (em quantidade / qualidade) e potencialmente, a maior necessidade de emprego (logo, repescando os trabalhadores que inicialmente ficaram de fora)

  3. hustler

    Uma empresa que não consegue pagar 500€ por mês, aposta nos baixos salários, não na mais valia de produto/serviço., uma empresa que labora num sector perfeitamente competitivo, como é o caso dos produtos “like made in China”, não haverá muita margem para apostar na diferenciação/qualidade, a procura destes artefactos é sustentada em preços baixos e não em qualidade. “Pode, a curto prazo, mas também traz competitividade, entre empresas e entre trabalhadores”, só há um problema neste raciocínio, sectores perfeitamente competitivos competem sobretudo com empresas externas e não com empresas nacionais, e neste capítulo os custos do trabalho estão sempre presentes. Nos sectores não “perfeitamente” competitivos, a sua observação é absolutamente correcta!

  4. JoaoMiranda

    “”Isto pode trazer aumento do desemprego? Pode, a curto prazo, “”

    Está a contar que os trabalhadores sem qualificações morram?

  5. “Ordenados mínimos? Que é isso?”

    “Isso” são 420.000 cidadãos, pessoas, que tem trabalho e rendimento (pouco, mas algum).

    Desses 420.000 muitos, ou alguns, ficarão desempregados nos próximos 12 meses.

    Assim se cria desigualdade e injustiça social.

    Ou não fosse o salário mínimo uma invenção de sociedades de capitalismo selvagem, estilo EUA e Reino Unido, e um conceito inexistente nas sociais democracias do norte da Europa.

  6. hustler

    e um conceito inexistente nas sociais democracias do norte da Europa.”, ele existe, só não se chama salário mínimo nacional. Os nórdicos negoceiam sector a sector, região a região, consequentemente não existe um valor de referência para todos os sectores de actividade, o que tem o efeito positivo de não enviesar perdas e ganhos potenciais dos trabalhadores de diversos ramos de actividade. Já agora, nos países nórdicos não se fabricam pechebeques!

  7. Gil

    Surprese:
    Quando se pretende comentar uma observação, convém lê-la toda. Se o tivesse feito, percebia que o meu comentário se referia a um dos exemplos do Carlos Guimarães Pinto.
    De facto, não há nos países onde as relações laborais já atingiram outro patamar de relação e de organização e é alvo de reivindicações nos países onde tal não sucede e a exploração do trabalho ainda é um trunfo. Já tentou pensar porquê?

  8. k.

    Pois, fazer histórias para justificar o que queremos é fácil.

    Eu e a minha mulher, teriamos conseguido viver com 1000 euros em lisboa (sou um cromo, registo todas as minhas despesas e proveitos desde que vivemos juntos) – a média de custos com casa (prestação, água, comida) foi para 2012 de 812 Euros. Vou excluir os carros, que isso é de pessoas ricas. Outros custos, onde se encluem vestuário, telemovel, e despesas médicas, etc. totalizaram 276.75 Euros – portanto com um aperto de cinto sobreviveriamos.

    Há aqui uns pequenos problemas
    – Não teriamos filhos, um incremento de custos incomportável. Ok, talvez tivessemos um filho, mas mais que isso é impossivel.
    – Não poderiamos ter azares. Uma despesa mais elevada, como uma reparação da casa seria impensável.
    – Nada de férias, que isso é para ricos.
    – Nada de investimento em educação, que é para ricos.
    – Nada de poupança.

    Portanto sobreviver é possivel, claro!
    Viver? Nem por isso. Progredir? Impensável.

  9. HO

    “Está a contar que os trabalhadores sem qualificações morram?”

    Claro que não. Obviamente que quando o Zé das solas for um desempregado de longa-duração com 50 e tal anos encontrará emprego como designer ou contabilista (numa empresa financiada com capital que terá origem na mesma fonte que alimentará os aumentos de competitivade e produção).

    “ele existe, só não se chama salário mínimo nacional”

    Há quem diga que só não se chama salário mínimo nacional porque não é um salário mínimo nacional. Ou seja, porque não existe.

  10. hustler

    Portanto sobreviver é possivel, claro!
    Viver? Nem por isso. Progredir? Impensável.”, pois, e soluções para esses problemas? Como é que se passa do sobreviver para o viver? isso é que eu gostava de ouvir

  11. hustler

    Há quem diga que só não se chama salário mínimo nacional porque não é um salário mínimo nacional. Ou seja, porque não existe., OK, podemos usar outras designações se for uma questão de estética, salário convencionado, salário padrão, tabela colectiva! Acredite que existe, eu sou um exemplo vivo do que digo! Já vivi na Noruega e Dinamarca e posso afirmá-lo!

  12. Marco

    Por norma quem ganha o salário minimo ou baixo … produz, produz alguma coisa, mas produz. Quem muito opina por norma ganha muito mais dinheiro a dizer ou fazer coisas e disparates sobre isto e aquilo … sem nada produzir.

    Em todo o caso, a ordem em tempos foi clara. Se querem deixar de ser explorados por uma classe política criminosa e corrupta, emigrem.

  13. Ricciardi

    Caro CGP,´

    V.exa é malandro. Vc faz uma novela com apenas uma camera. The dark side.

    Se colocar mais uma camera a rodar pode ter uma visão sobre o outro lado da estória. The bright side.

    A D. Palmira, que tem o sua pastelaria ali mesmo ao lado da rua onde mora a Natasha, uma rua de classe média baixa, percebeu que a clientela começou a comprar mais bolas de berlim, pão-de-ló e bolo rei. Não só teve que contratar o namorado da Natasha para ajudar a vende-las no front offiice, como ainda contratou para amassar a farinha a sô dona Rosa que estava insatisfeita num restaurante em decandência.

    PS. Não há evidencias algumas que demonstrem que um Salario Minimo inferior a 60% do Salario Médio tenha impacto significativo no desemprego (ver estudos ocde). Não sei bem qual o valor do salario médio em portugal. Se o Salario médio em portugal for de 900 eur o valor de indiferença do Salario minimo seria de 540 eur. Se for de 800 eur o SM seria de 480 eur.
    .
    Se se analisar um país que tem dois regimes – os EUA – verifica-se que os Estados onde existe salário minimo o desemprego é ligeiramente inferior aos Estados que o não têm. Por mero acaso são estados com produção de riqueza maior.

    A subida do Salario Minimo é prejudicial à economia se se percepcionar que o acréscimo de salario será conduzido para mais importações e que coloque em causa a competitividade com exterior. No caso do SM actual não me parece. As industrias textil e calçado pagam acima do SM. O comercio a retalho é o que usa mais o SM.
    .
    Rb

  14. HO

    “Corroborando”

    Corroborando o quê? A expressão “salário mínimo nacional” implica a fixação política de um preço mínimo para o trabalho para uma jurisdição nacional, um salário mínimo imposto por força legislativa em toda a jurisdição, statutory national minimum wage. Este é o significado com que a expressão é utilizada coloquialmente ou academicamente. Utiliza-la no sentido de que existe um preço mínimo para o trabalho (seja negociado por sector, por unidade, por região, individualmente, etc) não passa de uma trivialidade – nesse caso existe um salário mínimo nacional em todo o lado, até no Brunei ou na Etiópia, como existe um salário mínimo europeu. Se utilizar a expressão salário mínimo nacional neste segundo sentido desconfio que poucos o irão entender.

    “Não há evidencias algumas que demonstrem que um Salario Minimo inferior a 60% do Salario Médio tenha impacto significativo no desemprego (ver estudos ocde). Não sei bem qual o valor do salario médio em portugal. Se o Salario médio em portugal for de 900 eur o valor de indiferença do Salario minimo seria de 540 eur. Se for de 800 eur o SM seria de 480 eur.”

    Link para os estudos? Estes dois merecem ser lidos:

    Click to access AB201110_p.pdf

    Click to access NIPE_PP_01_2011.pdf

    O salário mínimo em Portugal é de cerca de 44% do salário médio e 59% do salário mediano, um valor 10% acima da média da OCDE. E 14% de desemprego. Aumentar o salário mínimo neste contexto é um absurdo ainda maior. E já que citou estudos da OCDE:
    http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/ocde_quer_despedimentos_mais_faceis_e_salario_minimo_congelado.html

    “Se se analisar um país que tem dois regimes – os EUA – verifica-se que os Estados onde existe salário minimo o desemprego é ligeiramente inferior aos Estados que o não têm. Por mero acaso são estados com produção de riqueza maior. ”

    Fonte? Onde é que foi buscar a ideia de que os EUA têm dois regimes? Existe um salário mínimo em todos os estados – existe um salário mínimo federal que é aplicado em qualquer estado; depois existem estados com salários mínimos estaduais superiores ao salário mínimo federal (e cidades/jurisdições locais com salário mínimo local).

    “Portanto sobreviver é possivel, claro!
    Viver? Nem por isso. Progredir? Impensável.”

    Relevante:
    http://www.slate.com/articles/business/the_dismal_science/1997/03/in_praise_of_cheap_labor.2.html

    “In short, my correspondents are not entitled to their self-righteousness. They have not thought the matter through. And when the hopes of hundreds of millions are at stake, thinking things through is not just good intellectual practice. It is a moral duty.”

    A família do Zé das solas não irá viver melhor ou progredir mais por ele ser atirado para o desemprego.

  15. hustler

    “Utiliza-la no sentido de que existe um preço mínimo para o trabalho (seja negociado por sector, por unidade, por região, individualmente, etc) não passa de uma trivialidade”, essa agora! existe um preço mínimo para o trabalho de forma regulada ou tabelada, e, um preço mínimo discricionário para o trabalho e que pode variar com o dia, a hora e o exercício de funções idênticas. Referia-me a este último como um “salário mínimo”, o “primeiro grau da tabela” ou outra coisa parecida num qualquer sector de actividade! Este “salário mínimo” de referência vem colocar alguma “compensação”, para o lado do trabalhador, num mercado monopsónico. Mas já falámos disto anteriormente!

  16. JP

    E que tal umas histórias sobre um país sem salário mínimo nacional?
    Proponho os seguintes cenários, derivado de não termos um valor de referência para as remunerações:
    1. Um engenheiro informático que foi forçado a emigrar porque em Portugal apenas lhe ofereciam 600€ para fazer o que lá fora é pago com 2500€.
    2. Uma empregada de limpeza que trabalha em troco de uma cama numa cave e duas refeições por dia;
    3. Um dono de um restaurante que fechou porque os seus clientes só comiam sopa, pois não tinham dinheiro para mais.
    Acho interessante a discussão acerca do valor do salário mínimo, mas o resto são desvarios de meia dúzia de queques… Divirtam-se!

  17. Ricciardi

    HO,

    O facto dos EUA terem um Salário Minimo (SMn)em alguns estados só vem provar que o estabelecimento do mesmo não induz por si só desemprego. Depende do nível do mesmo em função do salário medio (SM).
    .
    É simples de perceber porquê. O SM é estabelecido pelo mercado. Se o SMn for indexado aquele, segue pois o mesmo padrão de mercado.. O SMn é aumentado quando o mercado em média paga melhor um SM por qualquer motivo. Mas não deve ser diminuido, senão em situações de excepcionalidade (que pode ser o caso de Portugal). Não deve ser diminuido porque convoca tensões enormes na economia, nomeadamente na banca, nas EDP’s e PT’s, restauração etc.
    .
    Se o nível salarial tiver de descer por razões de excepcionalidade e para melhorar a competitividade do país face ao exterior então deve ser o estado a reduzir a carga fiscal e contributiva sobre os mesmos e não baixando o rendimento disponivel das pessoas que só trará uma recessão mais prolongada. Há vários economistas notáveis a defender mais ou menos o mesmo com algumas variações.

    O nível salarial do SMn só interessa quando isso afecta negativamente as trocas com o exterior. As empresas portuguesas que exportam mais praticamente não praticam salários minimos. Pelo que a sua existencia é indiferente no nivel de produtividade e emprego. Coloca-se a questão das importações. Será que o aumento do SMn é indutor de mais importações?
    .
    Parece-me que tem um impacto irrelevante. Não apenas porque representa apenas 10% do total de trabalhadores, como o padrão de compras desses tipos de salários não é de cariz importador.

    Em todo caso, sou da opinião que o SMn devia ser função não só do SM do país, mas devia ajustar-se a mais dois pontos: o sector de actividade e a região. A idade já é levada em conta. Um jovem pode receber 80% do SMn.
    .
    Rb
    .

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