esquerda e direita: dicionário elementar (2)

Estado:

Segundo a extrema-esquerda, trata-se de uma estrutura de domínio de classe, mais propriamente da burguesia capitalista, financeira e latifundiária, sobre o proletariado. Tem de ser tomado pela via revolucionária, para ser gerido, numa fase intermédia, socialista, pela vanguarda da revolução ou do proletariado, até se atingir o nirvana comunista da igualdade social absoluta. Nesse momento ele deixará de existir por contradição histórica.

Segundo a esquerda democrática, é o resultado de um contrato social garantístico da igualdade e das liberdades sociais. Sem o estado as liberdades (não propriamente a liberdade) são inexistentes ou impraticáveis, já que os homens seriam incapazes de ordenar as suas acções de forma pacífica e não violenta. O estado promove a segurança, as liberdades cívicas, a igualdade e a justiça social. Deve ter a dimensão necessária à promoção desses fins e não deve escusar-se de interferir no jogo social e económico para os atingir. Neste último domínio em particular, é ao estado – e não ao mercado – que compete a promoção do desenvolvimento económico, pela redistribuição de renda e criação directa e indirecta de riqueza. Numa versão mais suave, social-democrata e revisionista, aceita-se a coexistência, no plano económico, do estado e do mercado, desde que as regras do funcionamento deste último sejam ditadas e fiscalizadas pelo primeiro.

Segundo a direita conservadora, trata-se de uma estrutura pactuada pelos indivíduos, para que lhes sejam garantidas algumas condições elementares de vida social, que eles, por si, são incapazes de garantir plenamente. O estado deve, assim, situar-se nos domínios da segurança, da justiça, das relações externas e da economia, como garante da liberdade económica e das regras do mercado de livre concorrência. Alguma direita democrática mais ortodoxa quer ver o estado a promover o bem-estar social. Esta “direita” é objectivamente de esquerda e deve saltar para o parágrafo anterior.

Segundo a direita liberal, a História da Humanidade é a da resistência ao poder soberano do estado. Por essa razão, as populações medievais negociavam cartas de privilégio com os poderes públicos, que viriam a transformar-se, alguns séculos mais tarde, nas Constituições liberais, orgânicas e não programáticas. Para a direita liberal, o estado é um dado de facto que é necessário combater e não pode ser ignorado. Deve ser permanentemente reconduzido a funções mínimas, não deve intervir no mercado sob pretexto algum, e deve ser substituído, em todos os domínios que lhe possam ser retirados, pela livre cooperação entre indivíduos. A direita liberal tem hoje de resolver o problema da erosão dos instrumentos clássicos de limitação do estado, a saber, o Livre Mercado e o Estado de Direito Constitucional, que a soberania tem vindo a conseguir desgastar com o tempo, tornando frágeis e, por vezes, inúteis, as suas instituições.

Para os anarquistas de esquerda, o estado é um instrumento de opressão, que é necessário extinguir pela violência. A propriedade privada é a origem de todas as desigualdades humanas e é para a preservar que o estado existe. Logo, o caminho da extinção do estado é o da abolição da propriedade privada.

Para os anarquistas de direita, o estado existe? Não, não existe. Ele é apenas um sonho mau saído de cabeças minarquistas, que, quando acordarmos, não existirá mais. Entretanto, se recairmos no pesadelo, bastará fechar os olhos com força e invocar o princípio da não agressão para que tudo se componha.

38 pensamentos sobre “esquerda e direita: dicionário elementar (2)

  1. rui a., compreeende que pela sua definição em Portugal (e não só), a “esquerda democrática” (incluindo “impuros” da direita conservadora) não seria apenas maioritária mas a quase totalidade da população?

  2. rui a.

    Claro que entendo, caro João Branco. E é isso mesmo que se passa e que resulta no nosso rotativismo secular de dois grandes partidos do centrão, o PS e o PSD. E, já agora, é também por isso que isto chegou ao que chegou.

  3. Francisco

    Acho piada o rui a. não considerar que a direita conservadora atribui ao estado algum papel na preservação da tradição. Parece-me uma característica elementar desta facção, se não os conservadores eram todos liberais contratualistas.

    Dizer que preservar activamente a tradição é uma forma de bem-estar e portanto chutá-los para a esquerda não vale. Nem todo o intervencionismo estatal é de esquerda, muito menos se for para preservar tradições que promovam diferenciação social.

  4. rui a.

    A preservação da «tradição» se feita pelo estado deixa, obviamente, de ser tradição, para passar a ser um pechisbeque qualquer para justificar o saque a fundos públicos (conhece o artigo do Vasco Pulido Valente «A Casa Portuguesa»?). Por definição, a tradição preserva-se a si própria e a direita liberal, como a conservadora, não o ignora. Um dia destes tratarei do assunto.

  5. Francisco

    Eu já percebi que o rui a. considera liberalismo e conservadorismo como mais ou a mesma coisa, por isso até é estranho que tenha posto as duas categorias separadas. Mas qual é a utilidade de fazer esta equivalência se ela não representa aquilo que é normalmente designado como conservadorismo em Portugal, em França, nos EUA, no Irão, ou qualquer país que me lembre (talvez o Reino Unido seja a excepção? não sei)

    Pode sempre dizer “ah, esses não são os conservadores a sério”, mas isso já é destruir o significado das palavras em nome de uma pureza qualquer. A USSR também não é o verdadeiro comunismo, e a escola de Chicago são “a bunch of socialists”, etc …

  6. rui a.

    «anarquista de direita peca por algum excesso de simplismo… »

    Mas é um dicionário elementar, André! Para andar no bolso. Uma obra imprescindível, cuja inexistência nos faz muita falta e com sucesso editorial assegurado. Espero que saia antes das eleições autárquicas, para que os candidatos o possam comprar e utilizar em campanha.

    E o verbete em causa era sobre o estado e não propriamente sobre o anarco-capitalismo. No fim de contas, foi mais uma tentativa de convencer o Migas da bondade dos meus argumentos…

  7. Os liberais de direita (suponho eu, “minarquistas”) também gostavam de fechar os olhos e imaginar por um pouco que o Estado é uma criação justa, cujo mesmo a sua função mínima é passível de ser justificada. Mas suponho que, tal como os an-caps (na definição do Rui A.), acabem por esbarrar contra a fria e dura realidade.

    (Viram? Também sei jogar este jogo!)

    😉

  8. Carlos Duarte

    Caro rui a.,

    A suas definições de Direita (tanto a conservadora como a liberal) estão erradas num contexto Continental (em que nos encontramos). Aplicam-se aos anglo-saxónicos, mas não a países mais influenciados por tradições legais e organizacionais francesas ou germânicas.

    A exemplo, e como foi referido atrás pelo Francisco, não considerar o peso da Tradição (que não tem nada a ver com o conceito de Common Law) na Direita Conservadora é errado. A Direita conservadora defende a intervenção do Estado na manutenção (e promoção) de princípios morais e organizativos da Sociedade. Caso prático: a direita tradicional (que por cá muitas vezes se associa ao CDS-PP) NUNCA permitiria um voto a favor ou abstenção na co-adopção de crianças por casais homossexuais.

  9. Rui

    Rui, gosto deste seu post. . Hoje em dia parece-me que na maioria das pessoas se limitam a sr de direita ou de esquerda como se isso fosse um clube de futebol e utilizam o oposto (ser de esquerda para quem é de direita e vice versa como se fosse um insulto). O esforço por objetivar o que é esquerda e direita nos dias de hoje é louvável.

  10. CN

    Os anarquistas de direita parecem os mais realistas:

    – O estado mundial não existe e assim o estado natural da ausência de monopólio territorial da violência é uma realidade de sempre, que a ciência política tem dificuldade sequer em reflectir sobre, liberais incluídos.
    – O estado liberal também não existe, sendo uma utopia distante dos minarquistas.
    – As constituições legitimaram o poder absoluto da vontade geral expressa no poder político, monopolizando a noção de direito e assim tornando impossível o “estado liberal” .

    PS: falta uma força crescente que são os tradicionalistas.

  11. Anarquia é anarquia, o que diferencia a anarquia da esquerda da de direita são apenas os objectivos. Por isso é que nunca percebi a anarquia dos esquerdistas, porque as suas consequências estariam muito mais próximas dos ideias liberais ou libertários, do que propriamente dos objectivos da esquerda revolucionária. Julgo que acreditam que a anarquia tornaria iguais as pessoas, quando no fundo acabaria por elevar ao poder os mais fortes, numa espécie de selecção natural. No fundo, capitularia a propriedade privada, ao mesmo tempo que subjugaria os demais à vontade daqueles que triunfariam pela força.

  12. PiErre

    Se forem colocadas na devida ordem, não há fronteiras nítidas entre as diversas teorias sobre a natureza e funções do Estado. Elas só se notam quando se comparam teorias algo afastadas no espectro ideológico.

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  15. rui a.

    «A Direita conservadora defende a intervenção do Estado na manutenção (e promoção) de princípios morais e organizativos da Sociedade.»

    Dê-me lá, s.f.f., alguns exemplos de autores conservadores ingleses que defendam isto.

  16. “Uma obra imprescindível, cuja inexistência nos faz muita falta e com sucesso editorial assegurado. Espero que saia antes das eleições autárquicas, para que os candidatos o possam comprar e utilizar em campanha.”

    Antevejo um enorme sucesso.. 😉

  17. Carlos Duarte

    “Dê-me lá, s.f.f., alguns exemplos de autores CONSERVADORES INGLESES que defendam isto.”

    Aí está o problema: “isto” aqui (Portugal) não é Inglaterra, nem sequer um país com ligações político-sociais fortes com esta (pelo menos desde o Séc. XV). Logo, e como escrevi atrás, o seu dicionário (no que diz respeito à Direita pelo menos) não faz sentido. Quando decidir reescrever o mesmo para a tradição política continental (franco-germânica) é capaz de ser mais relevante.

  18. Guillaume Tell

    Pois está mais que comprovado que os conservadores liberais sempre lutaram contra a extensão do Estado, basta ver o sucesso que Thatcher ou Reagan tiveram, por exemplo, em baixar de forma substancial a despesa pública e reduzir fortemente os impostos.

    Além disso, os anarco-capitalistas nada têm teoricamente contra a existência do Estado, o problema do Estado é deter o monopólio da violência legítima. Se o Estado se tornar um actor como os outros, a saber dependente da vontade dos indíviduos de confiarem ou não nele não haverá nenhum problema. Agora será que tornar o imposto voluntário e permitir às pessoas de se submeterem a tribunais, leis diferentes são garantias suficientes para travar de vez o Estado? Não sei mas de certeza que “reconduzir permanentemente o Estado a funções funções mínimas” é fraquinho como programa.

    Até parece um revolucionário a falar, “é preciso lutar contra a exploração burguesa, e quando for eliminada é preciso eliminar os koulaks para nos livrarmos dos espiões imperialistas”.

    Numa sociedade anacap o Estado, pode bem, por exemplo, se ocupar de todos os mendigos se o dinheiro que tiver for dado voluntariamente pelos restantes membros da sociedade. Numa sociedade conservadora liberal é preciso determinar o que é o minímo, alguns dirão que é haver polícias a empedi-los de agredirem as outras pessoas, outros dirão que é preciso os impedir de se fazer mal a sí próprios…

  19. rui a.

    “Aí está o problema: “isto” aqui (Portugal) não é Inglaterra”

    Ok. Considerando, então, que as ideias devam ter nacionalidade, indique-me lá, s.f.f., alguns autores conservadores portugueses que defendam “a intervenção do Estado na manutenção (e promoção) de princípios morais e organizativos da Sociedade”.

  20. António

    “está mais que comprovado que os conservadores liberais sempre lutaram contra a extensão do Estado, basta ver o sucesso que Thatcher ou Reagan tiveram, por exemplo, em baixar de forma substancial a despesa pública e reduzir fortemente os impostos.”

    A Thatcher ainda conseguiu reduzir um pouco os impostos, agora o Reagan foi o inicio do descalabro estado-unidense com a a dívida pública! O Estado dos EUA com o Reagan ganhou força, mesmo que na altura tivesse a desculpa de estar a lutar contra os soviéticos.

    De qualquer forma, nem a Thatcher nem o <Reagan se podem considerar liberais pelos padrões dos insurgentes, nem pela definição do Rui.a.

  21. rui a.

    “De qualquer forma, nem a Thatcher nem o <Reagan se podem considerar liberais pelos padrões dos insurgentes, nem pela definição do Rui.a."

    O liberalismo é uma filosofia sobre o governo e o estado e não uma filosofia do estado e do governo. Por outras palavras, por contradição nos termos, não há nunca governos liberais. Governar é sempre intervir. O que há é governos mais ou menos intervencionistas.

  22. Carlos Duarte

    “Ok. Considerando, então, que as ideias devam ter nacionalidade, indique-me lá, s.f.f., alguns autores conservadores portugueses que defendam “a intervenção do Estado na manutenção (e promoção) de princípios morais e organizativos da Sociedade”.”

    Não, as ideias não têm nacionalidade, mas a sua génese e aplicabilidade depende de país para país. Se quiser, em termos ideológicos, poderá olhar para o Gaullismo francês (na sua facção mais monarquista) ou a CDU na Alemanha (principalmente no “partido-irmão” da Baviera, a CSU).

  23. rui a.

    ” poderá olhar para o Gaullismo francês (na sua facção mais monarquista) ou a CDU na Alemanha (principalmente no “partido-irmão” da Baviera, a CSU)”
    E o que é que lá encontra?

  24. Guillaume Tell

    “Governar é sempre intervir. O que há é governos mais ou menos intervencionistas.”

    Algo que se ouve muito entre os círculos anarcocapitalistas curiosamente.

  25. “A Thatcher ainda conseguiu reduzir um pouco os impostos”

    Creio que em grande parte do seu mandato o que a Tatcher fez foi aumentar os impostos – pelo menos nos primeiros anos o que houve foi um grande aumento do IVA (houve também uma redução do imposto sobre o rendimento, mas menor que o aumento do IVA). O famoso orçamento dela que levou à tal carta de não sei quantos economistas dizendo que ia ser uma catastrofe tinha como eixo central o aumento do IVA (e creio que foi exactamente isso que levou à carta)

    A ideia que eu tenho é que efectivamente houve uma redução da despesa em % do PIB, mas só lá no fim do mandato

  26. Hugo

    Mas que ideia é essa que Thatcher baixou os impostos?

    O liberalismo, sendo a “intervenção mínima do estado” significa verdadeiramente a intervenção do estado a mando do poder economico do grande patronato.

    Thatcher baixou os impostos progressivos e aumentou os regressivos. A grande ‘magia’ da dama de ferro foi o de desviar o dinheiro da classe trabalhadora para os patrões.

    A redução do apoio social foi a sua despesa controlada, a claudicação do salário mínimo e o combate aos sindicatos foram outras pérolas desta senhora.

    Agora vamos cá ver, quem é que aqui, sendo um pequeno gestor de uma PME acredita que o liberalismo é a solução dos seus problemas? Vocês acham mesmo que se algum dia forem uma ameaça a um grande CEO ele não vos espezinha por amor à livre concorrência? Isto claro, supondo que vos deixam crescer até serem uma ameaça. O mais certo é viverem ad eternum a tentar estar à tona de água… E nem percebem quem vos mantém sob controle.

  27. Hugo

    Ou então se calhar eu enganei-me e vocês são todos ‘cavalheiros de bem’, grandes senhores feudais, advogados partidarizados, CEOs do PSI…

    Deve ser isso!

  28. Pingback: Liberais, conservadores e anarquistas | O Insurgente

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