Este post desenvolve um tópico levantado pelo André Abrantes Amaral. O tribunal constitucional tal como definido na constituição portuguesa tem como principal competência a “fiscalização da conformidade de normas jurídicas — e, em particular, das normas das leis e dos decretos-leis — com a constituição“. O tribunal constitucional é composto por treze juízes que têm um mandato não renovável de nove anos, auferem cerca de 6.130€ mensais e são nomeados da seguinte forma: dez são designados pela assembleia da república e três são cooptados de outros tribunais a partir das propostas dos juízes eleitos, sendo que no total dos treze, seis têm de ser magistrados de carreira. O presidente do tribunal constitucional é eleito pelos respectivos juízes, mas o PS e o PSD acordaram em alternar a presidência do tribunal constitucional por um juíz nomeado pelo respectivo partido por períodos de quatro anos e meio. Ainda segundo a constituição, “os juízes do tribunal constitucional gozam das garantias de independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade e estão sujeitos às incompatibilidades dos juízes dos restantes tribunais”.
A meu ver, esta configuração levanta vários problemas:
- A constituição não pode ser uma carta de intenções aberta e tão subjectiva que possa ser sujeita a todo o tipo de interpretações que sirvam para justificar tudo e o seu contrário.
- Os juízes não são deuses – são pessoas com os seus percursos, falhas, limitações, agendas, tendências políticas e ideológicas. As decisões do tribunal constitucional muitas vezes não são unânimes.
- A partir do momento em que os juízes são nomeados pelos partidos, a sua isenção e imparcialidade são colocadas em questão.
- Os juízes não deverão pode julgar em causa própria, isto é quando estão a ser julgadas alterações ao funcionamento da função pública que afectem os próprios juízes.
- Os juízes do tribunal constitucional não respondem a ninguém.
- Não existe um tribunal de recurso.
Na prática, o tribunal constitucional tem o poder de agir como um pseudo-órgão governativo sem ter sido eleito nem sequer ter sido criado para esse fim; sendo incompreensíveis declarações deste género.
Da maneira como vejo as coisas, o principal problema – e ao mesmo tempo a maior fonte de poder do tribunal constitucional – reside na ambiguidade, extensão e complexidade da constituição. Não tecendo comentários sobre o conteúdo da constituição (isto daria matéria para vários posts) mas sobre a sua forma: a constituição precisa de ser redigida de forma clara, precisa e objectiva ao mesmo tempo que o número de artigos, pontos e alíneas deve ser reduzido.
Admitindo que a constituição é alterada de forma a ser bastante mais clara, o poder do tribunal constitucional é bastante mais diminuído, a sua função bastante simplificada, o número de casos a apreciar diminuirá. Ao mesmo tempo, o planeamento e o exercício da governação se tornaria mais previsível e estável. Ainda assim, deixo algumas ideias em alternativas a um tribunal constitucional para se reduzir a subjectividade e parcialidade das decisões quanto à constitucionalidade de determinadas matérias:
- Sortear para cada caso um número relativamente elevado de juízes nacionais (cerca de 30 para ter significado estatístico) em que a decisão tomada de forma independente terá que ter o acordo de uma percentagem elevada – um número à volta de 75%.
- O mesmo que ponto anterior, mas para eliminar ainda mais a parcialidade, os julgamentos em causa própria e o contexto nacional, sortear um número elevado de juízes de vários países, e de preferência sem saberem que o cliente é o estado português utilizando para o efeito um proxy.
- Para cada caso, realizar um julgamento público com um júri de 13 cidadãos sorteados aleatoriamente existindo um advogado a defender a posição contra e outro advogado a defender a posição a favor.
Resumindo, João, o que você está a pôr em causa é o princípio da separação de poderes. E a exigir para a Justiça (nomeação por sorteio para evitar parcialidade) aquilo que não exige para os outros dois poderes.
Em nenhum momento do seu post o vejo dizer que o actual TC está a ir contra a Constituição. Porque não está. Você discorda quer do TC quer da Constituição e isso, para mim, é um ponto de partida errado que inquina todo o seu post.
É que a razão de ser dele é óbvia: este TC e esta Constituição não estão a fazer as coisas que você quer que façam. Estaria aqui, a defender isto, se o TC fizesse o que queria? Tenho sérias dúvidas.
Mais um excelente post do Joao!
Acerca daqueles que creem na profundidade do seu ser que o mundo nao e’ possivel sem legisladores e reguladores, fica a pergunta que nao tem resposta:
Quem regula os reguladores?
Ola Jónatas. Embora discorde profundamente da constituição, este post tenta expor um problema que é independente de partidos ou de ideologia – a da interpretação subjectiva da constituição por juízes que são nomeados pela assembleia da república. Independentemente do conteúdo da constituição (cujo conteúdo não é discutido neste post), acho que todo o país sairia beneficiado com a sua clarificação. Perdem-se meses, gastam-se rios de tinta e é necessário arranjar soluções de recurso à volta de uma indefinição que não faz sentido. Cumprimentos!
Sim, fernandojmferreira: “Quis custodiet ipsos custodes?” (Who guards the guards?) 🙂
Jonatas escreveu: “E a exigir para a Justiça (nomeação por sorteio para evitar parcialidade) aquilo que não exige para os outros dois poderes.”
Mas os outros dois poderes DEVEM ser parciais… São eleitos para isso, para exprimir uma visão do eleitorado: devem elaborar as leis e executá-las segundo programas apresentados. O poder judiciário trabalha sobre essas leis e sobe elas deve ser imparcial: o poder judicial, como disse alguém, é um poder sem vontade própria.
Enquanto em Portugal se desconhecer o be-a-ba do regime democrático estamos mal.
Grande parte dos nossos problemas políticos portugueses vêm da falta de literacia política, que leva a que sejam discutidos assuntos mais do que assentes – há séculos, por vezes – noutros países.
Caro João,
Então os juízes deviam ser nomeados por quem? Vitaliciamente pelo órgão executivo (vide EUA)? Mas vamos a detalhes:
1 – Concordo em pleno que não deveriam julgar em causa própria, pelo que o estatuto remunerativo dos juízes (e respectivas prebendas, como reformas, subsídios, etc.) deveriam ser “congelados” à altura da nomeação, i.e., NUNCA, sob circunstância alguma, poderiam ser alterados retroactivamente à altura da nomeação.
2 – Apesar de não discordar – por princípio – na obrigatoriedade de 6 dos 13 juízes serem magistrados, o critério deveria ser mais apertado. Assim, os juízes deviam ser provenientes de estâncias superiores (Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Administrativo) e os não-juízes serem academicamente ou civilmente reconhecidos (se academicamente, serem Professores Catedráticos de Direito em Universidade Pública ou Concordatária, se civilmente, serem juristas que tenham ocupado cargos electivos relevantes – e.g. Ministro da Justiça, Primeiro-Ministro, Presidente da Assembleia da República, Procurador-Geral da República, Bastonário da Ordem dos Advogados).
3- Os juízes do Tribunal Constitucional deviam ser devidamente investidos, de acordo com o peso e importância social que possuem. Assim, o Presidente do TC deveria estar acima do Presidente do Supremo na Hierarquia do Estado, bem como acima do 1º Ministro (a Justiça TEM de estar acima do Governo, apesar de abaixo da vontade do Povo / Parlamento).
4- A nomeação dos juízes poderia ser alterada para algo que equilibrasse mais a origem dos mesmos. Dos 13, 4 por votação de TODOS os juízes, 4 por nomeação do PR e os restantes 5 eleitos por eleição simples e simultânea na AR.
5- De forma a garantir (alguma) rotatividade, os membros seriam desfasados 3 anos para o mandato de 9.
Quanto à constituição, não concordo com a mesma mas nada me opõe à actual regulamentação sobre a sua alteração (maioria de 2/3), pelo que, sendo a vontade (a uma dada altura) de uma maioria dos cidadãos legitimamente representados na AR, posso não gostar mas tenho de aceitar (ou mexer-me para arranjar 2/3 dos votantes a elegerem deputados que a queiram alterar).
Li algures alguém a sugerir que as decisões do Tribunal Constitucional sobre Leis da Assembleia da República exigissem 2/3 dos votos e não apenas uma maioria simples, como acontece agora, e essa proposta merece ser analisada, parece-me.
De facto, se a Constituição só pode ser alterada por maioria qualificada dos deputados (2/3), como é que uma Lei votada unanimemente por esses deputados pode ser vetada pelo Tribunal Constitucional? Estarei errado?
Defendi num anterior comentário ao post de André Abrantes Amaral, a extinção do Tribunal Constitucional como consequência da substituição da Constituição vigente, por uma outra, democrática, simples clara e breve, formada por uma dúzia de princípios gerais.
A Constituição não pode ser um conjunto de meras intenções de carácter subjectivo que tudo permitam, de acordo. Deve ser antes um conjunto de princípios vinculativos que se irão consubstanciar em leis objectivas. Estas, leis ordinárias.
Acrescentaria que, qualquer dúvida que mesmo assim pudesse surgir, seria pronta e facilmente solucionada pelo Supremo Tribunal de Justiça, o qual poderia quando muito socorrer-se do parecer de dois ou três constitucionalistas de reconhecida competência, aprovados pela Assembleia da República em cada legislatura.
A inexistência de um Tribunal de recurso, tal como a irresponsabilidade dos juízes, etc., entendo-a como uma inevitabilidade. O contrário não faria mais do que acrescentar mais um degrau numa construção infindável e cada vez mais cara.
Caro Tiro ao Alvo,
Pode, por ser inconstitucional. A mesma unanimidade parlamentar pode alterar a constituição de forma à Lei passar a ser constitucional. Já agora, o caso que mencionou é QUASE impossível de acontecer, uma vez que para a lei ser derrubada tem de ser submetida ao TC. Existindo uma unanimidade, só ser o PR a fazer esse gesto…
João Cortez, obrigado pela resposta. Eu juro que percebo onde você quer chegar. Ao contrário de si, sou a favor desta Constituição mas não tenha dúvidas que também sei ver que estamos num bottleneck que torna evidentes as fragilidades do actual sistema. E que exige algumas respostas.
Tal como você, sou a favor de um Tribunal Constitucional mais isento politicamente. Mas digo isto sabendo que as cores políticas actuais do TC são minhas, o que espero que dê alguma legitimidade ao que estou a dizer. O actual sistema de nomeações para o TC tem o seu garante de alguma imparcialidade, com as 5 nomeações de cada força política e depois com 3 co-optados pelos 10 juízes nomeados. Mas não acho que seja suficiente para afastar estas suas legítimas questões em relação à imparcialidade do TC.
Uma das enormes alterações que gostava de ver no TC era que quem fosse Juíz do TC tivesse sido antes juíz de carreira com mérito. Actualmente, o TC é constituído por juízes que o são porque são juízes do TC, podendo antes nunca ter sido juízes na vida. É o caso do seu actual Presidente, por exemplo. As suas inegáveis qualidades como académico são indiscutíveis e o seu CV é soberbo. Mas não é nem nunca foi juíz. Assunção Esteves também não é magistrada de carreira, é mestre em Direito e tem conhecimentos para o cargo mas, tal como Sousa Ribeiro, nunca foi juíz na vida.
Para mim, que gosto de Direito, o TC devia ser como um STJ. Ou, se quiser, verter do STJ, onde só chegariam os melhores juízes nacionais, com provas dadas na carreira e com conhecimentos ímpares de Direito Constitucional (que não é, de todo fácil, como a realidade nos mostra). Acho que bastaria isso para garantir que o TC não esteja tantas vezes na berlinda por razões políticas.
E, com isto, espero ter-lhe, também, respondido, caro Bst.
Carlos Duarte, obrigado pelo seu esclarecimento. Claro que eu estava a pôr o caso em teoria, sem grande aderência à realidade, é certo.
Permita-me, todavia, que insista na proposta que li algures e que me parece razoável, proposta que denuncia um relativo excesso de poderes, por parte do TC, em relação às Leis aprovadas pela Assembleia da República, casa da democracia, como sabe. Custa-me a aceitar que treze Juízes (se todos estiverem no activo), que nem sempre nos dão garantias de bem conhecer e de interpretar com segurança a nossa Constituição, tenham o poder de vetar, sem apelo, Leis aprovadas pela AR, fazendo-o, muitas vezes, por razões de ordem política. Que tivessem esse poder em relação aos Decretos-Leis provenientes do governo, aceito; relativamente às Leis da AR, acho exagerado e parece-me que vale a pena pensar nisso. É a minha opinião.
Um juiz deve ganhar bem, seja aqui seja na Conchinchina.
O Tribunal Constitucional não tem recurso de si próprio. E bem, ad infinitum. Chega.
Que critérios preside ao bitaite que “nem sempre nos dão garantias de bem conhecer e de interpretar com segurança a nossa Constituição”?
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Constituição para que te quero?
Para garantir os direitos cívicos, a democracia e a sustentabilidade.
E para nos proteger das bancarrotas.
Falhou.
http://ppplusofonia.blogspot.pt/2014/06/constituicao-para-que-te-quero.html