Entre o batente da colher, os ritos em latim e a anulação do indivíduo estará, por ventura, uma explicação sociológica e fenomenológica bem mais complexa que a banalidade ordinária proferida entre jornais e redes sociais. As reacções, cravejadas de emoções, reduzem-se a duas posições anacrónicas: ou a profunda absolvição ou a profunda rejeição. No meio está um oceano.
A praxe é, no fundo, nada mais do que uma manifestação de uma cultura. É a cultura do colectivismo hierárquico, familiar a Salazar, que consiste na aniquilação do indivíduo e da sua vontade em nome de algo ou outrém. O caloiro não tem vontades, dizeres ou afazeres. Não existe enquanto indivíduo e a sua existência enquanto peça de uma massa colectiva serve um importante propósito: o entretenimento dos superiores, que talvez conscientes da sua minudência, ou talvez não, se auto-proclamam de doutores de merda e de merda de doutores. Numa alusão óbvia ao newspeak que Orwell tornou famoso, esta submissão de uns a outros é apelidada de camaradagem.
Eles, os mesmos que ascendem na hierarquia da praxe através da acção inexorável do tempo e, se possível, do ócio. Ócio que, desmultiplicando matrículas, é o garante do enorme estatuto que os superioriza perante os outros e, benefícios do ofício, sem terem de empregar o fato, somente a capa. No ombro esquerdo, refira-se. Esta cultura, destituída de referências ao esforço, ao mérito e ao trabalho, esforça-se em premiar o pelintra, o incapaz. Não que não existam pessoas de valor e de mérito na praxe — que existem, e muitas —, mas não são essas que são premiadas. Aliás, a excelência académica previne-as de alcançar o alto graal de Dux, título oneroso para aquele que nunca acaba o curso e ainda tem orgulho nisso.
Mais do que a necessidade de pertença e de inclusão social, mais do que o medo de ser ostracizado, a praxe expõe uma cultura secular portuguesa que extravasa em muito esta tradição académica. A similitude com alguns dos símbolos do Estado Novo não é casual. Inspirou-a e a inspira-a. Mas não se fica por aí, nem se limita à direita salazarenta. É também abraçada por muitos da esquerda. Esta cultura medíocre disseminou-se por toda a sociedade portuguesa. Recordemos que, até há bem pouco tempo, não existiam quaisquer critérios de mérito associados à progressão na carreira que não a simples e insípida permanência no cargo. Um critério de antiguidade. O tal critério de senioridade.
Como noutras tradições, rituais e ritos, o seu fim não deve ser decretado. Os abolicionistas são tão ou mais perigosos que estes — hoje proíbem a praxe, amanhã a liberdade e nos entretantos rodam cabeças. Assim, e como em tudo, a adesão à praxe deverá ser voluntária e compete ao juízo de cada um decidir se o deverá fazer ou não. Em última instância, reduz-se ao juízo que cada um faz de si mesmo. Se deseja continuar a ser a estilheira da colectividade ou simplesmente ele mesmo, uno e soberano. E, se possível, que se mantenha fiel a essa decisão.
Dos melhores textos que tive o prazer de ler há bastante tempo, caro MAL. Creio que chegas precisamente ao cerne da questão: todo este fenómeno da praxe é perfeitamente expectável, pois acaba por ser apenas uma reflexão da generalidade da sociedade portuguesa.
Eu participei das praxes, tanto de um lado como do outro, e fui um dos que estiveram lá tempo suficiente (mais que suficiente, no meu caso, já que mudei 3 vezes de curso, acabando por tirar o último curso sem chumbar um único ano — tendo mudado por completo de área de estudo; andei enganado na minha vocação durante demasiado tempo) para a veterania (e nunca usei a capa sem estar trajado — acho isso uma parvoíce. Já agora, usava a capa no ombro direito, por escolha). Nunca me senti menos indivíduo por escolher participar. Fui escolhido para representar o meu curso, numa das faculdades que frequentei, no conselho de veteranos, não por ser o mais antigo — que não era — mas por ser aquele para quem os alunos do meu curso se viravam nessas situações. Tive a oportunidade, que recusei, de ser Dux daquela faculdade. Não era o mais antigo, mais uma vez, mas os praxistas preferiam ter-me a mim como representante.
Compreendo que, à primeira vista, a praxe não se mostre tão aberta e maleável, mas na (minha, concedo) realidade é-o. Como caloiro fiz e deixem que me fizessem apenas aquilo que achei razoável. Como praxista nunca fui além do limite do bom senso, e respeitei sempre o caloiro que me dizia “não” (nem me lembro, agora, de alguma vez um “não” me ter sido dirigido — nunca fui longe demais, se calhar). A praxe é protocolo. A recepção ao caloiro é a aprendizagem desse protocolo, por quem o quer aprender (ninguém é obrigado), adornada por brincadeiras que por raras vezes vi extravasar os limites do razoável, e que não poucas vezes eram dirigidas ao indivíduo — havia sempre os que se destacavam, e eram esses os “praxados”, os que se destacavam individualmente. Os outros passavam secas a ver estes fazerem palhaçadas ou a ouvir palestras sobre o traje e outras coisas menos importantes.
Na praxe, como na vida, só se deixa apagar como indivíduo quem quer. Só se deixa dissolver no colectivo quem quer. E cada um escolhe onde cede ao colectivo e onde se destaca.
Deve o bullying ser livre? Pois sim, a intimidação, a matilha, ou antes a vara, que ameaça, intimida estudantes deslocados, faz dessa liberdade uma ilusão.
Mas a minha previsão é para que morra aos poucos, a tal tradição. Com a proliferação de praxezinhas por escolas pequenas e com o encurtamento dos cursos (o que faz com que o tempo de espera que havia para que um praxado passasse a praxador — não se podia praxar no 2º ano — desapareça. A falta de juízo vai aumentar, piorando as praxes e aumentando os histerismos. Ela já está moribunda, a minha praxe. Deixem-na fenecer em paz.
Gonçalinho, eu também fui praxado (mas nunca praxei) e até gostei (em parte) da experiência. E, pontualmente, a experiência até pode ser muito positiva. Mas a minha análise pretende ser sociológica, perceber o que está por detrás da praxe. E, nesse aspecto, acho que a praxe tem muito pouco de positivo, pelo menos à luz dos valores sob os quais me rejo.
As praxes, académicas, militares (recordam-se do filme “Uma questão de honra”?) ou outras, são rituais de passagem para os jovens que sempre existiram nas sociedades humanas.
Hoje ainda persistem em algumas tribos africanas e da amazónia, em que os jovens são sujeitos a diversas provas para serem aceites como adultos.
Trata-se de capitalizar na necessidade humana de pertença, do medo do isolamento, como bem retrata um outro post Insurgente de AAA (Isolamento e imitação), citando um post da Destreza das Dúvidas.
Dito isto, ainda não consegui entender o que é que a praxe tem que ver com o que se passou no Meco. Pareceu-me mais coisa de ‘Fraternidade’ à americana (daquelas Sorority, que são excelente base para filme de terror ou comédia), até porque, salvo erro, os falecidos nem eram caloiros.
Um dia viria a acontecer, excelente texto
Eu entendi, e quis misturar uma justificação da praxe e uma resposta no mesmo embrulho. Falhei, admito.
O que me é difícil ver, e aqui admito que tem a ver com a minha vivência pessoal, e não posso falar pelos outros, é essa coisa da praxe colectivizar. Pessoalmente, abomino o colectivismo e o apagar do indivíduo em prol do bem-comum. No entanto também gosto muito da praxe, que admito conter uma certa insistência no “um por todos e todos por um”. Mas nada daquilo é (ou era, antes de 2006) obrigatório, pelo que só se deixa apagar quem quer. E há, mesmo dentro do protocolo praxista, muita margem de manobra para que, sentido-me acossado a ceder a minha individualidade, responder com um manguito e continuar na minha. Mas é, tenho que admitir, uma visão muito pessoal e particular da praxe. Há muitos, decerto influenciados pela doutrinação colectivista da escola e predominância cultural portuguesas, que fazem pender o discurso para a força do colectivo em detrimento do indivíduo. Mas eu não culpo a praxe. Também eu culpo a atmosfera que infesta as sociedades ocidentais.
Gonçalinho, acho que neste caso é importante reduzir a reflexividade. Afaste-se um pouco e imagine que é um estrangeiro a olhar para o fenómeno praxe. O que vê? Indivíduos em submissão pura, sem vontade própria, a agir para puro regozijo dos demais (o bem comum dos que praxam), em muitos casos em clara violação das primitivas liberdades de cada um. Mais: a ascensão na hierarquia não depende de factores individuais mas de condições comuns a todos, bons e maus. Tenho poucas dúvidas que se trate de um sistema profundamente colectivista.
que coisa mais tonta… se é colectivista é mau, se é individualista é bom?
é mau não por ser colectivista, que é, mas porque é um ritual de submissão que tem todas as condições para atrair sádicos, para rebaixar a dignidade do outro.
tem algumas coisas boas? Até um relógio parado está certo 2 vezes por dia.
é uma aberração e os que gostam dela apenas mostra uma má formação moral.
Tanta conversa com isto e ninguém nos media percebe o óbvio. O problema não é que haja qualquer tipo de coacção, intimidação ou bullying na praxe. É o contrário, é que aquilo é tudo consentido, quem lá está adora aquilo. O problema é precisamente esse. É a proliferação de um ambiente “académico” que pugna pela boçalidade, pela glorificação da estupidez, pelo culto da uniformização e da valorização acéfala da tradição pela tradição. É o Quim Barreiros como símbolo maior do folclore universitário. É o orgulho com que se defendem as cores do curso e da faculdade – na maior parte das vezes para compensar o facto de se ter entrado na quinta ou sexta opção, ou numa privada de má fama – não pelos seus méritos académicos, mas porque é a malta que emborca mais minis (ou os shots todos que o Pacheco Pereira soube enumerar). É o facto de a universidade ainda ser um factor de afirmação social, um ascensor, o facto de o Dr, o Eng, ou o Arq ainda terem importância fora do contexto profissional. Sim, o problema da praxe é a sociedade que representa, é o culto de uma sociedade estratificada em função dos títulos; a sacralização de certas instituições, não como criadoras e transmissoras de conhecimento, mas como meio de ascender socialmente acima dos outros. E, sim, é a anulação da individualidade de cada um em prol do grupo, ou seja, em prol dessa ascensão, o que para muitos é um ensinamento para a vida.
Burra Praxis, Sed Praxis
Concordo com tudo o que o Gonçalinho disse, Eu, anarco-capitalista convicto, me confesso, dizendo que adorei ser praxado. Não vi nenhum fenómeno de colectivização nas praxes. Vi sim, uma data de miúdos vindos de várias partes do País, a chegarem a um meio novo, onde muitos não conheciam ninguém, a serem ajudados pelos mais velhos a integrarem-se na vida universitária. Se vi abusos? Vi, tanto a praxar como a ser praxado. Se passaram dos limites comigo? Tentaram passar, mas eu na altura já tinha cabecinha suficiente para saber dizer não. Se alguma vez abusei a praxar? Talvez sim, mas houve sempre pessoas à minha volta com o bom-senso de me dizer que estava a abusar e por vezes fiz o mesmo a outros. O que é preciso dizer é aquilo que ninguém diz. Há pessoas a praxar que são parvas, como as há em todo o lado. E do outro lado há miúdos que são demasiados infantis ou foram demasiado protegidos até chegarem à faculdade e que por isso não sabem lidar com situações díficeis. O Mundo é um lugar duro e para se ter sucesso tem que se ter uma preparação e estofo grandes. Como é óbvio, ninguém deve abusar de outro ser humano. Mas no fundo acho que se alguém manda outra pessoa comer bosta de vaca e essa pessoa come, a culpa é exclusivamente dela. Os que seguiram o Nazismo por medo são tão culpados como os que o seguiram por devoção. Por isso, acho que a existência dessas duas minorias, doutores parvos e caloiros pouco adultos, é insignificante, comparada com o universo dos universitários. E que o grande problema está na colectivização da culpa, culpando as praxes, quando se devia culpabilizar os indivíduos que praticam os abusos.
David Calão – Aplaudo de pé!
Gonçalinho – Há adolescentes que entram em pânico se não lhes fazem “like” no facebook, acha que têm estofo psicológico para rejeitar a “integração” numa praxe? As suas frases “Na praxe, como na vida, só se deixa apagar como indivíduo quem quer. Só se deixa dissolver no colectivo quem quer. E cada um escolhe onde cede ao colectivo e onde se destaca.” são cada vez mais, nos tempos atuais, bullshit.
António Ferreira – Presumo que, por ex, adore maltratar animais, são irracionais, burros, merecem…e você pode fazê-lo, porque é mais forte, porque é melhor, porque sim…
Desculpe que lhe diga, o seu comentário e a sua lógica subjacente são execráveis, é o mínimo que se pode dizer…
Sou caloira, pela primeira vez e pertenço a uma das universidades em Lisboa, contudo não foi a cidade onde cresci.
Nunca sofri nem nunca ultrapassaram os limites comigo nem que me recorde vi abusos, mas também não posso falar por todos os caloiros do meu curso. Considero-me uma pessoa responsável e sei recusar uma “ordem” e alguns dos meus veteranos frisaram isso. Fui recomendada a ler o código do caloiro da minha comissão académica e sempre mostraram que a sua função era divertir-nos e integrar-nos na turma e no curso. A relação que temos com nosso Dux, a meu ver, é de respeito, que infelizmente cada vez menos vemos em Portugal. Quando Dux discursa permanecemos em silêncio, mas nunca foi-nos negada dar a nossa opinião sobre qualquer assunto.
Contudo, sei que existem abusos. Acho que já devemos ter a maturidade de ver abusos a acontecer e saber dizer que não. Mas sei também que muitos colegas ainda não atingiram essa maturidade. Para mim cabe, aos alunos denunciar abusos e haver, talvez, uma maior vigilância por parte das autoridades, reitorias e associações de estudantes.
Para mim as praxes que têm como objetivo integrar os alunos e no meu caso isso aconteceu mesmo. Acho que houve demasiada generalização das praxes e muitos aproveitaram para tentar influenciar devido às suas ideologias políticas.
Estou de acordo com o autor do post. Do combate pela Democracia e pelo Estado de Direito – onde a História nos revela quantos deram a vida pelas suas convicções progressistas – resulta um princípio importante: a sociedade tem o dever de ajudar as pessoas a defenderem-se de si próprias. Dito isto, é evidente, que as praxes, a existirem, devem preservar sempre uma componente humorística saudável e saber auto limitar-se: mais do que um divertimento do “colectivo”, a praxe deve ser uma ajuda a quem dela necessita.
é muito comovente a confissão do antónio ferreira de que cometeu abusos na praxe.
A praxe é particularmente atraente para sádicos.
suponho que nas empresas aonde trabalham, enfim as empresas essas coisinhas más colectivistas também recebam os caloiros com praxes organizadas pelos colegas mais velhos com actividades semelhantes às praxes universitárias ou militares.
Não comprem um cérebro, não…
Tenho pena que interpretem as minhas palavras como se eu fosse um sádico. Eu sou incapaz de fazer mal a uma mosca e nunca fiz mal a ninguém. Quando disse que abusei por vezes, quero dizer que fui chato demais ou pressionei demais, mas nunca passou disso. Eu sei que tenho falta de jeito para escrever, mas toda a gente tem direito a uma opinião, incluindo eu.