A direita portuguesa é hoje um pouco anti-francesa. Quem diria. Até quem leia a Le Point hoje em dia e associe a França a uma certa orientação política, conclui necessariamente que a Le Point é anti-francesa. Não há nada a fazer.
Mas a França tem coisas boas que não apenas a volta em bicicleta e o Astérix, um dos poucos personagens da BD franco-belga verdadeiramente francês. Há pouco tempo descobri Fred Vargas, uma arqueóloga e historiadora que escreve policiais. Como aprecio o género, comprei o seu último livro, já de 2011, ‘L’Armée Furieuse.’ E o que gostei foi precisamente aquela história e aquele ambiente serem tão franceses. Vargas é uma historiadora especializada na Idade Média que, até por encontrar na psicologia humana o motivo de certos actos, baseia nos medos irracionais da época o cerne da sua narrativa. As suas histórias, esta foi a primeira que li mas muitas outras vão, pelo percebi, na mesma linha, partem de acontecimentos do foro policial mas com uma forte conotação fantasmagórica, fazendo da Normandia, local onde se desenrola este livro, um lugar de eleição. O enredo, os ambientes e as lendas fantasmagóricas fazem, aliás, lembrar Ric Hochet, o jornalista/detective da BD criado por Tibet, francês, e André-Paul Duchâteau, por acaso belga.
Além de historiadora, Vargas é ainda arqueóloga, mais especificamente estuda a história das relações naturais entre os homens e os animais e a domesticação destes por aqueles. Em françês chama-se de Archéozoologie e em português deve ser qualquer coisa como arqueozoologia, palavra que, para ser sincero, desconheço que exista. Mas o que me interessa aqui é realçar a interacção entre animais e as diversas personagens que Vargas inclui no decorrer do livro. São pormenores que se sucedem como se de acontecimentos de bastidores se tratassem, mas determinantes para a conclusão da obra.
Vargas não é a primeira autora de policiais franceses que já tive o prazer de ler. Como aconteceu com muito boa gente, o meu contacto com os polares franceses fez-se através de Georges Simenon. E uma das coisas que mais gosto nos livros do Maigret é a forma, não quero dizer relaxada, mas de como ele, não tendo mão nos acontecimentos, se adapta a estes. As descrições que Simenon faz das mudanças do tempo, o calor, o vento e o início das chuvas em Setembro, por exemplo, vão precisamente ao encontro desta ideia de algo superior que a personagem não domina. Vargas também usa, ou pelo menos utilizou neste livro, essa técnica quando um dos momentos determinantes é antecipado pelo vento de oeste que antecede uma chuva torrencial. O comissário Adamsberg, também ele se deixa embalar pelos acontecimentos, mais parecendo por vezes um barco à deriva, alguém perdido que pensa coisas sem nexo e se irrita com os feitios e as manias dos outros.
Os relacionamentos humanos são especialmente ricos e vão muito além da vida desorganizada de Adamsberg. É preciso explicar que l’Armée Furieuse é o até agora último livro da colecção Adamsberg, o comissário de Paris que lidera uma esquadra no mínimo fora do vulgar. Temos o já referido Adamsberg, perdido nos equívocos da sua vida e imerso nas brumas que desconcertam quem não o conhece; há Danglard com cinco filhos em casa, conhecedor ao pormenor da história da França e dos seus segredos, com enormes complexos de inferioridade relativamente ao seu colega Veyrenc, que tem uma história passada pejada de erros que quer corrigir sem saber muito bem como; junta-se-lhes Retancourt, a enorme mulher polícia que impõe o respeito e a admiração de todos eles, e que debaixo da máscara da insensibilidade esconde um mundo que nem a própria autora parece compreender. As idiossincrasias destas personagens principais, aliadas às restantes que estão de passagem, e em cuja complexidade psicológica se encontra a resolução e razão de ser dos crimes cometidos, não deixam indiferente quem se decida a ler as páginas escritas por Vargas.
Além destas características Fred Vargas é ainda tão francesa que não podia deixar de ser de esquerda, daquela esquerda que se julga superior ao ponto de poder ser extremista. Até a forma como desculpabiliza os jovens que queimam carros nos subúrbios de Paris, retratando um deles como alguém que incendeia os automóveis depois de confirmar que não está ninguém lá dentro, é sublime. Sublime pela desfaçatez. Sublime porque é uma França demasiado próxima de Portugal. É uma França que conhecemos demasiado bem cá dentro.
Mas vale a pena ler Vargas. Eu vou continuar a fazê-lo. Da mesma forma que Valérie Trierweiler, apesar de publicamente trocada por outra queria continuar a ser primeira-dama, Vargas tem a lata de ser subtilmente parcial enquanto escreve um bom policial. Os franceses são primorosos nesta capacidade de se autotitularem o contrário do que praticam com um charme e uma beleza que este livro também deixa transparecer.
Bom texto meu caro, mas uma pequena correccao: George Simenon nao e policial frances mas sim francofono. O bom Simenon era belga, de Liege ( mesmo sendo o seu heroi Maigret bem parisiense). Parece que nao e so na BD que ha pouca pureza francesa no mundo francofono….
É verdade! Lapso meu. O Maigret é tão parisiense que me esqueci desse facto.